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outubro 28, 2020

Muitos pensam que os Estados de bem-estar social, em especial os europeus, são exemplos últimos de um modelo que, através de uma ampla redistribuição de renda e uma rede de benefícios sociais, promove políticas públicas que priorizam os setores mais carentes da sociedade em detrimento dos mais ricos. Mas será que essa suposição é verdadeira? Um bom ponto de partida para a discussão está na análise da tabela abaixo:

Base234TopoTotal
Austrália 198142.822.213.312.59.2100.0
Austrália 198540.124.614.412.98.0100.0
Bélgica 198522.922.521.916.616.1100.0
Bélgica 198821.523.620.116.118.7100.0
Suíça 198238.519.215.613.313.3100.0
Canadá 198133.022.917.914.112.1100.0
Canadá 198729.524.219.215.012.1100.0
França 197919.721.218.817.722.6100.0
França 198417.521.818.417.724.7100.0
Alemanha 198421.822.216.721.018.3100.0
Irlanda 198732.021.921.315.29.6100.0
Itália 198615.616.419.720.727.6100.0
Luxemburgo 198517.318.319.522.522.4100.0
Holanda 198321.821.818.420.417.6100.0
Holanda 198724.921.316.917.719.2100.0
Noruega 197934.020.916.413.615.1100.0
Noruega 198621.516.614.212.211.0100.0
Suécia 198118.023.919.819.518.7100.0
Suécia 198715.225.821.719.917.4100.0
Reino Unido 197930.620.017.417.015.0100.0
Reino Unido 198626.725.919.416.111.9100.0
Estados Unidos 197929.721.117.414.717.1100.0
Estados Unidos 198629.221.217.117.515.1
Finlândia 198725.922.618.215.817.6100.0
(Atkinson, Rainwater, and Smeeding, 1995, Table 7.5, p. 107. Você pode encontrar a tabela original na p. 63 do excelente livro Public Choice III aqui).

Antes de adentrar na análise da tabela propriamente dita, deixe-me explicá-la rapidamente: ela faz parte de um estudo que envolveu as nações da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e determinou o percentual da verba pública que vai para cada “quintil” socioeconômico da sociedade por meio do aparato do bem-estar social existente.

O “quintil” é um conjunto de 20% da população. Por exemplo, o “quintil” da base são os 20% mais pobres, com renda menor que as das pessoas de quaisquer outros “quintiles”, e o “quintil” do topo são os 20% mais ricos, com renda maior do que as das pessoas de quaisquer outros “quintiles”.

Seguem alguns fatos curiosos sobre a tabela:

1 – Nos seguintes países, França, Itália, Luxemburgo e Suécia, as transferências fiscais destinadas aos 20% mais ricos (topo) superam aquelas destinadas aos 20% mais pobres (base). Por exemplo, na Itália, para o ano de 1986, os 20% mais pobres receberam 15,6% das transferências, enquanto os 20% mais ricos receberam 27,6%.

2 – Em dois desses países mencionados acima, França e Itália, a transferência fiscal para os 20% mais ricos supera aquelas destinadas para quaisquer outras faixas de renda da sociedade. Por exemplo, na França, em 1984, enquanto os 20% mais ricos (quintil do topo) receberam 24,7% das transferências fiscais, todos os demais “quintiles” receberam menos, sendo que o 2º quintil (os 20% de pessoas que ganham menos do que todos os outros quintiles, com exceção do quintil da base) foi o 2º a ter recebido mais transferências, no importe de 21,8%.

3 – Em todos os países estudados, com exceção da Noruega no ano de 1986 (mas não a Noruega no ano de 1979), a Austrália no ano de 1981 (mas não no anexo de 1985) e a Suíça, mais de 50% da transferência fiscal foram para os “quintiles” intermediários (o 2º, o 3º e o 4º). Por exemplo, mesmo na Austrália no ano de 1985, onde a transferência destinada para os 20% mais pobres foi particularmente alta (40,1%), as transferências destinadas aos 2º, 3º  e 4º quintiles somadas totalizam 51,9%. Ou seja, na maioria dos países estudados mais da metade da transferência fiscal vai para a classe média.

4 – Apenas um país destinou mais de 40% de suas transferências aos 20% mais pobres: Austrália.

5 – Suíça, Austrália e Irlanda destinaram mais de 30% de suas transferências aos 20% mais pobres, e Canadá, Noruega, Estados Unidos e Reino Unido fizeram isso em um dos dois anos estudados para cada um desses, mas não no outro ano estudado. Todos os demais países destinaram menos de 30% das transferências aos 20% mais pobres.

6 – Todos os países fazem transferência para os 20% mais ricos (topo). Contudo, apenas Austrália e Irlanda destinam menos de 10% das transferências para o topo, e, além dos dois anteriores, apenas Canadá, Suíça, Noruega em 1986 (mas não em 1979) e Reino Unido em 1986 (mas não em 1979), destinam menos de 15% das transferências para os 20% mais ricos.

O que poderia explicar esse intrigante resultado? Por que o Estado de Bem-Estar social, historicamente, não têm priorizado os mais pobres, mas sim a classe média? A razão está na chamada “Lei de Director” (Director’s Law), proposta pelo economista Aaron Director, pela qual os gastos públicos são feitos em benefício primário da classe média e financiados por meio de tributos extraídos em considerável parcela dos pobres e dos ricos.

George Stigler ofereceu uma explicação para sua ocorrência: a parcela da sociedade que pode assegurar controle sobre o aparato estatal o empregará para melhorar sua própria posição, e, sob determinadas condições de coalizão eleitoral, este beneficiário será a classe média. Exemplos disso estariam desde a legislação de salário mínimo até a seguridade social e isenções tributárias.

Milton Friedman observa que, em uma democracia, geralmente 51% dos votos são requeridos para vencer 49%, para fazer aprovar determinada lei. Se você pensar em termos de uma escala que vá dos mais pobres (na extremidade inferior) até os mais ricos (na extremidade superior), nada exige que os 51% estejam localizados abaixo, abarcando os mais pobres. Ao contrário, pelas razões que Friedman expõe, faz mais sentido que os 51% estejam posicionados no meio dessa escala, conforme Stigler sugeriu.

Como a Lei de Director depende do design das instituições, devemos optar por aquelas instituições políticas que limitem a capacidade de usar o aparato estatal para prover redistribuição em relação às classes médias. Na prática, limitar o poder redistributivo do Estado é limitar a incidência da Lei de Director.

Um bem-estar melhor seria muito mais pautado em um liberalismo suficientariano, sendo possível diminuir o tamanho do Estado e sua capacidade redistributiva e, ainda assim, melhorar a ajuda pública aos mais pobres, desde que os diversos programas governamentais sejam substituídos por transferências diretas de renda focadas nos mais desfavorecidos, como o próprio Bolsa-Família ou o Imposto de Renda Negativo (ou mesmo subsídios salariais, como proposto por Edmund Phelps), ao invés de serviços e benefícios oferecidos pelo Estado a todos. É por isso que o filósofo Loren Lomasky argumenta que, se John Rawls tivesse desenvolvido sua concepção de justiça focando nos aspectos potencialmente mais libertários dela, ele acabaria apoiando outro sistema político-econômico, com um livre mercado associado a uma rede de segurança focada nos setores mais pobres da sociedade.

E, como eu já defendi em uma apresentação para o EPL, é muito importante recuperar a concepção ética subjacente ao livre mercado: não impor os seus próprios custos aos outros. James Buchanan fala mesmo em recuperar a “religião cívica” do liberalismo clássico pela qual um indivíduo auto-confiante permanece zeloso de sua própria liberdade e seguro de sua própria habilidade em assegurar seu próprio bem-estar sob um Estado constitucionalmente limitado.

Portanto, ser crítico em relação ao Estado de Bem-Estar Social tradicional não é ser contrário aos pobres, uma vez que esse modelo tende a beneficiar a classe média de forma desproporcional. Um liberalismo suficientariano é um modelo melhor àquele cuja preocupação principal é com os mais pobres de uma sociedade. E, como Edmund Phelps bem concluiu, a América Latina (incluindo o Brasil) deve resistir à ideia de que deveria adotar o aparato de bem-estar social europeu, caso queira o renascimento de um vibrante capitalismo inclusivo.

Publicado originalmente aqui.

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