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janeiro 17, 2023

O crescimento da China nas últimas décadas foi sem dúvida um dos acontecimentos mais felizes da história da humanidade. Em uma geração, centenas de milhões de pessoas que viviam em absoluta pobreza puderam vislumbrar um presente e um futuro melhor. O tema é complexo, mas o crescimento chinês, embora desafie alguns aspectos da literatura mais consagrada, está longe de ser explicado pelos motivos pelos quais charlatões de esquerda, que apenas disseminam propaganda do regime de Pequim, acreditam.

A seguir, traduzimos um trecho do livro "How the World Became Rich", dos historiadores econômicos Mark Koyama e Jared Rubin. Ainda que seja impossível esgotar o tema em algumas poucas páginas (uma leitura mais completa pode ser encontrada nos livros de Nicholas Lardy), os autores oferecem uma visão de como o assunto é tratado por quem estuda economia e história de verdade, indo muito além dos apologistas conhecidos no Brasil.

Do livro: Como o mundo enriqueceu: as origens históricas do crescimento econômico. Capítulo: Como a China enriqueceu?

Um enigma perene na história do crescimento econômico é por que a China não se industrializou antes. Durante o auge da dinastia Song (960-1279), a China era muito mais rica do que as partes mais ricas da Europa. No entanto, em 1850, o PIB per capita chinês era um quinto do da Inglaterra (Broadberry, Guan e Li, 2018). Essa lacuna se expandiria muito ao longo do século seguinte. O que aconteceu? Por que a China não passou por uma Revolução Industrial primeiro?

Estas não são as únicas perguntas que devem ser respondidas. Nos últimos quarenta anos, a economia chinesa cresceu a uma velocidade vertiginosa. Após décadas de má administração, fome e perseguição pelo regime comunista, que produziram empobrecimento em massa, o crescimento das últimas quatro décadas tirou cerca de um bilhão de cidadãos chineses da extrema pobreza. Em 1990, 66,2% dos chineses ganhavam menos de US$ 1,90 por dia e 98,3% da população ganhava menos de US$ 5,50 por dia (Banco Mundial, 2020b). Em um país de cerca de 1,5 bilhão de pessoas, esses números são impressionantes.

A China se tornou muito mais rica nas últimas décadas. Em 2016, apenas 0,5% da população ganhava menos de US$ 1,90 por dia e 23,9% ganhava menos de US$ 5,50 por dia (Banco Mundial, 2020b). O PIB per capita aumentou de US$ 71 em 1962 (cerca de US$ 0,20 por dia) para US$ 10.262 em 2019 (ver Figura 10.6). Este é um dos grandes triunfos humanos da nossa época. Mais de um bilhão de pessoas foram retiradas da pobreza mais extrema somente na China. Ainda há trabalho a ser feito, é claro. Mas isso não deve nos fazer perder de vista o quanto isso é uma conquista. Como isso aconteceu?

Primeiro, precisamos resolver o mistério de por que a China não enriqueceu primeiro. Embora haja muitas evidências de que o auge econômico do império chinês pré-moderno ocorreu na dinastia Song, estudos recentes concentram-se na última dinastia imperial chinesa – a dinastia Qing – que governou a China de 1644 a 1912. Durante os primeiros 150 anos sob o governo Qing, a China atingiu sua maior extensão geográfica e experimentou um notável crescimento populacional. Segundo Glahn (2016, p. 322), esse “boom do século XVIII repousava sobre uma base de crescimento constante da população e da produção agrícola” e representava “a maturação da economia de mercado”.

Pomeranz (2000) sugeriu que por volta de 1750 havia pouco para distinguir a economia da Europa da China. De acordo com esse argumento, a divergência entre a China e o Ocidente deve ser explicada em termos de fatores que se tornaram relevantes após 1750. Estudiosos subsequentes não apoiam essa afirmação, mas de fato, em muitos aspectos, a China Qing tinha instituições que pareciam favoráveis ​​ao crescimento econômico.

Consideremos a declaração de Adam Smith, de que pouco mais é necessário para o crescimento econômico “além de paz, impostos baixos e uma administração tolerável da justiça; todo o resto sendo causado pelo curso natural das coisas” (Stewart, 1793/1980, p. 322). A China do século XVIII certamente tinha os dois primeiros ingredientes para o crescimento e possivelmente também o terceiro.

Em primeiro lugar, a China era um grande estado unificado. Embora tenha sido dividida em muitas ocasiões, a longevidade chinesa como estado centralizado é de fato única (Ko e Sng, 2013; Ko, Koyama e Sng, 2018). De 1683 a 1796, a China Qing desfrutou de um longo período de paz interna. As únicas guerras foram nas fronteiras contra povos nômades. Em contraste, os estados europeus estavam frequentemente em guerra. O tamanho da China e o alto grau de centralização política também facilitaram a integração do mercado. O norte e o sul da China foram conectados pelo Grande Canal há mais de 1.000 anos. Isso conectou os mercados de grãos e outros bens. No século 18, o Grande Canal fornecia a Pequim quase um milhão de toneladas de arroz anualmente (Glahn, 2016, p. 332). Além disso, a China e partes da Europa Ocidental tinham níveis comparáveis de integração de mercado por volta de 1750 (Shiue and Keller, 2007), apesar de a integração chinesa ter declinado daí em diante (Bernhofen, Li, Eberhardt, and Morgan, 2020).

Em segundo lugar, os impostos eram baixos na China Qing. Em contraste com a Europa, que viu um aumento dramático nas extrações fiscais pelo estado entre 1500 e 1800, na China a carga tributária caiu com o tempo. Os Qing impuseram impostos mais baixos do que as dinastias chinesas anteriores, e a taxa de imposto per capita caiu ainda mais durante o século XVIII (Sng, 2014). O estado central não regulava a economia. Os comerciantes, organizados por meio de guildas, regulavam os negócios comerciais no âmbito local.

No ponto final de Smith (a importância de uma administração tolerável da justiça), a China era governada por uma grande burocracia meritocrática. Contemporâneos na Europa do século 18 e início do século 19 viam essa instituição como garantia de um governo justo e imparcial. Eles as compararam aos governos europeus, que eram formados por indivíduos nomeados por patrocínio ou pela venda de cargos. Voltaire, por exemplo, celebrou o sistema de exames como uma forma de governo imparcial e benigno (yü Têng, 1943). Na verdade, o sistema de exames chinês foi o modelo para a introdução de burocracias profissionais na Inglaterra e depois nos Estados Unidos.

No geral, o estado chinês fornecia mais bens públicos e era menos intrusivo do que os seus homólogos europeus (Wong, 1997, 2012). Certamente, pelos padrões pré-modernos, as instituições chinesas forneciam algo que se aproximava de uma administração tolerável da justiça. Com o tempo, no entanto, há evidências de aumento da corrupção (Sng, 2014).

Apesar dessas aparentes vantagens, em vez de experimentar um crescimento econômico sustentado após 1750, a China entrou em declínio. Uma série de rebeliões camponesas, culminando na Rebelião Taiping de 1850-64, deixou milhões de mortos. Derrotada pela Grã-Bretanha nas Guerras do Ópio (1839–42 e 1856–60), a China foi forçada a ceder Hong Kong e permitir que as potências coloniais ocidentais estabelecessem postos comerciais dentro do império.

Existem inúmeras causas para este colapso. Elas incluem o fracasso político das elites Qing e uma crise malthusiana provocada por uma população em rápido crescimento e recursos ecológicos limitados. Mas a causa mais importante foi a ausência de inovação sustentada. As razões para isso foram institucionais e culturais. Conforme documentado por Needham (1995), a China foi a parte tecnologicamente mais inovadora do mundo durante séculos antes de 1500. Mas esse não era mais o caso no século XVIII.

Uma razão para isso foram as instituições políticas da China. O poder do imperador era relativamente irrestrito, em contraste com a Europa Ocidental, onde as cidades tinham autonomia e os parlamentos contestavam o governo do soberano. Mais importante ainda foi a fragmentação da Europa. Embora significasse barreiras caras ao comércio e conflitos frequentes, a fragmentação garantiu que houvesse um grau considerável de competição no sistema (Scheidel, 2019). Foi essa fragmentação que permitiu que bens e pessoas se realocassem em ambientes mais favoráveis. Tais liberdades estavam ausentes na China imperial.

Além disso, embora a burocracia imperial fosse meritocrática, ela estava sujeita à discrição imperial (Brandt, Ma e Rawski, 2014, p. 74). Isso significava que os agentes burocráticos eram desincentivados a fazer seu trabalho “bem demais”. Se o fizessem, o governo central poderia reprimi-los a qualquer momento. Seria ainda mais provável que isso acontecesse se o burocrata fosse rico ou independente (Ma e Rubin, 2019). A China era governada por uma rede centralizada, hierárquica, de hub-and-spoke com o imperador no centro. Essa estrutura hub-and-spoke era uma maneira eficiente de organizar um império grande e distante, mas impedia o fluxo de informações entre diferentes nós, desencorajava a inovação e tornava todo o império vulnerável ao colapso de todo o sistema (Root, 2020).

Essas tendências centralizadoras e autocráticas foram fortalecidas nos séculos XVII e XVIII, numa época em que as instituições representativas estavam em ascensão na Europa Ocidental. Inseguros sobre sua própria legitimidade política, os governantes Qing da China passaram a governar de forma mais autocrática. Um conjunto particularmente pernicioso de políticas por eles implementadas foram as “inquisições literárias”, que reprimiam possíveis fontes de dissidência enquanto promoviam uma compreensão estreita e tradicional da história intelectual da China (Xue, 2021).

Por essas razões, o ambiente institucional e cultural Qing não era propício à inovação. Embora o sistema de exames imperiais encorajasse o investimento em capital humano, ele tendia a reproduzir o conhecimento existente. Os alunos mais brilhantes foram incentivados a seguir a educação confuciana, que tinha pouca aplicação prática em ciência ou tecnologia (Huff, 1993; Lin, 1995). Tais normas culturais podem não ter sido um problema tão grande sob a dinastia Song, que encorajava ativamente a inovação, mas se tornaram uma restrição obrigatória sob a dinastia Qing. A importância dessas normas significava que, mesmo quando o governo central tentou reformas semelhantes às Reformas Meiji – o chamado Movimento de Autofortalecimento (1860-94) – ele o fez em um contexto confuciano. A educação prática foi amplamente evitada em favor dos antigos clássicos. Isso é resumido pela famosa fórmula: “aprendizagem chinesa como base; aprendizagem ocidental para uso prático” (Wright, 1957, p. 1).

A falta de competição ou de um fórum que incentivasse a inovação acabou impedindo que algo como a Revolução Científica ou o Iluminismo ocorresse na China. Como Mokyr (2016, p. 318) coloca, apesar de ter sido altamente centralizada e compartilhar uma única língua escrita e cultura literária, “a China paradoxalmente carecia de um único mecanismo de coordenação unificadora, como um mercado competitivo no qual novas ideias eram testadas”. Assim, uma combinação de instituições políticas centralizadas e uma cultura que favorecia os clássicos confucionistas sobre o que Mokyr (2002) chama de “conhecimento útil” foram responsáveis ​​conjuntamente por sufocar a inovação chinesa nos séculos anteriores à Revolução Industrial. No entanto, falar de um fracasso chinês aqui é um equívoco. Como Mokyr (2016, p. 338) observa, “[O] que é excepcional, sem dúvida, único, é a Europa no século XVIII”.

É importante reconhecer que esses fatores não atuaram isoladamente. Eles interagiram entre si. Por exemplo, consideremos a natureza baseada em clãs das famílias chinesas. Culturas baseadas em parentesco têm certas vantagens e desvantagens sobre as culturas individualistas. Por um lado, as culturas baseadas em parentesco têm uma rede de segurança maior. O “clã” tende a fornecer esse tipo de seguro. No entanto, isso vem com o custo do desenvolvimento institucional. Na Europa Ocidental medieval, as sociedades foram forçadas a formar corporações que forneciam ajuda mútua. Estes incluíam guildas, comunas e associações comerciais. Tais instituições eram desnecessárias na China, onde o clã fornecia ajuda mútua (Greif e Tabellini, 2017). Uma lógica semelhante explica por que os bancos e as finanças surgiram pela primeira vez no Ocidente. Na ausência do clã, havia uma maior necessidade de compartilhamento de riscos interpessoais e de agrupamento de recursos. Essas necessidades eram muito menos pronunciadas na China, pois o clã mitigava esses riscos. Como resultado, havia menos necessidade de serviços bancários e financeiros (Chen, Ma e Sinclair, inédito).

A natureza baseada em clãs das famílias chinesas também desempenhou um papel importante na demografia do país. Até a política de filho único ser introduzida em 1979, a China tinha uma alta taxa de natalidade. O casamento precoce e um sistema familiar multigeracional no qual casais recém-casados ​​se mudavam para a casa paterna permitiam que as mulheres se casassem cedo e mantivessem altas as taxas de fertilidade. Grande parte da história chinesa é consistente com uma perspectiva malthusiana. As características dominantes da China eram altas taxas de natalidade, altas taxas de mortalidade e pouca mudança de longo prazo na renda per capita. Essa estrutura ajuda a explicar por que a China permaneceu pobre, apesar de sua liderança tecnológica mundial durante a maior parte do período medieval. Todos esses avanços resultaram em mais pessoas, não mais riqueza por pessoa. Por exemplo, enquanto a quantidade total de terra cultivada mais que triplicou entre 1400 e 1913, a população mais que quintuplicou de 65 a 80 milhões em 1400 para 430 milhões em 1913 (Brandt, Ma, and Rawski, 2014, p. 52).

Se as instituições, a cultura e a demografia são em parte responsáveis ​​pelo fato de a China nunca ter cumprido sua promessa tecnológica, que papel esses fatores desempenharam para explicar por que o país conseguiu crescer rapidamente nas últimas quatro décadas? É a esta importante questão que nos voltaremos a seguir. O milagre chinês é notável: quase um bilhão de pessoas foram tiradas da pobreza extrema durante o período de nossas vidas. Como isso aconteceu? Os fatores destacados neste livro lançam alguma luz sobre a ascensão da China?

A China permaneceu uma autocracia, apesar das vicissitudes que experimentou após sua derrota nas Guerras do Ópio e a queda da dinastia Qing. O período republicano (1912-1949) viu os primeiros esforços locais sustentados na construção do Estado e na industrialização. Entre 1912 e 1936, a produção industrial chinesa cresceu a um ritmo mais rápido do que o Japão, a Índia ou a Rússia/URSS (Brandt, Ma e Rawski, 2017, p. 198). Uma conquista do período comunista (1949-) foi construir sobre isso e construir com sucesso um estado centralizado moderno. Mas isso teve um tremendo custo humano. O período comunista viu a coletivização forçada da agricultura e uma série de planos quinquenais que culminaram no desastroso Grande Salto Adiante (1958-62). A fome resultante foi a consequência direta das políticas comunistas.

O que aconteceu a seguir ilustra um dos custos de sair de uma economia de mercado. Em uma economia de mercado, o ritmo da industrialização era limitado pela produtividade da agricultura. Se muitos trabalhadores fossem atraídos para as cidades para trabalhar nas fábricas, a demanda por alimentos aumentaria e os grãos dos campos não seriam colhidos. A tesoura da oferta e da demanda faria os preços subirem, desacelerando o ritmo da industrialização.

Mao e seus assessores acreditavam que poderiam acelerar esse processo contornando o mecanismo de mercado. Especificamente, eles achavam que os camponeses estavam cultivando pequenos lotes de terra de forma ineficiente ou não usando os fertilizantes mais recentes. Eles também suspeitavam que os camponeses estavam acumulando grãos na esperança de lucro. A coletivização era, portanto, vista como um meio de aumentar consideravelmente a produção e tornar o excedente de alimentos resultante legível ao Estado, que poderia facilmente coletá-lo e transportá-lo para alimentar a população urbana. O Grande Salto Adiante foi, portanto, uma tentativa equivocada de impulsionar a industrialização.

Independentemente da culpa pessoal de Mao, foi o sistema político mais amplo, caracterizado pela falta de freios e contrapesos, que foi crucial para ampliar a escala da tragédia. No centro da fome, estavam as estimativas excessivamente otimistas da produção de grãos. Isso ocorreu em grande parte devido ao fato de os burocratas locais terem um incentivo sistemático para inflar as estimativas. Além disso, as aquisições altamente inflexíveis e a relutância das elites políticas em reconhecer o problema levaram ao desastre. Quadros locais usaram violência extrema para impor suas cotas. Camponeses acusados ​​de esconder comida ou de fugir eram espancados e às vezes mortos. A coletivização viu a produtividade despencar à medida que o conhecimento tácito que os camponeses tinham de seus solos locais foi perdido quando eles foram conduzidos para fazendas coletivas. Na verdade, a fome era mais severa em áreas onde a produtividade agrícola era maior (Meng, Qian e Yared, 2015). Enquanto isso, notícias de fome em massa foram encobertas. Os números que morreram durante a Grande Fome são debatidos. As estimativas plausíveis variam entre cerca de 15 e 45 milhões (Ó Gráda, 2015, pp. 130–73). Mesmo com as estimativas mais conservadoras de 20 a 30 milhões de mortos, essa fome provocada pelo homem está entre os episódios mais destrutivos da história humana.

Uma lição importante deste livro ("How the World Became Rich") é que as instituições políticas são uma das principais razões pelas quais as políticas economicamente benéficas são muitas vezes ignoradas enquanto as políticas economicamente destrutivas são perseguidas. O fato de a China ser governada por um estado autocrático e altamente centralizado tornou esses desastres políticos não apenas possíveis, mas também prováveis. Os desastres do Grande Salto Adiante e da Grande Fome foram seguidos pela Revolução Cultural, durante a qual (de acordo com estimativas conservadoras) 750.000 a 1.500.000 pessoas morreram. Embora o Partido Comunista Chinês tenha conseguido unificar o país e investir em educação básica e saúde, o resultado do Grande Salto Adiante e da Grande Fome foi que, na década de 1970, a China era um dos lugares mais pobres do mundo. No entanto, a natureza autocrática e altamente centralizada do governo comunista também permitiu ao país reverter o curso com sucesso sob Deng Xiaoping, o líder chinês que iniciou reformas orientadas para o mercado em 1979.

Destacamos neste livro a importância das restrições ao poder executivo na promoção do crescimento. No caso dos Tigres do Leste Asiático, as restrições não faziam parte formalmente do sistema político. Os Tigres se beneficiaram por serem pequenos. Isso significava que a iniciativa privada era capaz de restringir as tendências autocráticas do governo. Mas este não foi o caso da China. O governo central chinês permaneceu extremamente poderoso em relação a outras organizações e pessoas importantes. No entanto, a China ainda modernizou sua economia e escapou da pobreza. As características que destacamos neste livro podem explicar esse feito?

Assim como o Japão e os Tigres do Leste Asiático, a China não precisou reinventar a roda da industrialização ou da economia moderna. Poderia tomar emprestado insumos industriais e know-how gerencial do exterior por meio da abertura ao investimento estrangeiro direto. Um tremendo potencial econômico subutilizado já existia há décadas antes das reformas do final da década de 1970. Com mais de um bilhão de pessoas definhando na agricultura de subsistência, a China era uma fonte óbvia de mão de obra de baixa remuneração. Mas uma grande força de trabalho não era o único ou o fator mais importante no crescimento chinês. Afinal, essa força de trabalho existia antes da década de 1980, e o trabalho excedente sempre foi uma característica das economias em desenvolvimento.

As reformas econômicas da China podem ser divididas em dois períodos: reformas iniciais entre 1978 e 1995 e reformas pós-1995 (Brandt, Ma e Rawski, 2017). O primeiro conjunto de reformas desmantelou muitos aspectos da economia de comando. A agricultura havia sido gravemente prejudicada pela coletivização e pela tentativa equivocada de industrializar as áreas rurais. No final dos anos 1970, essas políticas começaram a ser revertidas. Entre as primeiras reformas estava o renascimento da agricultura familiar. A produção de grãos aumentou em quase um terço entre 1978 e 1984 (Brandt, Ma e Rawski, 2014, p. 96). É importante ressaltar que esses aumentos na produtividade agrícola liberaram centenas de milhões de trabalhadores para o trabalho industrial.

As reformas pós-1995 envolveram privatizações generalizadas. A participação do estado na produção industrial caiu de quase 50% em 1995 para 24% em 2008. Houve também uma expansão na proteção legal para a iniciativa privada. Não havia estado de direito na China pré-reforma. Como uma economia de mercado foi introduzida, um sistema legal correspondente teve que ser desenvolvido. Um desenvolvimento importante foi a adoção de elementos do direito civil alemão, como o direito de cidadãos particulares processarem o governo (Fukuyama, 2014, p. 364). Apesar da oposição comunista aos direitos de propriedade privada, as reformas foram capazes de criar “um conjunto de direitos usufrutuários (de uso) que podem ser comprados, vendidos, hipotecados ou transferidos, dos quais o Estado, no entanto, retém a propriedade formal. Assim, no florescente mercado imobiliário da China, ninguém é tecnicamente 'dono' de um apartamento ou casa. Um cidadão possui o equivalente a um arrendamento cujo prazo se estende por até setenta anos, que é adquirido em troca de taxas de uso da terra.” (Fukuyama, 2014, p. 366).

A China não adotou instituições ocidentais no atacado. Em vez disso, movimentos relativamente menores em direção a um maior estado de direito foram suficientes para induzir uma transformação radical de sua economia e sociedade.

Assim como em outras economias do Leste Asiático, outro aspecto da ascensão da China foi sua maior abertura ao comércio global. O estabelecimento de zonas econômicas incentivou o investimento estrangeiro direto no país. Dado o quão longe a China estava da fronteira econômica mundial e o quão baixos eram seus salários, havia enormes oportunidades para recuperar o crescimento. Uma vez que a China voltou à economia global, sua taxa de comércio exterior em relação ao PIB aumentou de 9,7% para 31,9% entre 1978 e 1993 (Brandt, Ma e Rawski, 2014, p. 98). O investimento estrangeiro afluiu e as empresas estatais tornaram-se mais eficientes. O crescimento acelerou nas décadas de 1990 e 2000, impulsionado por reformas que reestruturaram o inchado setor público. O crescimento chinês desacelerou desde o início dos anos 2000 (quando o crescimento era de cerca de 10% ao ano; agora está em torno de 6 a 7%), mas é exatamente isso que um modelo de recuperação do crescimento poderia prever.

Isso é o que aconteceu. Mas como isso aconteceu? Como ocorreu um crescimento tão rápido sob um governo autocrático? Duas características da história da China são importantes para a compreensão de seu crescimento moderno. A primeira é institucional. Embora o imperador chinês tenha enfrentado historicamente poucas restrições, uma diferença entre a maneira como os chineses e os europeus legitimavam o governo político era que, para os chineses, um bom governo significava um governo legítimo. Um bom imperador chinês era visto como tendo o “Mandato do Céu”. Se fosse derrubado ou respondesse mal a uma crise, era sinal de que não tinha o Mandato.

Este princípio continua a exercer influência para legitimar o regime comunista hoje, mesmo que de forma diferente. Após a morte de Mao em 1976, cuja legitimidade estava ligada ao seu papel como pai fundador da República Popular da China, a liderança chinesa enfrentou um déficit de legitimidade. Não apenas nenhum dos potenciais sucessores de Mao tinha uma história pessoal como a dele, mas também havia uma turbulência interna sobre quem iria liderar. Dado esse déficit de legitimidade, Deng Xiaoping, que liderou a China de 1978 a 1989, voltou-se para “bom governo significa governo legítimo”. Isso ajudou a resolver muitos dos problemas associados à governança irrestrita. Mesmo que o Estado pudesse ter infringido os direitos de seus cidadãos a qualquer momento – e certamente o fez, e continua até hoje, especialmente suas minorias étnicas e religiosas – fazê-lo de uma forma que teria prejudicado o crescimento econômico também teria prejudicado a legitimidade do Partido Comunista no poder. Como a China permaneceu altamente centralizada e autocrática, há sempre a possibilidade de reversão das atuais políticas econômicas. E, de fato, sob a presidência de Xi Jinping desde 2013, houve um fortalecimento da autocracia e um afastamento do mercado. A China não escapou do “problema do mau imperador”.

Outra característica histórica que contribuiu para o crescimento da China tem a ver com sua cultura. Como o Japão e outros países do Leste Asiático, a alfabetização era relativamente alta na China pré-moderna. Este foi um produto de uma cultura que via a educação como um meio de ascensão econômica e social. Embora historicamente a educação tenha sido confinada aos clássicos confucionistas, esse tipo de educação tornou-se menos importante após o desmantelamento da velha burocracia chinesa em 1905. Mas a ênfase na educação permaneceu, especialmente naqueles lugares onde ela era importante no passado. Na verdade, os lugares que produziram mais burocratas de alto escalão no período imperial ainda têm níveis muito mais elevados de escolaridade hoje (Chen, Kung e Ma, 2020).

Esta seção abordou vários aspectos da história chinesa e sua ascensão recente. No entanto, ela revela tanto o potencial quanto os limites de usar as lições da história para entender por que as partes pobres do mundo podem se tornar ricas. A China tornou-se relativamente rica sem ter muitos dos atributos da Inglaterra do século XVIII ou dos Estados Unidos do século XIX. Acima de tudo, teve poucas restrições à governança. No entanto, essas histórias nos apontam o que pode ser importante para o crescimento econômico ocorrer. As instituições são de importância crítica. Mas também somos limitados em nosso conhecimento sobre quais instituições importam. Quando a China abandonou o comando e o controle na economia, também desafiou o consenso político da década de 1990 (conhecido como Consenso de Washington), que enfatizava a privatização e a desregulamentação (Weber, 2021).

Ainda assim, o crescimento econômico na China foi mais rápido que naqueles países que adotaram o que era percebido como as melhores políticas.

As reformas institucionais apropriadas sempre serão dependentes do contexto e politicamente constrangidas. Esta é uma das principais conclusões deste livro. O que funcionou para tornar algumas partes do mundo ricas funcionou em um determinado contexto cultural, histórico e institucional. Podemos aprender com esse passado, mas não devemos nos apegar a ele.

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Tradução: Sérgio Diotaiuti.

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