Procure no site:

março 13, 2023

Desmistificando narrativas do final dos anos 70 e início dos anos 80

Se você, como eu, cresceu nos Estados Unidos da América, provavelmente já ouviu uma história do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 que é mais ou menos assim: “Nos anos 70, as políticas esquerdistas de estado grande de Carter resultaram em inflação descontrolada. Reagan entrou e derrotou a inflação e produziu um 'boom' econômico com desregulamentação e cortes de impostos. Reagan também embarcou em uma massiva farra de gastos com defesa que, embora tenha aumentado muito o déficit, forçou a URSS a ir à falência tentando se manter, e assim venceu a Guerra Fria”.

Isso pode soar como um espantalho, mas as narrativas que contamos uns aos outros sobre o passado geralmente consistem exatamente desses espantalhos. E desmascarar essas narrativas pode parecer como atirar em alvos fáceis, mas é útil para dar uma olhada mais de perto na história.

De qualquer forma, a narrativa acima está quase totalmente errada. Carter foi um desregulador que não aumentou muito os déficits e nomeou o presidente do Fed que venceu a inflação. Reagan não desregulamentou muito, nem aumentou muito os gastos com defesa como parcela do PIB – e a URSS não caiu por causa da corrida armamentista. Vamos passar por esses pontos um por um.

1) Carter foi quem venceu a inflação.

A maioria dos economistas acredita que a inflação sustentada, como a que vimos nos anos 70, é resultado de alguma combinação de política monetária frouxa e déficits fiscais. Na década de 70, o Fed provavelmente executou uma política monetária frouxa, contribuindo para a inflação do período. Isso acabou com Paul Volcker, que aumentou as taxas de juros até que as pessoas percebessem que o Fed não tolerava mais a inflação alta. Isso teve um grande custo - duas recessões agudas.

Mas foi Jimmy Carter quem nomeou Volcker como presidente do Fed, em 1979. Volcker foi nomeado especificamente para fazer esse trabalho, já que era conhecido como um “falcão” da inflação, e Carter reconheceu a inflação como o maior problema econômico da América. O novo presidente do Fed aumentou as taxas de juros até 17,61% sob Carter, causando a primeira das duas recessões, em 1980.

Essa recessão provavelmente contribuiu para a derrota de Carter. O fato de Carter saber que domar a inflação provavelmente causaria uma recessão mostra como ele levava o problema a sério.

Mas Carter contribuiu para a inflação com uma política fiscal frouxa? Dificilmente. Ele herdou um déficit modesto de seu antecessor, Gerald Ford, e o manteve aproximadamente no mesmo nível durante sua presidência:

Ele também não mudou muito os gastos.

Portanto, os déficits de Carter foram muito menores do que os de Reagan nos anos 80. Isso sugere que os déficits fiscais não eram realmente o que impulsionava a inflação nos anos 70 (uma vez que os déficits aumentaram e a inflação caiu sob Reagan). Em vez disso, foi a política monetária, que se tornou mais rígida graças à indicação de Carter de um falcão da inflação. Reagan, é claro, recebe crédito parcial aqui por manter Volcker por um tempo (antes de finalmente demiti-lo). Mas Carter é quem fez o trabalho pesado aqui, assumindo o risco de uma recessão em um ano eleitoral - o que pode explicar em partes sua derrota.

2) Carter foi o Grande Desregulador, não Reagan.

Reagan fez campanha com promessas de desregulamentação e nomeou pessoas para agências reguladoras que tendiam a usar um toque leve. Mas quando se trata de políticas reais de desregulamentação implementadas, Carter fez substancialmente mais do que Reagan. Ele desregulamentou companhias aéreas, energia, caminhões, ferrovias, telecomunicações, finanças e muito mais.

Não acredite apenas na minha palavra - acredite na libertária Foundation for Economic Freedom!

Carter tem uma reputação muito ruim, principalmente entre libertários e conservadores, mas não está totalmente claro por quê... O legado mais duradouro de Carter é como o Grande Desregulador. Carter desregulamentou petróleo, caminhões, ferrovias, companhias aéreas e cerveja.

A revista libertária Reason, outra oponente inveterada da regulamentação, concorda:

A Reason nunca teve vergonha de elogiar Jimmy Carter por seu papel na desregulamentação de preços de passagens aéreas e caminhões interestaduais (e cerveja!). Na AOL News, B. Kelly Eakin e Mark E. Meitzen nos lembram [da Staggers Rail Act], um terceiro sucesso de desregulamentação relacionado ao transporte que Carter promoveu.

Grande parte da agenda de desregulamentação de Carter veio das pessoas que ele nomeou. Por exemplo, havia Alfred E. Kahn, um economista que Carter indicou para presidir o Conselho de Aeronáutica Civil. Kahn era um desregulador radical, testemunhando ao Congresso disse que “a superioridade dos mercados abertos… reside no fato de que o resultado ideal não pode ser previsto”. Muitos de seus outros nomeados tinham ideias semelhantes. A administração era tão voltada para a desregulamentação que até discutiu a limitação sistemática da regulamentação como uma política permanente:

Em 1980, o Economic Report of the President de Carter discutiu propostas para desenvolver um 'orçamento regulatório', semelhante ao orçamento de despesas, como uma estrutura para examinar o ônus financeiro total imposto pelos regulamentos, para estabelecer alguns limites a esse ônus e para fazer compensações dentro desses limites.

E Reagan? Apesar de sua retórica inflamada, Reagan durante seus dois mandatos conseguiu aprovar apenas duas leis que entraram na lista de desregulamentações significativas da Wikipédia — uma desregulamentação dos ônibus e outra de poupança e empréstimos. Carter, durante seu mandato, aprovou sete importantes leis de desregulamentação. Aqui está a lista da Wikipédia:

Grande parte da desregulamentação de Carter ocorreu no final de sua presidência, então os americanos realmente não sentiram os efeitos até Reagan assumir o cargo. Isso, além da retórica da campanha e dos estereótipos partidários, pode ser o motivo pelo qual Reagan é geralmente lembrado como o Grande Desregulador. De fato, foi Carter.

3) Reagan não aumentou muito os gastos com defesa.

Muitas pessoas de ambos os lados do espectro político acham que Reagan embarcou em um gigantesco boom de gastos com defesa em tempos de paz, forçando a URSS a ir à falência tentando se manter em linha. Para avaliar esta afirmação, vou contar com alguns gráficos do excelente Jose Luis Ricon. Em termos de dólares, Reagan certamente impulsionou os orçamentos militares:

Mas observe quando os gastos soviéticos subiram e caíram. Ele disparou durante a década de 1970, subiu apenas ligeiramente durante o primeiro mandato de Reagan e depois começou a despencar. Isso parece contrariar a narrativa de que a URSS estava se esforçando para acompanhar os EUA. No mínimo, sugere que a ascensão de Reagan foi uma reação à ascensão soviética que havia começado sob Carter!

De qualquer forma, porém, quando olhamos para o crescimento da defesa de Reagan como uma porcentagem do PIB, o resultado parece muito menos impressionante:

Historicamente, eles se parecem insignificantes. Claro, eram tempos de paz, e os desembolsos militares (proporcionalmente) muito maiores das décadas anteriores tinham o propósito de travar guerras. Mas este foi um preço surpreendentemente baixo para enfrentar uma superpotência rival! E embora os dados soviéticos sejam irregulares, você pode ver que eles de forma alguma faliram se igualando aos gastos de defesa de Reagan; seus gastos foram proporcionalmente muito menores do que durante a Segunda Guerra Mundial e caíram durante o mandato de Reagan.

Portanto, esta é outra narrativa histórica que foi claramente exagerada.

4) A queda da URSS é mais complicada.

Então, Reagan realmente venceu a Guerra Fria? A queda de uma superpotência como a URSS é um fenômeno muito complexo e é difícil dar uma resposta definitiva sobre por que os EUA realmente venceram a Guerra Fria. Certamente não sou especialista em história ou política soviética. Mas a explicação econômica mais convincente que ouvi para o colapso soviético no final dos anos 80 vem de Yegor Gaidar, um oficial soviético que mais tarde se tornou primeiro-ministro da Rússia. Em seu livro Collapse of an Empire, de 2007, Gaidar conta a história de como a URSS passou gradualmente de uma economia esclerosada baseada na manufatura para um petroestado esclerosado. Quando os preços do petróleo caíram no glut do petróleo que começou por volta de 1985, a rígida economia soviética – que também regulou demais o comércio, a agricultura e um monte de outras coisas – entrou em colapso junto com eles.

Mas por que os preços do petróleo caíram? Essencialmente, os choques do petróleo da década de 1970 fizeram com que muitos produtores não pertencentes à OPEP aumentassem a produção e/ou a exploração, resultando em um atrasado, mas massivo, aumento da oferta. Os EUA não tiveram grande participação nisso - apesar da conclusão do Trans-Alaska Pipeline System em 1977 e das ordens executivas de Carter em 1979 e Reagan em 1981 desregulamentando os preços do petróleo, a produção dos EUA aumentou apenas um pouquinho:

O excesso de energia que deu à URSS seu golpe econômico final não veio de nada que os Estados Unidos fizeram, mas das ações de vários outros países - Reino Unido, Brasil, Índia, Egito, Omã, Malásia e assim por diante.

Militarmente, porém, vale ressaltar que a grande derrota militar da URSS ocorreu no Afeganistão. E embora essa guerra tenha durado até 1989, a decisão inicial crucial de armar os oponentes mujahideen dos soviéticos veio de - você adivinhou - Jimmy Carter.

Então, em termos de acabar com a Guerra Fria, Reagan manteve principalmente um curso que Carter havia iniciado - armar os oponentes da URSS, aumentar a produção de petróleo e emitir condenações morais da URSS enquanto se engajava em negociações de controle de armamentos com ela ao mesmo tempo.

Quais são as lições aqui?

Então, o que aprendemos com os mal-entendidos em torno desses dois presidentes? Uma lição, obviamente, é que as narrativas que contamos sobre a história são em grande parte construídas após o fato, por atores que têm interesse em pintar um certo quadro do passado recente. Mas outra é que uma política bem-sucedida leva muito tempo para funcionar. Carter desregulamentou, nomeou um forte combatente da inflação para o Fed e financiou os oponentes militares da URSS. Mas foi só nos anos 80 que a economia cresceu, a inflação caiu e a URSS enfraqueceu e caiu. Em 1980, quando Reagan venceu Carter para a presidência, ainda parecia que nada estava funcionando e tudo ainda estava dando errado - embora as medidas políticas cruciais que mudariam as coisas já tivessem sido amplamente tomadas.

Outra lição, penso eu, é que a política americana é guiada menos pela ideologia e pela personalidade presidencial do que pensamos. Houve muito mais continuidade do que ruptura entre Carter e Reagan. (E estamos reaprendendo esta lição agora, observando Biden continuar a guerra comercial de Trump, sua abordagem agressiva à China e até mesmo algumas de suas políticas restritivas de imigração, deixando grande parte de sua reforma tributária intocada.) Nós, americanos, tendemos a agir como se toda eleição presidencial é um cataclismo que determinará o destino da nação, e ocasionalmente isso é verdade - mas geralmente, provavelmente há menos em jogo do que pensamos.

.

Autor: Noah Smith
Tradutor: Sérgio Diotaiuti

Publicado originalmente aqui.

One comment on “Muito do que você ouviu sobre Carter e Reagan está errado”

Deixe seu comentário. Faça parte do debate