Em um salão de convenções quente na Filadélfia em 1788, o último membro da Convenção Constitucional colocou sua caneta sob a página e selou a escravidão a tinta como uma das instituições fundamentais dos EUA. No Capitólio, em 1866, após décadas de luta sangrenta, no campo de batalha e fora dele, a Décima Quarta Emenda foi aprovada pelos Republicanos abolicionistas sobre a oposição do presidente Andrew Johnson como parte do grande projeto de Reconstrução: a reformulação da nação e da Constituição em um novo fundamento da igualdade racial. Uma década de guerra de guerrilha e pânico econômico depois, em algum quarto desconhecido em Washington DC, o acordo corrupto polidamente conhecido como o Compromisso de 1877 foi firmado, elevando Rutherford B. Hayes à Presidência com a condição de que ele acabasse com a Reconstrução. E a longa sombra de Jim Crow caiu sobre os EUA.
As manifestações de Jim Crow estavam por toda parte nos Estados Unidos. Estava presente em bebedouros só para brancos, balcões de almoço só para brancos, assentos só para brancos em ônibus e trens. Estava presente em campos de algodão e tabaco queimados pelo sol e nas gerações de meeiros* endividados que trabalhavam lá. Jim Crow estava presente no miasma de violência e brutalidade que permeava nossa sociedade segregada e ocasionalmente explodia em linchamento e massacre – Tulsa, Atlanta, Wilmington, Rosewood e outros, além dos mais de quatro mil assassinatos públicos cometidos por “pessoa ou pessoas desconhecidas” de Nova York à Califórnia.
*Nota: Meeiro é um agricultor que trabalha em terras de outra pessoa e reparte seus rendimentos com o dono dessas terras.
Mas as Leis Jim Crow eram mais do que mero animus, não se tratava de apenas uma coleção de racismo espontâneo, mas sim de um sistema de economia política que se sustentou por quase um século. As ideias desenvolvidas por Douglass North, John Joseph Wallis e Barry Weingast em seu livro "Violence and Social Orders" podem ser usadas para entender o sistema e a lógica de Jim Crow – um sistema e uma lógica compartilhados por muitas ordens sociais ao longo da história humana. Essas “ordens de acesso limitado” são construídas em uma combinação de exclusão social e rendas/aluguéis econômicos*. A exclusão social significa que os poderosos excluem os impotentes de vários aspectos da participação social – especialmente o acesso à organização política e ao sucesso econômico. Essa exclusão gera inerentemente rendas econômicas - segundo Beth Stratford, essas rendas são “rendimentos não ganhos** decorrentes do controle sobre ativos escassos ou monopolizados… em vez de trabalho ou sacrifício”. Essas rendas são então (desigualmente) distribuídas pela coalizão governante. Isso garante seu compromisso com a manutenção do sistema e fornece a eles os recursos para continuar impondo a exclusão na qual ele se baseia – violentamente, se necessário.
*Nota: Em economia, renda econômica é qualquer pagamento (no contexto de uma transação de mercado) a um proprietário ou fator de produção que exceda os custos necessários para trazer esse fator à produção.
**Nota: “Renda não ganha” é um termo cunhado por Henry George para se referir à renda obtida através da propriedade de terras e outros monopólios. Hoje o termo muitas vezes se refere a renda recebida em virtude de possuir propriedade (conhecida como renda de propriedade), herança, pensões e pagamentos recebidos da previdência pública.
Esta análise revela como Jim Crow se sustentou ao longo de gerações. Excluiu os negros americanos de quase todos os aspectos da vida social: educação, emprego, finanças, política, justiça. Como tal, isso gerou rendas não ganhas para os americanos brancos: menos competição por empregos, poder político, impunidade legal, um pool de mão de obra barata (para agricultura, serviços, serviços domésticos) e, criticamente, a aposta psíquica da hierarquia: o entendimento seguro que o homem branco em posição mais baixa ainda era mais alto que o homem negro em posição mais alta. Essas várias “rendas” trabalharam juntas para permitir que os americanos brancos, por sua vez, mantivessem a exclusão que as geraram. O agora notório Massacre de Tulsa de 1921 ilustra essa dinâmica. Uma multidão de brancos desceu no bairro Greenwood de Tulsa, Oklahoma, reduzindo o bairro a cinzas, matando entre 150 e 300 homens, mulheres e crianças negros, ferindo centenas e deixando mais de dez mil pessoas desabrigadas. Não por coincidência, Greenwood, conhecida como Black Wall Street, era na época uma das comunidades negras mais ricas do país. Também não por coincidência, nem uma única pessoa foi processada pelo massacre. Em outras palavras: a elite branca agiu para impor a exclusão dos negros americanos da participação econômica e do sucesso, e foi habilitada a fazê-lo pelas várias “rendas” e privilégios que o sistema lhes proporcionava.
Cidadão Proprietário
Em 1964, em uma sala de conferência televisionada na Casa Branca, após décadas de luta sangrenta do movimento dos direitos civis, o presidente Lyndon Baines Johnson sancionou a Lei dos Direitos Civis, formalmente encerrando as Leis Jim Crow e a segregação racial de jure em todos os Estados Unidos. E, no entanto, desde aquele momento, um sistema de hierarquia racial diferente veio para dominar nossa nação. Este sistema não tinha um autor, nenhum começo, nenhuma lei. Foi construído em táticas pioneiras durante Jim Crow, como redlining* e zoneamento de exclusão**. Essas práticas sobreviveram ao fim de Jim Crow e, desde então, penetraram em todos os níveis da sociedade americana, desde os conselhos municipais até o Federal Reserve. Vou chamá-lo de “Cidadão Proprietário”, e é o sistema em que vivemos hoje.
*Nota: Nos Estados Unidos, redlining é uma prática discriminatória na qual os serviços (financeiros e outros) são retidos de clientes potenciais que residem em bairros classificados como 'perigosos' ao investimento. Esses bairros têm um número significativo de minorias raciais e étnicas e moradores de baixa renda. Veja mais aqui.
**Nota: O zoneamento de exclusão é o uso de portarias de zoneamento para excluir certos tipos de uso da terra de uma determinada comunidade, especialmente para regular a diversidade racial e econômica. Nos Estados Unidos, os regulamentos de zoneamento de exclusão são padrão em quase todas as comunidades. O zoneamento de exclusão foi introduzido no início de 1900, normalmente para impedir que minorias raciais e étnicas se mudem para bairros de classe média e alta. Veja mais aqui.
As manifestações do “Cidadão Proprietário” estão por toda parte nos EUA. “Cidadão Proprietário” está presente em Connecticut com proprietários lotando uma prefeitura na tarde de quarta-feira, revezando-se no microfone para gritar sobre a ameaça representada por um único novo prédio de apartamentos na vila. O “Cidadão Proprietário” está presente em autoridades locais do Harlem a Haight-Ashbury lutando incansavelmente contra o novo desenvolvimento multifamiliar em seus distritos. “Cidadão Proprietário” está presente nos exúrbios da Califórnia envoltos em incêndios florestais e nas rodovias de oito pistas que os tornaram possíveis. “Cidadão Proprietário” marca presença no “maestro”, Alan Greenspan, falando sobre o grande trabalho de manter o patrimônio dos americanos, mesmo enquanto ele conduzia o país como sonâmbulo à pior catástrofe econômica desde a Grande Depressão. “Cidadão Proprietário” está presente nas tendas debaixo das pontes, na família de dois rendimentos que vive num carro em um parque de estacionamento e nos biliosos editores de opinião exigindo que os sem-abrigo sejam removidos para o bem das pessoas “normais”.
Assim como Jim Crow, o conceito de ordem de acesso limitado revela a economia política subjacente a esses fenômenos díspares. Pois a verdade fundamental sobre a América moderna é que, ao controlar o acesso à moradia, você controla o acesso a inúmeras outras formas de participação social, econômica e política. Onde você mora determina onde seus filhos vão estudar. Onde você mora determina a quais empregos você tem acesso. Onde você mora determina em quais eleições você pode votar — e o quanto esse voto importa. Onde você mora - e se você possui esse local de residência - determina a rapidez com que você acumula riqueza. A dobradiça do “Cidadão Proprietário” é a exclusão: excluindo vastas faixas de americanos do acesso a essas formas de participação social, garantindo que a moradia – especialmente nos bairros mais desejáveis – permaneça escassa. Essa escassez é imposta por uma ampla gama de regulamentos: leis de zoneamento, códigos de construção, limites mínimos de estacionamento, processos de revisão intermináveis e outros. Esses regulamentos servem para tornar difícil e caro construir moradias em bairros desejáveis nas quantidades desejadas. E essa exclusão gera “rendas” em todos esses domínios que se acumulam para a elite proprietária: em primeiro lugar, a propriedade da casa, mas também escolas exclusivas, poder político e empregos bem remunerados. Essas “rendas” solidificam o apoio ao regime do “Cidadão Proprietário” e, simultaneamente, permitem que suas elites mantenham essa exclusão.
O movimento de secessão municipal em curso em Buckhead ilustra essa dinâmica. Buckhead é uma seção altamente desejável de Atlanta, Geórgia: o preço médio das casas listadas em Buckhead é de $842.000, em comparação com os $474.000 de Atlanta em geral. Essas rendas da terra são preservadas pela escassez artificial de moradias em Buckhead, impulsionada por décadas de leis de zoneamento permitindo apenas edifícios unifamiliares, entre outras medidas contra o desenvolvimento de moradia na região. Em 2021, em resposta à proposta do Conselho da cidade de realizar um Upzoning* em Atlanta de forma geral (e certas partes de Buckhead), os proprietários formaram um comitê de ação política com o objetivo de se separar de Atlanta. Entre outras coisas, isso lhes permitiria separar sua base tributária e seu distrito escolar de Atlanta. Em outras palavras: aumentaria a exclusividade das formas específicas de acesso que sua casa própria oferece, inclusive à política, educação e riqueza. Sem surpresa, sua capacidade de sustentar essa campanha política em nível estadual está ligada à riqueza e à legitimidade social que sua casa própria lhes trouxe.
*Nota: Upzoning, no uso atual do Urbanismo, significa mudar o zoneamento de uma área de terra para uso mais intensivo, misto e/ou de maior densidade. Por exemplo, desde o zoneamento "unifamiliar" que permite apenas uma unidade por lote, até uma designação que permita uma construção de 4 unidades no mesmo lote.
Eu ainda não mencionei raça, e alguns leitores podem argumentar que eu injustamente culpei o “Cidadão Proprietário” ao associá-lo a Jim Crow. Então deixe-me ser franca. O Cidadão Proprietário é um sistema melhor do que Jim Crow? Sim. É menos violento? Sim. Menos excludente? Sim. Não nego que o “Cidadão Proprietário” seja uma melhoria marcante em relação ao que veio antes – assim como Jim Crow foi uma melhoria marcante em relação à escravidão. Não vou especular sobre o plano ou intenção daqueles que construíram o “Cidadão Proprietário”, porque provar isso não é apenas tedioso, mas é irrelevante: a verdade é que o “Cidadão Proprietário” é construído sobre a mesma economia política de “rendas” e exclusão, e opera para manter a mesma hierarquia racial.
Vamos considerar os fatos. Sim, nominalmente, qualquer um pode comprar seu caminho para a elite dos proprietários. Mas em um mundo onde o patrimônio imobiliário está sempre aumentando mais rápido do que os salários ou a inflação, torna-se cada vez mais difícil fazer essa compra, especialmente porque a própria moradia é necessária para o acesso a empregos bem remunerados e ativos de alto retorno. A menos, é claro, que sua família já faça parte da elite dos proprietários de imóveis, capaz de transmitir sua filiação ao clubinho na forma de transferências geracionais do patrimônio da casa. É uma coincidência tão estranha que, no final de Jim Crow, a maior parte da riqueza de nossa nação — e a maior parte de suas melhores moradias — pertencia a americanos brancos. E é claro que nenhuma reparação foi paga aos que foram excluídos. Talvez isso por si só seja suficiente para explicar a persistência da imensa diferença de riqueza racial, com a família branca mediana possuindo dez vezes mais riqueza do que a família negra mediana.
Mas a verdade é que a exclusão dos negros americanos das boas moradias continua a ser mantida ativamente em todos os níveis. Ela é mantida pela ação direta de inúmeros agentes de crédito, avaliadores de imóveis, corretores de imóveis e vendedores racistas. Isso é racismo explícito, mas muitas vezes invisível em uma escala que choca a consciência – recomendo dar uma olhada nas histórias linkadas para ter uma noção da magnitude do roubo de riqueza de que estamos falando aqui. Mas vai além disso. Como o acesso social está ligado à moradia, é possível manipular o acesso e o sucesso do grupo racial manipulando a moradia de uma forma facialmente neutra em relação à raça. A localização das rodovias (e outras infra-estruturas ruidosas) ilustra claramente essa dinâmica. Essa infraestrutura pode destruir o valor de certas habitações (bairros negros demolidos), ao mesmo tempo que aumenta o valor de outras (subúrbios brancos). A localização da infraestrutura não é o único método, é claro – Danielle Purifoy e Louise Seamster referem-se aos vários processos de “extração criativa” pelos quais os padrões de investimento e desinvestimento públicos manipulam os valores das propriedades.
Sob a superfície do “Cidadão Proprietário” está a longa sombra de Jim Crow, persistente.
Abundância de habitação
A análise de North, Wallis e Weingast não apenas ilumina a estrutura do “Cidadão Proprietário”. Ela fornece um roteiro para desmontá-lo. Eles contrastam ordens de acesso limitado com ordens de acesso aberto: sociedades que são estruturadas para permitir que todos os cidadãos tenham acesso à participação social de forma impessoal e, especialmente, acesso à participação econômica e política. É claro que as “rendas econômicas” podem existir em tais sistemas - mas a própria existência da “renda” dá a todos um forte incentivo para entrar nessa área da vida econômica e obter sua fatia dela. E esse próprio processo de aumento da participação corrói a renda em questão. Colocando em termos mais práticos: “Cidadão Proprietário” é construído sobre as rendas geradas pelo acesso exclusivo à habitação. Podemos começar a queimá-lo pela raiz simplesmente abrindo o acesso à habitação. O acesso aberto encoraja mais pessoas a entrar em mercados imobiliários altamente desejáveis, acabando por corroer as próprias “rendas” que sustentam o sistema e substituindo-os por maior prosperidade compartilhada. A frase “acesso aberto à habitação” é um pouco vaga. Em termos práticos, significa duas coisas: primeiro, reformas no estilo YIMBY dos códigos de zoneamento e construção; segundo, programas de habitação social.
YIMBY – “Yes In My Back Yard” – a análise começa a partir do fato de que a habitação nos EUA é mantida artificialmente escassa por uma ampla variedade de regulamentações. Isso inclui zoneamento apenas para uma família, mas também requisitos mínimos de estacionamento, requisitos de proporção de área útil, processos de revisão da comunidade, leis ambientais mal projetadas, códigos de construção desatualizados que exigem que grandes edifícios sejam construídos de maneiras caras e ineficientes e vários outros. Todos esses regulamentos significam que é demorado, caro e, em muitos casos, simplesmente ilegal construir moradias densas em bairros desejáveis. Ao reformar ou eliminar esses regulamentos anti-habitação e abrir o acesso ao mercado imobiliário, podemos criar um forte incentivo para que indivíduos e organizações produzam mais oferta habitacional. O valor de cada unidade individual em um fourplex pode ser menor do que uma unidade unifamiliar construída no mesmo lote - mas o valor de todo o fourplex é substancialmente maior.
O Plano Minneapolis 2040 é um bom exemplo dessa dinâmica. Em 2018, o Conselho da cidade aprovou um conjunto de reformas habitacionais. Eles legalizaram os duplex e triplexes em todas as zonas que anteriormente permitiam apenas unidades unifamiliares, eliminaram a quantia mínima obrigatória de estacionamento, dividiram os corredores de trânsito e afrouxaram várias outras leis anti-habitação e anti-desenvolvimento. Como resultado, a construção de moradias está crescendo em Minneapolis, e os aluguéis reais estão em queda em toda a cidade – mesmo com o aumento dramático dos aluguéis nacionalmente. Este é o poder da ordem de acesso aberto em funcionamento: você pode ganhar dinheiro fornecendo a outras pessoas bens e serviços valiosos que elas desejam muito – como, por exemplo, moradia de alta qualidade perto de bons empregos e boas escolas.
Mas precisamos mais do que uma reforma regulatória. Se o acesso à moradia continua sendo um método tão fundamental de acesso a todas as outras formas de participação social – e isso acontece, basta perguntar a um sem-teto – então devemos garantir que as pessoas não caiam da base da escada. Esta é uma questão de direitos humanos básicos e necessidade humana. Também pode ser uma questão de cálculo cínico, se isso for mais fácil para você: o custo dos serviços sociais criados pelos sem-teto é substancialmente mais alto do que o custo de simplesmente abrigar os sem-teto. E mesmo além da falta de moradia de fato, a pobreza severa pode forçar os indivíduos a situações de habitação inferior ou exploradora. Há muitas propostas de como o Estado pode intervir aqui; pessoalmente, sou a favor de um promotor público de habitação social de renda mista no modelo de Viena. Embora ainda haja debate sobre os detalhes, o ponto mais profundo do entendimento é que manter o acesso aberto à participação social para todos requer manter o acesso à moradia para todos – mesmo o menor entre nós.
A prisão da mente
Isso nos leva à objeção, aquela que você ouve repetidamente dos NIMBYs, a vanguarda ideológica do “Cidadão Proprietário”. Isso não equivale a apenas uma transferência de riqueza – essas “rendas” de que falei – dos proprietários de imóveis para os recém-chegados? Os proprietários de imóveis em exercício não têm o direito de defender o que trabalharam tanto para construir – seu bairro, seu patrimônio imobiliário, seu modo de vida – de construtores devastadores? Todas essas novas moradias não vão simplesmente destruir as coisas boas que trouxeram as pessoas para lá em primeiro lugar?
Essa mentalidade é comum - também é falsa, e chegaremos a isso -, mas é comum e é importante entender o porquê. A ordem de acesso limitado é uma prisão da mente tanto quanto uma prisão do corpo. Isso começa com o fato econômico básico das ordens de acesso limitado: um sistema construído sobre a exclusão e as “rendas” geradas por ela não é um sistema que prevê o crescimento econômico de longo prazo. As elites estão obcecadas em manter a exclusão e suas “rendas não ganhas”, em vez de produção ou inovação. Os excluídos também têm pouco incentivo para serem produtivos, porque qualquer produtividade extra é desviada para as “rendas” da elite. O mundo mergulha na questão de quem fica excluído e quem recebe as “rendas”(limitados), e o resultado é a estagnação econômica de longo prazo – um jogo de soma zero. Esses fatos materiais são inevitavelmente acompanhados por uma mentalidade de soma zero: “o ganho de qualquer outro deve ser a minha perda.” E essa mentalidade é constantemente reforçada pelo salário psíquico da hierarquia: aquela sensação calorosa que você tem no coração, sabendo que você é um dono de casa trabalhador fazendo seu próprio caminho, não como aqueles criminosos viciados em drogas preguiçosos que você vê acampados sob os viadutos em seu caminho para o trabalho.
Nós construímos um mundo em que sua casa é sua fortaleza, e também seu seguro de saúde, e também seu controle de aluguel, e também seu fundo de faculdade e seu fundo de aposentadoria e seu fundo de dia chuvoso e tudo mais junto. Sua casa é seu modo de vida, e você sente um verdadeiro terror por qualquer coisa que possa ameaçar isso. E essa mentalidade afeta até mesmo aqueles que não estão no topo da escada: todo mundo sabe que a moradia é o ingresso para o sucesso, e estamos todos focados em garantir que recebamos nosso ingresso. A cerca branca é uma aspiração que colonizou a imaginação mesmo daqueles que têm pouca esperança de alcançá-la.
Esta não é uma distorção moderna bizarra da mente humana. Esta é a mentalidade que governou o mundo desde o desenvolvimento da agricultura em algum lugar entre cinco e dez mil anos atrás. A terra era de longe o fator de produção mais importante. E havia muito disso: para um ter mais, outro deve ter menos. O crescimento econômico per capita de longo prazo foi em média de zero por cento. Era um mundo de soma zero. Não foi muito mais do que duzentos anos atrás que uma nova verdade mudou o curso da história humana: o acesso aberto é melhor para todos, até mesmo para as elites. Essa é a estranha verdade que reformulou a história humana e se aplica tanto à habitação quanto a qualquer outra coisa.
A escassez de moradias pode aumentar o valor da sua casa, mas na verdade não produz nada. Não cria nenhum novo bem ou serviço no mundo do qual as pessoas possam se beneficiar. Na verdade, estrangula a criação de novos bens e serviços, ao afastar as pessoas das cidades dinâmicas onde o crescimento econômico acontece. Toda pessoa que não pode se mudar para o Vale do Silício e fica presa em alguma cidade sem saída é menos produtiva e, como resultado, todos somos mais pobres – o trabalhador excluído, que poderia ganhar a vida de forma melhor fornecendo bens ou serviços úteis, e a pessoa que poderia comprar esses serviços. Cada criança presa nessas cidades indo para uma escola ruim em um bairro ruim porque seus pais não podem pagar moradia em outro lugar é pessoalmente privada dos benefícios de uma educação melhor - e assim é com todos os outros. O ciclo virtuoso da ordem de acesso aberto, o aumento da produtividade e inovação das próprias cidades alimentando mais inovação e dinamismo, está sendo sufocado pelo “Cidadão Proprietário”. Quando a moradia em sua cidade se torna tão cara que você não pode mais contratar pessoas para ensinar seus próprios filhos, isso não é bom para ninguém. Para colocar um número forte: estima-se que as políticas anti-habitação apenas da cidade de Nova York, San Jose e San Francisco tenham aberto um buraco de dois trilhões de dólares na economia americana.
Conclusão
A escravidão lança uma longa sombra. Nosso sistema duradouro de hierarquia racial pode parecer insuperável, o “Cidadão Proprietário” está enraizado junto com muitos outros sistemas que devemos superar. A concentração cada vez maior de crescimento econômico (e, portanto, empregos) nas cidades é uma maré que vem rolando há trezentos anos, e nenhuma política pública e nenhum político pode detê-la. Escolas locais financiadas por impostos sobre propriedade locais, governos locais eleitos por eleições locais: isso também está profundamente inserido na ordem constitucional americana. E o interior do coração humano sempre resistiu às políticas do governo – assim como os corações racistas de todos aqueles corretores de imóveis, agentes de crédito e avaliadores de propriedades. Felizmente, North, Wallis e Weingast sugerem uma maneira de lidar com esse sistema de exclusão, “rendas” e hierarquia racial sem precisar tocar em nada disso: acesso aberto à habitação. O fim da exclusão habitacional dá aos atores privados um forte incentivo para competir por essas “rendas” construindo novas habitações e, ao mesmo tempo, permite a construção pública de habitações sociais.
Não quero sugerir que a reforma habitacional seja uma pílula milagrosa que resolverá todos os males da sociedade: manifestamente não o fará. Mas é mais um passo adiante em nosso longo e vacilante progresso rumo a uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária: uma sociedade em que todos, independentemente de raça, cor ou credo, tenham a oportunidade de acessar formas fundamentais de participação social: um emprego bem remunerado, participação eleitoral, boas escolas para seus filhos, parques e transporte público, outras comodidades, e um lugar seguro para descansar à noite.
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Autora: Samantha Hancox-Li
Tradutor: Davi dos Anjos
Revisor: Fernando Moreno
Publicado originalmente em 29 de agosto de 2022 aqui.

Arte, cidades, liberdade, justiça e progresso