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outubro 1, 2022

O crítico literário Roberto Schwarz tem um texto bastante provocador quanto ao encontro do liberalismo com a realidade brasileira, que seria atrasada e escravocrata. Em "As ideias fora do lugar", o autor faz uma ampla abordagem sobre o ninho estranho que uma filosofia de DNA europeu iria encontrar por aqui. A realidade nacional de escravidão, clientelismo e patrimonialismo formaria uma espécie de "comédia ideológica" no grande teatro paradoxal que se formaria entre o Brasil e o liberalismo. O sotaque marxista de Schwarz conduziu sua interpretação a partir da conhecida e velha dinâmica dialética entre estrutura e superestrutura. O que Roberto não percebeu foi que, mesmo em pátrias de liberalismo avançado, como nos EUA, a doutrina das liberdades se desenvolveu em meio ao racismo e à escravidão, sem que lá jamais houvesse sido criado um paraíso de impessoalidade, ainda que nossos vizinhos do Norte de fato tenham empenhado um caminho bastante distante dos frutos da nossa colonização ibérica.

É fato, no entanto, que grandes nomes do pensamento liberal conviveram bem com a atrocidade da escravidão e da discriminação racial, mesmo quando faziam parte da revolução das luzes. John Locke era associado de uma empresa traficante de pessoas. David Hume tem frases horrendas sobre negros. Tais contradições, contudo, precisam ser compreendidas como parte integrante do espírito do tempo e da natureza intelectual humana. Friedrich Engels advogava a igualdade dos homens, mas também fez comentários fortemente racistas. Karl Marx apoiou a ocupação inglesa na Índia. A ideia de que o liberalismo como doutrina não cairia bem em terras tupiniquins tem muito mais de preconceito e determinismo teórico do que de realidade histórica.

Dentro da perspectiva histórica, o liberalismo brasileiro encontrou problemas e virtudes, assim como o marxismo. Quem ler "Agrarismo e industrialismo", de Octavio Brandão, o primeiro esforço marxista de análise da realidade brasileira, vai se assustar com a bizarrice. Não podemos, contudo, fazer um inferno aqui, como se as ideias de Marx também estivessem fora do lugar. Como o liberalismo, o marxismo também se ajeitou com o tempo aos nossos paradoxos.

A diferença, aqui, é que o liberalismo penetrou na nossa cultura, pelo menos para formar lentamente e contraditoriamente nossas instituições. No Império, já podíamos contar com as ideias de um Silvestre Pinheiro Ferreira, autor de "Manual do cidadão em um governo representativo", que se configurou como obra transitória de uma monarquia absolutista para uma ordem constitucional. Silvestre foi nosso grande teórico da representação, esta que avançou no Império e, estranhamente, recuou na primeira república e seu liberalismo oligárquico.

Os anos Vargas representaram tempos difíceis para o liberalismo. A revolução de 30 e principalmente o golpe do Estado Novo significaram a tentativa de construção de um paradigma nacional onde o Estado seria o cérebro moral do país, com o corporativismo substituindo o pluralismo e o coletivismo esmagando a individualidade. O esgotamento da ditatura Vargas, no contexto de derrota do fascismo, que tão bem inspirou o ditador e movimentos sociais como o integralismo, abriu caminho para um novo florescer liberal, que mais tarde sofreria com outro adversário político. O ideal desenvolvimentista em torno do Estado ganhou força popular e apoio da intelectualidade brasileira. No entanto, os elementos de representação, o constitucionalismo e o império das leis já tinham sido introduzidos na nossa arquitetura institucional. Ou seja, o liberalismo já estava aqui dentro, muito bem acomodado.

De fato, como escreveram Sergio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, nossa herança ibérica ajudou na formatação de uma cultura do homem cordial, no sentido de relações íntimas e também do uso pessoal do que é público, conforme bem narra o clássico "Raizes do Brasil". Essa realidade está presente até hoje com muita força em nosso meio, assim como o paternalismo social, impresso de forma por vezes exagerada na nossa mais avançada Carta Magna. O liberalismo brasileiro bate de frente constantemente com um povo distante dos ideais de livre iniciativa, e bastante apegado aos deveres do Estado para com o bem-estar social. Mas é preciso admitir que mesmo nossa formação nacional de colonização portuguesa não foi capaz de impedir que por aqui as instituições abraçassem com força a separação dos poderes, a representatividade e a defesa defeituosa, porém real, dos direitos individuais e de propriedade. O liberalismo está entre nós, mas certamente carecendo de aprimoramento, pelo qual reformas de Estado se fazem urgentes.

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