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abril 11, 2021

Primeiro, deve-se ficar claro que nesse texto vou tratar do liberalismo econômico, não do liberalismo social ou mesmo do liberalismo como um todo enquanto filosofia política. O liberalismo econômico é a doutrina que prega que os mercados sejam relativamente livres, que as tarifas sejam baixas, que os marcos legais sejam bem desenhados, enfim, é a doutrina que prega uma pequena intervenção do Estado na economia na medida do possível.

Ocorre que, hoje em dia, o liberalismo econômico é a doutrina dominante dentro do mainstream econômico. Ele é consistentemente respaldado pelas ferramentas teóricas e empíricas mais sofisticadas da Ciência Econômica. Como disse Pérsio Arida em uma entrevista ao Valor, “todo economista bem formado, que entende de fato como o mercado funciona, tende a ser liberal”. Em uma pesquisa sobre o posicionamento de economistas a respeito de vários tópicos, as posições que privilegiam o livre mercado tendem a ser dominantes dentro da profissão (pode-se dizer até que algumas posições liberais são consensuais, como a ideia de que tarifas de importação reduzem o bem-estar dos indivíduos). Até mesmo economistas que se consideram de esquerda, como Paul Krugman, adotam a respeito de muitos assuntos posições tradicionalmente ligadas ao liberalismo (aqui, por exemplo, ele defende consistentemente a ideia de vantagens comparativas).

Pode-se dizer, portanto, que a posição liberal de ascendência neoclássica exerce quase que uma hegemonia dentre os economistas mais destacados.

Mas nem sempre foi assim. Na primeira metade do século XX, principalmente após a Grande Depressão, a economia de mercado passou a ser altamente contestada como forma ideal de alocar os recursos da sociedade. A principal contestação intelectual da economia de mercado veio na obra de 1936 de John Maynard Keynes, "The General Theory of Employment, Interest, and Money". Essa obra trouxe os motivos teóricos que embasavam as demandas por intervenção estatal que já estavam presentes desde o início da depressão. Entre as principais ideias de Keynes, estava a de que o produto da economia e o emprego seriam determinados pela demanda agregada, e de que havia possibilidade da existência de desemprego involuntário, de modo que em muitos casos a intervenção governamental pra reaquecer a economia seria justificada.

Com isso, o liberalismo econômico foi enfraquecido. Mas ele, aos poucos, voltou e se sedimentou dentre os economistas acadêmicos, ao ponto de um dos maiores nomes da microeconomia do século passado, Gérard Debreu, ter chegado a afirmar que "a superioridade da economia liberal é incontestável e pode ser matematicamente demonstrada".

Como isso aconteceu? Pois bem, vamos fazer um passeio ao longo da história do pensamento econômico do século XX para entender um pouco isso.

Podemos começar falando sobre algumas importantes ideias econômicas que foram levantadas ainda antes de Keynes. Vamos começar falando sobre como Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek mostraram a importância da propriedade privada e do sistema de preços para a alocação racional de recursos. Em 1920, em "Economic Calculation in the Socialist Commonwealth", que deu início ao assim chamado "debate do cálculo econômico no socialismo", Mises elucidou como o mercado é importante para a alocação racional de recursos. A ausência de mercados levaria à bagunça econômica completa, com produção ineficiente daquilo que não seria demandado e demanda por aquilo que não seria produzido. Já Hayek, por sua vez, refinou o argumento esboçado inicialmente por Mises. Eu costumo dizer que tal autor fez uma "atualização" à ideia de mão invisível de Adam Smith, dando uma sofisticação maior a essa ideia. Em trabalhos como "The Use of the Knowledge in the Society" e "Economics and Knowledge", Hayek mostrou como o sistema de preços serve como um transmissor de informações na economia, indicando aos produtores o que deve ser produzido, como deve ser produzido e quanto deve ser produzido, e indicando aos consumidores seus custos de oportunidade de consumir algo. É por isso que a mão invisível funciona: o sistema de preços coordena as ações dos agentes econômicos.

Um teorema importantíssimo para a aceitação de que os mercados tendem alocar os recursos de forma eficiente é o Primeiro Teorema do Bem-Estar, creditado muitas vezes como o teorema mais importante da economia. Esse teorema foi desenvolvido e aprimorado ao longo da história do pensamento econômico por muitas mãos, mas chegou em sua forma mais refinada mediante dois artigos publicados paralelamente em 1951: "An Extension of the Basic Theorems of Classical Welfare Economics", de Kenneth Arrow, e "The Coefficient of Resource Utilization", de Gérard Debreu. O que esse teorema diz basicamente é que, partindo de condições bem gerais, como ausência de externalidades e informação perfeita, mercados competitivos são Pareto-eficientes, isto é, mercados competitivos geram uma situação em que ninguém pode melhorar sem que a situação de outra pessoa piore. Esse teorema foi importante ao mostrar que, como regra, mercados tendem a ser eficientes.

Mas quando estamos falando de liberalismo econômico, sem dúvidas o maior nome dessa doutrina no século passado foi Milton Friedman. A carreira inteira desse economista foi focada em evidenciar, sempre de forma rigorosa e científica, os benefícios sociais da estabilidade macroeconômica. A começar pela sua explicação sobre a Grande Depressão, exposta em seu livro em parceria com Anna Schwartz, "A Monetary History of the United States – 1867-1960", que mostrou que a depressão só ocorreu após uma enorme deflação nos agregados monetários. Segundo Friedman, a Grande Depressão seria apenas uma recessão comum se não fosse a irresponsabilidade do FED em permitir tal deflação. A explicação de Friedman para a Grande Depressão passou a rivalizar com a explicação de Keynes dentro da economia, muitas vezes a suplantando completamente.

Outro ataque de Friedman às teorias keynesianas foi na teoria do consumo. Em seu livro de 1957, "A Theory of the Consumption Function", Friedman mostrou que as pessoas tendem a poupar rendimentos que não são permanentes, de modo que as políticas keynesianas de fomento à demanda agregada, tanto no lado do gasto quanto da receita, não eram tão efetivas assim, uma vez que tendiam a ser passageiras.

Ainda outra contribuição importantíssima de Friedman, feita em um artigo de 1968 chamado "The Role of Monetary Policy", foi mostrar que, no longo prazo, políticas de combate ao desemprego não são efetivas, pois o desemprego gravita em torno da "taxa natural de desemprego". No longo prazo, o único resultado de tais políticas são uma maior taxa de inflação, o que seria prejudicial para a sociedade no fim das contas.

Acima de tudo, Friedman advogava pela não-intervenção governamental no âmbito macroeconômico. O papel do governo e do Banco Central deveria ser apenas o de garantir a estabilidade econômica -- pois, dada essa garantia, a economia se estabilizaria naturalmente. Muitas dessas ideias de Friedman estão presentes nas práticas fiscais e monetárias do governo e do Banco Central até hoje. Estão presentes até hoje no arcabouço teórico dos policy makers as ideias de que estabilidade monetária é fundamental e de que política macroeonômica ativa do governo pode desestabilizar a economia -- e tudo isso é devido, em grande parte, a Milton Friedman.

Um trabalho fundamental da economia no século passado foi "The Theory of Economic Regulation", de George Stigler. Em tal trabalho, esse economista esboçou a assim chamada "teoria da captura", mostrando como muitas vezes os órgãos reguladores agem em favor das empresas supostamente reguladas, criando barreiras de entrada aos competidores e promovendo, dessa forma, reservas de mercado às empresas reguladas. Esse seu trabalhou gerou uma agenda de pesquisa que passou a ver as regulações econômicas de uma forma muito mais cética que anteriormente.

Não podemos falar de liberalismo econômico no século XX sem citar a Escola da Escolha Pública. Essa escola aplicou os conceitos de economia dentro da política, chegando assim a muitos resultados interessantes. Até então, pouca coisa tinha sido formalizada a respeito do comportamento do agente político. Com os teóricos da escolha pública, foi mostrado que os políticos tendem a querer produzir cada vez mais burocracia e, ademais, que eles estão inclinados a atender as demandas de grupos de interesse por privilégios em detrimento de toda a sociedade. Um trabalho importante dessa tradição é o livro "The Calculus of Consent", lançado em 1962 por James Buchanan e Gordon Tullock. Um trabalho seminal que aborda a questão do rent-seeking feito por grupos de interesse é o artigo de 1974 "The Political Economy of the Rent-Seeking Society", de Anne Krueger.

Ainda nessa tradição de demonstrar o quanto os políticos possuem incentivos em intervir na economia para favorecer a si mesmos está o trabalho de 1975 de William Nordhaus, "The Political Business Cycle". Nesse artigo, o economista nobel de 2019 modelou como os governantes podem se aproveitar do trade-off de curto prazo entre inflação e desemprego para buscar vantagens políticas, como a reeleição.

Mas os políticos, ao tentarem utilizar as ferramentas econômicas que têm em mãos para benefício próprio, podem gerar estagflação (isto é, uma situação de inflação e desemprego altos) mesmo no curto prazo -- nem mesmo o médio prazo é necessário para que isso ocorra. Foi isso que argumentaram Robert LucasThomas SargentNeil Wallace, dentre outros, naquilo que ficou conhecida como a Escola Novo-Clássica. Ao considerarem em seus modelos que as expectativas são racionais, isto é, que os agentes econômicos se baseiam não apenas no que ocorreu no passado mas também no que eles esperam que ocorra no futuro, esses economistas propuseram a ideia de que a intervenção governamental é inútil para o aquecimento da atividade econômica mesmo no curto prazo. Eles fizeram isso em trabalhos como "Expectations and the Neutrality of Money" (Lucas, 1972) e "Rational Expectations, the Optimal Monetary Instrument, and the Optimal Money Supply Rule" (Sargent e Wallace, 1975).

Um trabalho que foi fundamental para a forma como os bancos centrais atuam hoje foi "Rules rather than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans", de Finn Kydland e Edward Prescott. Esse artigo foi fundamental para estabelecer a ideia de que o Banco Central deve buscar uma inflação estável, sem agir de forma discricionária.

Outro campo de proeminência de ideias liberais dentro da ciência econômica está na assim chamada Nova Economia Institucional, cujo pai fundador, Douglass North, possui trabalhos fundamentais mostrando como o respeito aos direitos de propriedade e um governo republicano limitado pela lei (ideias centrais dentro da tradição liberal) são muito importantes para o desenvolvimento econômico. Um trabalho que resume tais ideias é o livro de 1990, "Institutions, Institutional Change, and Economic Performance", desse autor.

Por fim, vamos falar sobre a importância de Paul Krugman para o liberalismo econômico. Esse economista criou toda uma agenda de pesquisa com dois artigos seminais: "Increasing Returns, Monopolistic Competition, and International Trade", de 1979, e "Increasing Returns, Monopolistic Competition, and International Trade", de 1980. Nesses artigos, Krugman basicamente reformulou a teoria do comércio internacional, colocando-o sobre bases muito mais rigorosas. A ideia de que o comércio internacional traria vantagens aos países que dele tomam parte estava cada vez mais sob ataque, porque os dados mostravam que o modelo de Heckscher-Ohlin, que é sustentado na ideia das vantagens comparativas, explicava pouco do padrão de comércio entre as nações. Ora, a ideia de que o comércio beneficia os países é baseada nas vantagens comparativas, e se as vantagens comparativas não explicam o comércio internacional, então não é possível dizer que o comério inernacional é vantajoso aos países. É aí que entra Paul Krugman, explicando que é possível demonstrar os benefícos do comércio internacional mesmo abrindo mão da ideia de vantagens comparativas, se baseando no conceito de competição monopolística.

Isso sem falar que Krugman é um dos defensores mais árduos do comércio internacional para o público leigo. Em vários livros que se tornaram best-seller (como "Internacionalismo Pop"), Krugman defende o comércio livre entre países e ataca as ideias protecionistas. Sim, Krugman é um keynesiano -- ele acredita que o governo deve ser ativo no combate a recessões e tende a ver os gastos governamentais com bons olhos --, mas isso não o impede de ser, ouso dizer, o maior nome do mundo na atualidade na defesa do comércio livre entre nações, que é um elemento essencial do liberalismo econômico.

Conclusão

O liberalismo econômico começou o século com grande reputação entre a classe dos economistas, e finalizou também com grande reputação. Mas no meio do caminho, foi grandemente desacreditado entre muitos economistas. Com o tempo, passou a ser novamente a corrente doutrinária dominante dentro da profissão, graças a muitos trabalhos acadêmicos, alguns dos quais foram citados ao longo desse texto.

Por fim, cabe destacar duas coisas:

Primeiro, os trabalhos acima citados não foram os únicos no século passado a evidenciarem as qualidades dos mercados. Muitos outros trabalhos poderiam ser citados. Poderíamos ter falado, por exemplo, sobre os resultados encontrados em economia política e crescimento econômico, como aqueles de Robert Barro e Alberto Alesina, que evidenciam como governos com gestões estáveis, com finanças em ordem e bem organizados promovem o crescimento.

Segundo, de forma alguma podemos imaginar a história do pensamento econômico como tendo um caminho linear de progresso, em que em um período todos os economistas pensam de uma forma, e no período subsequente todos pensam de outra forma. Confessadamente, eu dei a entender ao longo desse artigo que esse poderia ser o caso, mas certamente que não é. A história das ideias não é tão simplista e linear assim. Sim, houve uma tendência entre os economistas de se afastarem das ideias de livre mercado ao longo da primeira metade do século XX, e depois uma tendência de se aproximarem na segunda metade do século, mas, ao longo desse processo, houve muita heterogeneidade. Como exemplo, podemos citar os trabalhos dos novos-keynesianos, que são majoritários entre os macroeconomistas dos principais centros de pesquisa, e que tendem a favorecer intervenções governamentais em períodos de recessão.


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