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outubro 1, 2022

Autora: Sherry Wolf
Introdução e Tradução: Sérgio Diotaiuti

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Onde as práticas privadas não podem afetar ninguém além de adultos voluntários, a mera aversão ao que está sendo feito por outros, ou mesmo o conhecimento de que os outros se prejudicam pelo que fazem, não fornece base legítima para coerção. (…) O exemplo mais evidente disso em nossa sociedade é o do tratamento da homossexualidade.

- Friedrich Hayek

A segunda questão em que os princípios de Mill condenam a legislação existente é a homossexualidade. Se dois adultos entram voluntariamente em tal relação, esta é uma questão que diz respeito apenas a eles e na qual, portanto, a comunidade não deve intervir. Se ainda se acreditasse, como antes, que a tolerância de tal comportamento exporia a comunidade ao destino de Sodoma e Gomorra, a comunidade teria todo o direito de intervir. Mas não adquire o direito de intervir meramente com base em que tal conduta é considerada pervertida. A lei penal pode ser invocada com razão para prevenir a violência ou fraude infligida a vítimas involuntárias, mas não deve ser invocada quando qualquer dano que possa haver é sofrido apenas pelos agentes – sempre supondo que esses agentes sejam adultos.

- Bertrand Russell

No final de setembro de 2022, Cuba finalmente legalizou, por meio de um referendo, o casamento de pessoas do mesmo sexo. A notícia veio com certo espanto, tanto para críticos quanto para apologistas do regime. Como pode o bastião do socialismo nas Américas ter legalizado um direito básico tão depois da esmagadora maioria das democracias liberais ocidentais? Se estudarmos a história do tratamento de minorias na ilha caribenha, contudo, a surpresa desaparece.

Que poucos locais no mundo são tão amados por boa parte esquerda mundial como Cuba é um fato conhecido. Que boa parte desses mesmos apologistas não duraria nem um dia na ilha-prisão, bem menos. A militante LGBT e socialista Sherry Wolf, contudo, fornece em seu livro "Sexualidade e Socialismo", publicado no Brasil pela editora Autonomia Literária, uma análise honesta dos horrores que a comunidade da qual faz parte enfrentou e enfrenta no feudo-prisão de propriedade dos Castro.

Há o que se questionar do ponto de vista liberal de sua análise: para ela, Cuba não aparenta ser, de fato, um regime socialista, mas sim uma ditadura em que o governo apenas tomou o papel do estado e da burguesia na opressão dos trabalhadores. Por outro lado, para muitos liberais, ditadura e opressão são resultados naturais do socialismo, mesmo quando implantado com boas intenções, e o lamentável estado no qual viveram os LGBTs cubanos por mais de meio século são perfeitamente compatíveis com este regime político e econômico. Não obstante, a análise de Wolf é, no geral, muito factual, e oferece uma dissidência importante num ponto que a esquerda possui muita dificuldade de lidar: o experimento cubano fracassou sob qualquer ótica, e defendê-lo é um erro não só teórico, mas também estratégico.

A seguir, traduzimos um trecho da obra de Wolf.

Cuba: ilha da liberdade?

Em Cuba, embora a revolução de 1959 tenha introduzido uma série de reformas educacionais e agrárias positivas, a homossexualidade foi proibida. A homossexualidade em Cuba não era ilegal antes da revolução, mas a partir dela as pessoas LGBT foram abertamente reprimidas e mesmo enviadas para campos de concentração, entre 1965 e 68, ou forçadas ao exílio com outros "criminosos" e a "escória" no Barco Maciel, em 1980, quando 125.000 cubanos foram exilados. Estima-se que até 60.000 pessoas LGBT, homens gays em sua maioria, foram enviadas para as Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAPs). Lá, cercados por arame farpado, foram forçados a cortar cana-de-açúcar ou mármore sob o sol tropical em uma jornada de doze a dezesseis horas por dia, a fim de atender a níveis de produção irreais. Enquanto as UMAPs eram um fenômeno temporário, as prisões e perseguições de artistas como Reinaldo Arenas, autor de "Antes que Anoiteça", resultaram no "medo sempre presente de que a qualquer momento pudesse haver batidas na sua porta para te levar a um interrogatório ou simplesmente para ser levado na caçamba de um caminhão até a área rural".

É verdade que sob o ditador Fulgencio Batista, que tinha apoio dos EUA, Havana foi transformada em um playground sexual para cubanos ricos e turistas estadunidenses. Isso foi usado pelo líder revolucionário Fidel Castro para justificar a repressão de qualquer pessoa que não se conformasse às normas de gênero no modo de se vestir e portar ou que praticasse sexo com pessoas do mesmo sexo, tanto em público como privadamente. Em uma entrevista gravada com o jornalista estadunidense Lee Lockwood em 1965, Castro defende proibir homossexuais "desviantes" de terem cargos onde poderiam influenciar os jovens. Ele alegava: "Nós não podemos acreditar, de nenhuma maneira, que um homossexual possa incorporar as condições e exigências de conduta que nos permitem considerá-lo um verdadeiro revolucionário, um verdadeiro militante comunista". Em 1971, o Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura reiterou a posição do Estado sobre "o caráter de patologia social dos desvios homossexuais" e resolveu "que todas as manifestações de desvios homossexuais devem ser firmemente rejeitadas e impedidas de se espalharem".

As políticas sexuais de Cuba, mais do que qualquer um dos outros estados chamados de socialistas, tiveram um impacto enorme na esquerda estadunidense e nas LGBTs de esquerda dos Estados Unidos. Pelo embargo de cinco décadas feito pelo Império estadunidense e suas tentativas de derrubar e desacreditar o regime de Castro, temendo a nacionalização das antigas propriedades dos EUA em Cuba, e o fato de Cuba jamais abaixar a cabeça para a arrogância imperial, deram ao país o apoio e o respeito dos anti-imperialistas. No entanto, uma coisa é se opor à agressão imperialista sobre Cuba e outra, bem diferente, é defender suas políticas. Cuba é um estado de partido único, no qual a atividade política independente – até mesmo quando feita pelos defensores da revolução – bem como sindicatos independentes e greves são barrados e o partido governante afirma governar em nome da classe trabalhadora.

Organizações de esquerda nos Estados Unidos, que consideram Cuba como socialista – apesar da falta de controle dos trabalhadores e de políticas sociais que eles certamente teriam denunciado nos EUA – defenderam ou simplesmente ignoraram o histórico de abusos contra as minorias sexuais cubanas. Da mesma forma, em relação aos países do bloco oriental, essa esquerda deu as costas não apenas à luta pela libertação gay, mas à essência do marxismo – a autoemancipação da classe trabalhadora. Do maoísta Partido Comunista Revolucionário (Revolutionary Communist Party - RCP), que até 2001 considerava os gays contra-revolucionários por natureza, ao Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party - SWP), que por algum tempo proibiu gays e travestis entre seus membros, muitas organizações de esquerda descartaram o cerne libertador do socialismo e se engajaram em posicionamentos verbais tortuosos para defender a repressão em nome do marxismo. Para argumentar que Cuba, China ou o bloco oriental eram, de alguma forma, socialistas, eles tinham que negar a repressão aos gays ou defendê-la, e muitos grupos vacilaram entre essas duas práticas.

O historiador e ativista David Thorstad foi membro do SWP durante seis anos, antes de se afastar por causa da política em relação à sexualidade e ao movimento gay. Ele coletou os documentos internos do debate que durou de 1970 a 1973. Na época, o SWP era a maior organização trotskista dos EUA, embora sua adesão à ideia de que o Bloco Oriental era formado por “estados operários degenerados” e seu entusiasmo pelo "socialismo" cubano [aspas da autora] expressasse uma confusão entre propriedade estatal e marxismo, semelhante às perspectivas do stalinismo.

Surpreendentemente, logo após a Revolta de Stonewall, em 1969, no Greenwich Village, ter sido a primeira cena do moderno movimento de libertação gay, eles baniram "extraoficialmente" os gays e lésbicas do partido, e de seu grupo de jovens, a Aliança da Juventude Socialista (YSA), em agosto de 1970. Apesar de a proibição ter acabado logo depois – o líder do partido Jack Barnes insistiu que a proibição era "inexequível" e que os afastava de radicalizar a juventude – o debate em torno da natureza da homossexualidade foi arquivado pela liderança e uma espécie de política de "não vamos falar sobre isso" foi proposta. O medo de afastar os trabalhadores ao projetar uma imagem "exótica" ou "bizarra" através do travestismo ou de carinhos entre pessoas do mesmo sexo nos encontros do partido tomou conta, o que conduziu a medidas internas de policiamento do comportamento dos membros. Ao mesmo tempo, críticas internas afirmavam que, se um partido revolucionário avaliasse suas posições e comportamentos de acordo com o que pensavam os trabalhadores conservadores, combater o racismo ou até engajar-se em qualquer um dos comportamentos contraculturais da época seria também desconsiderado. Apesar da reação inicial do SWP contra a mobilização e a política gay e lésbica, o grupo empreendeu um debate interno de três anos que expressava o envolvimento sistemático dos membros nas várias lutas do movimento gay.

Já o Partido Mundial dos Trabalhadores (Workers World Party - WWP) , atual PSL tem sido bastante ativo nas lutas LGBT desde os anos 1970 até o hoje. O premiado romancista e ativista transexual Leslie Feinberg é um dos membros mais proeminentes do WWP. Mas a defesa intransigente de praticamente todos os países que alegam ser socialistas - do Iraque de Saddam Hussein e da Coréia do Norte de Kim Ill-Sung à moderna China (incluindo a defesa do massacre da Praça Tiananmen) e à Cuba de Castro - leva o WWP/PSL a uma avaliação enganosa e simplista das políticas e posicionamentos dessas sociedades em relação à sexualidade. Levantar críticas de qualquer forma a esses regimes burocráticos e muitas vezes tirânicos, na visão filosófica dualista do WWP/PSL, é se colocar a serviço do império. Isso os deixou na curiosa posição de considerar como estados operários países que prenderiam ou perseguiriam alguns dos próprios membros que se organizam nos Estados Unidos para defendê-los! Como explica o jornal do WWP:

"Hoje, não há um país no mundo que tenha uma posição adequada a respeito do fim da opressão contra homossexuais. Mas ressaltar qualquer um dos países socialistas para criticar mais ferozmente, como fizeram alguns líderes do movimento gay nos EUA, é omitir o que é mais essencial e, além disso, permite que passem ilesos os imperialistas dos EUA, aqueles que têm um verdadeiro interesse na manutenção do racismo, do sexismo e das atitudes anti-homossexuais."

Após três anos de fortes debates internos sobre a questão da homossexualidade, um panfleto sobre a libertação gay, lançado em 1975 pelo SWP, defende os direitos dos homossexuais com base nas liberdades civis, mas depois argumenta que seria "imperialismo cultural" impor essas expectativas em relação a Cuba, como se a libertação sexual fosse de algum modo um valor imperialista e que não deveria ser imposto aos chamados "machos latinos". Além de seu óbvio truque analítico, há um racismo sutil para com os latinos. Há ampla evidência da diversidade sexual na sociedade cubana, tão rica quanto em qualquer outro lugar, inclusive contando com filmes populares como o indicado ao Oscar de 1994, "Morango e Chocolate", que explora as relações entre pessoas do mesmo sexo em Cuba.

Contudo, poucos grupos eram tão brutos na rejeição da homossexualidade quanto o precursor do RCP, a União Revolucionária, no final dos anos 1960. Sua publicação de 1969 sobre o assunto é desconcertante, ilógica e, para ser franca, insensivelmente estúpida. Enquanto se opunha à criminalização da homossexualidade, a União Revolucionária se posicionou contra o nascente movimento pelos direitos dos gays, com base no seguinte:

1) Como a homossexualidade se baseia no individualismo, é uma característica da ideologia pequeno-burguesa que propõe a ideia de que existem soluções individuais para os problemas sociais.

2) Como a homossexualidade se baseia na ideologia pequeno-burguesa e vira as costas para as contradições entre homens e mulheres (pelo menos nas relações pessoais íntimas), os homossexuais não podem ser comunistas, isto é, pertencerem a organizações comunistas, onde as pessoas estão empenhadas em lutar contra todas as formas de individualismo, em todos os aspectos de suas vidas.

3) Ao apresentar a homossexualidade como uma estratégia para a revolução neste país, a libertação gay é uma ideologia reacionária e pode apenas nos levar pelo caminho da desmoralização e da derrota.

O impacto de Cuba sobre as novas esquerdas do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, no início da explosão do movimento LGBT moderno, foi profundo. Apesar da proibição de viajar para Cuba, muitos revolucionários estadunidenses organizaram jovens para fazer missões de corte de cana e colheita de frutas na ilha para ajudar a cumprir as cotas de exportação de Cuba para a URSS. As Brigadas de Solidariedade Venceremos começaram em 1969 e contavam com centenas de ativistas da organização “Estudantes por uma Sociedade Democrática”, e que contava inclusive com os militantes homossexuais Allen Young e Leslie Cagan, uma figura proeminente no atual movimento progressista antiguerra. Histórias do tratamento homofóbico direcionado a muitas lésbicas e gays por outros brigadistas, assim como por alguns cubanos, entraram na emergente imprensa gay dos Estados Unidos. Os gays que protestaram contra a homofobia do governo cubano foram acusados de ter participado de uma "ofensiva imperialista cultural" contra a revolução, segundo Young. Embora Cagan e a cantora lésbica Holly Near tenham sido proibidas de voltarem em futuras viagens, junto com outros LGBTs, muitos militantes continuaram a defender as políticas dos cubanos, argumentando que lá não havia "base material para a opressão dos homossexuais”.

Muita coisa mudou nos últimos anos em relação à sexualidade em Cuba, embora dificilmente o país seja um bastião da liberdade sexual. Em 2004, a filha de Raúl Castro, Mariela Castro Espín, que dirige o Centro Nacional de Educação Sexual de Cuba - CENESEX, disse: "Sim, eu acredito que as pessoas estão um pouco mais tranquilas com a presença de homossexuais, tanto em público como na privacidade da família, mas apenas um pouco tranquilas, não mais tolerantes. Temos ainda muito trabalho a fazer em nossa sociedade para que esse 'relaxamento' signifique o verdadeiro respeito à diversidade". Em 1988, a homossexualidade foi descriminalizada, embora os testes de AIDS obrigatórios tenham levado à quarentena compulsória dos soropositivos, a maioria dos quais eram homens gays. Uma sociedade na qual as pessoas são livres para expressar suas preferências sexuais teria lidado com a crise com uma campanha massiva de educação e discussão aberta sobre como proceder, em vez de impor medidas coercitivas. Apesar de Havana ter celebrado o seu primeiro Dia Internacional Contra a Homofobia em maio de 2008, um mês depois a primeira Marcha do Orgulho Gay de Cuba ter sido cancelada minutos antes de começar e os organizadores terem sido presos por exigirem um pedido oficial de desculpas pela criminalização e mau tratamento aos “desviantes sexuais e de gênero” em Cuba. Isso é compatível com a repressão às organizações e iniciativas não oficiais em Cuba. A campanha "A diversidade é natural" de 2009, lançada pelo CENESEX, foi um avanço e também um reconhecimento aberto de que a discriminação e a repressão persistem. Mariela Castro Espín diz que há esforços da campanha para incluir a identidade de gênero e os direitos das minorias sexuais no Código Familiar de Cuba: "o trabalho que estamos fazendo ajudará a amenizar os preconceitos por trás desses processos".

Enquanto os cubanófilos da esquerda argumentam que o progresso que ocorreu é fruto de desenvolvimentos revolucionários, essa explicação é incompatível com os fatos. Cinquenta anos se passaram desde que a revolução iniciou a repressão aberta às LGBTs e, décadas depois, seus piores aspectos foram mitigados, mas a negação do Estado ao direito democrático de organizar qualquer movimento independente para a libertação sexual persiste. Como o socialista Paul D 'Amato argumenta: "A opressão não é o produto de uma revolução inacabada; a opressão continua a existir em Cuba porque a exploração continua [ ... ]. Uma sociedade que não libertou a classe trabalhadora é incapaz de alcançar a libertação plena dos oprimidos. “A condição de um é a condição do outro”.

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