Introdução
O Iluminismo nos abençoou com diversos avanços e abriu portas para outros vieram em seguida. Claramente o liberalismo foi seu principal legado, mas o próprio se ramificou ainda mais em outras ideias. O liberalismo é uma das ideologias mais importantes, pelo menos, dos último quatro séculos, e sem dúvidas influenciou desde conservadores até socialistas durante a história. Como uma vez Tony Blair muito bem afirmou em uma convenção da Fabian Society que os atuais socialistas democráticos são legados das ideias do liberalismo radical de Keynes, Hobhouse e Beveridge. A ligação entre liberais e socialistas nunca foi um mistério ou muito menos um segredo, mas muitas vezes soa como algo incomum ou até mesmo impossível para alguns. Iremos analisar, ainda que superficialmente, a relação entre liberalismo, socialismo e o papel do radicalismo em ambos.
O liberalismo radical, do seu início até os dias atuais
O radicalismo é um dos filhos do liberalismo clássico, e, como podemos notar, é seu filho rebelde e apaixonado. Não à toa muitos escritores do Romantismo eram radicais - salvo a exceção de Goethe, que dizia não simpatizar com o que via como radicalismo nos escritos de Jeremy Bentham.
Os radicais possuíam um ranço maior contra monarquias, um desejo maior de alcançar o secularismo, sufrágio e abolicionismo, além de procurarem reformas institucionais que fizessem jus ao lema Liberté, égalité, fraternité. Buscavam reformas que fizessem da igualdade um meio para a liberdade. Dentre os radicais tivemos o pioneiro em propor a reforma agrária e a ideia de renda básica Thomas Paine, o abolicionista Marquis de Condorcet, a sufragista Mary Wollstonecraft ao lado de seu marido — o qual alguns argumentam ser o pai do anarquismo — Godwin, os pais do utilitarismo Jeremy Bentham e James Mill, seu filho John Stuart Mill e Harriot Taylor, esposa de Stuart Mill, e não podemos deixar de falar de Henry George e o Georgismo, o qual influenciou fortemente ideias sobre latifúndios, taxação e redistribuição das terras. Alguns argumentam que Adam Smith era um radical por sempre apresentar um tom mais progressista em seus livros e ser fortemente admirado pelos radicais da época, ainda que isso seja controverso.
Pós-independência, o liberalismo americano se ramificou em duas facções: uma mais radical, mais alinhada com a França e a Revolução Francesa e, curiosamente, contra o poder estatal (Jefersonianos, dando origem ao partido Democrata-Republicano) e outra mais pró-ordem, com horror ao terror revolucionário na França e favorável a um forte governo federal (Hamiltonianos, desembocando no partido Federalista). No Brasil o radicalismo liberal veio com figuras republicanas, abolicionistas e sufragistas, além de fortes defensores do livre comércio. O radicalismo brasileiro ganhou força com nomes como Nísia Floresta, Antonieta de Barros e os membros do jornal Radical Paulistano Luís Gama, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, entre muitos outros.
Vemos o legado e a influência destas ideias em diversos desenvolvimentos posteriores, como social-liberalismo, ordoliberalismo, liberalismo moderno, socialismo liberal, socialismo democrático, social-democracia, progressismo, democracia radical, entre outros. O radicalismo abriu portas para que diversas políticas fossem teoricamente desenvolvidas e então colocadas em prática como, por exemplo, o Estado de bem-estar social (welfare state), a renda básica, a reforma agrária e o acesso universal à educação.
O social-liberalismo sem dúvidas é um dos seus principais sucessores e podemos ver sua atuação no mundo moderno desde o final do século XIX até os dias de hoje. Se destacou no pós-guerra, no período em que chamamos de Liberalismo Embutido (Embedded Liberalism), onde os países atuaram para que as democracias liberais não passassem novamente pelo crescimento de ideias totalitárias antidemocráticas: o nazismo alemão, o fascismo italiano e, principalmente no contexto da Guerra Fria, o stalinismo da União Soviética. Outro objetivo era fornecer uma rede de proteção social para que as pessoas não caíssem vítimas do motor de destruição criativa do capitalismo.
Esse período foi marcado por políticas social-liberais, onde a garantia de um livre-mercado conviveu ao lado do estado de bem-estar social. Contudo, ao contrário de uma visão corrente e errada, tais reformas sociais não começam apenas no pós-Guerra, sendo na verdade esse momento tão somente o ápice (e, em alguns casos, até um exagero) de reformas anteriores. Na Inglaterra, o Partido Liberal já havia implementado um conjunto de reformas cujo nome foi batizado como “Liberal Reforms” entre os anos de 1906 e 1914! Essas reformas deram a fundação para que os estados de bem-estar modernos fossem construídos. Entre as figuras principais dessas reformas podemos citar William Beveridge e David Lloyd George. A construção de vários welfare states vieram de partidos liberais — como Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Reino Unido — ou de pensadores liberais que influenciaram partidos social-democratas — como no caso dos países nórdicos, Austrália — ou democrata cristãos — como na Alemanha, onde o ordoliberalismo influenciou grande parte das políticas alemãs no pós-Guerra. Pensadores mais contemporâneos, responsáveis por uma espécie de “revival” do social-liberalismo nos dias de hoje, são Amartya Sen, John Rawls, Paul Krugman e Martha Nussbaum.
Diversos partidos liberais levam até hoje em seus nomes o radicalismo, como é o caso do Partido Radical francês e do Radikale Venstre dinamarquês (Venstre significa esquerda, mostrando como o radicalismo liberal já foi visto como uma posição de esquerda e, muitas vezes, como extrema-esquerda). Outros partidos que representam o social-liberalismo são o Partido Democrata dos EUA e o Partido Liberal canadense. Também vale mencionar que, principalmente na década de 90, grandes facções de partidos de esquerda adotaram as ideias do liberalismo da terceira-via (third-way liberalism) e do social-liberalismo de modo geral.
O social-liberalismo pode ser entendido como uma “versão padrão” do que seria o liberalismo. Liberais radicais clássicos já advogavam por políticas de justiça social muito antes do surgimento do social-liberalismo no século XIX. De certo modo, o que vemos hoje nos social-liberais é apenas a atualização do que um dia foi o liberalismo radical.
O socialismo e sua metamorfose social-democrata
Não é de hoje que socialistas e a esquerda em geral se inspiram em figuras e ideias liberais. Já no passado vemos essas convergências, como na criação da Sociedade Fabiana, que possui raízes no radicalismo, na Itália, onde liberais e socialistas democráticos se juntaram para enfrentar o inimigo em comum do fascismo, e na Alemanha nazista, onde a Frente de Ferro, majoritariamente composta por integrantes do Partido Social-Democrata ao lado de liberais, lutaram contra três inimigos em comum: a monarquia, o comunismo e o nazismo. No pós-Guerra Fria vimos uma mudança dentro dos partidos socialistas e social-democratas, os quais rejeitaram o autoritarismo soviético, abandonaram as ideias de superação do capitalismo e fizeram as pazes com o mercado e demais ideais liberais.
Os partidos social-democratas na Europa, na Austrália e na Nova Zelândia geralmente são divididos entre uma ala mais liberal e outra mais social-democrata. Esse não foi bem o caso do Labour Party do Reino Unido, onde o partido acabou dividido em duas alas principais: socialistas como Jeremy Corbyn e social-liberais como Tony Blair, as vezes chamados de hard-left e open-left, respectivamente.
Algo parecido ocorre no Labour Party australiano e neozelandês, mas com uma maior integração das facções aderirem a ideais social-liberais. Assim como no Partido Social-Democrata alemão, onde vemos um grande compromisso com ideais liberais e até mesmo em questões de responsabilidade fiscal. Diversos outros partidos já foram acusados de serem social-liberais com o objetivo de insultá-los, como foi o caso do Parti Socialiste da França e o Partido Socialista em Portugal. Deste modo, é interessante ver que existem certas reações dentro desses partidos, por parte de suas alas mais à esquerda, contra a onda social-liberal que os tomou.
Essa reação também está em boa medida conectada com um importante desenvolvimento posterior: a globalização liberal. Muitos partidos social-democratas modernos acabaram sendo responsáveis pela chamada “neoliberalização” da economia de seus países nos anos 80 e 90, como foi o caso da Austrália, Nova Zelândia, dos países Nórdicos, da Inglaterra com Tony Blair. Até mesmo aqui no Brasil ocorreu a neoliberalização com o presidente Fernando Henrique Cardoso e o Plano Real, estendendo-se até o primeiro mandato de Lula, que foi acompanhado por uma equipe econômica repleta de liberais, como Marcos Lisboa, e por políticas social-liberais como o Bolsa Família.
A neoliberalização foi coberta por polêmicas. Para os críticos mais à esquerda, tratou-se da demolição do estado de bem-estar que teria sido a duras penas construído no pós-Guerra - destruição essa conduzida pelos próprios partidos autointitulados social-democratas! Contudo, os fatos são muito diferentes: o crescimento hipertrofiado de tais estados de bem-estar social levaram a contínuas crises econômicas, desde a década de 70, sendo as crises do petróleo apenas um elemento que agravou problemas crônicos de produtividade que se acumulavam. Esse texto desenvolve melhor esses pontos.
O radicalismo liberal como um fator de mudança
Como Adam Gopnik descreveu o liberalismo em seu livro “Milhares de pequenas sanidades: A aventura moral do liberalismo”:
O liberalismo precisa ser uma prática política em evolução, defendendo a necessidade e a possibilidade de reforma social (imperfeitamente) igualitária e uma tolerância ainda maior (se não absoluta) para com as diferenças humanas. Isso é alcançado por meio de manifestações e debates fundamentados e (majoritariamente) livres.
A revista britânica The Economist diz fazer parte da tradição radical do liberalismo. O radicalismo foi responsável por diversas mudanças no decorrer do desenvolvimento humano e, por isso, podemos aprender muitas lições com ele, conduzindo mudanças radicais, ainda que dentro da institucionalidade democrática liberal e da dignidade humana. O liberalismo não deixou e não deixará de ser humanitário, progressista e democrático. Vale observar que o mundo de hoje é bem diferente daquele do primeiro liberalismo radical, e possui problemas modernos. Hoje, almejamos fronteiras (majoritariamente) abertas, igualdade de oportunidades, livre mercado, justo, produtivo e saudável, justiça social e plena democracia. Para tanto, é preciso agir.
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Autor: Alexandre Conchon.
Publicado originalmente aqui e reproduzido com permissão do autor.

Tem 21 anos e estuda economia. Também é músico, escreve e é apaixonado por artes em geral.