Desde que descobri quem era Karl Popper, tive muita curiosidade em ler sua principal obra: "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos". Um pensador liberal, um dos mais importantes do século XX, que fez história tanto na filosofia política quanto na filosofia da ciência, provavelmente teria respostas para muitas das perguntas que eu via como importantes. Embora a urgência em se discutir as relações entre ciência e política, para alguns, só tenha se tornado evidente com a pandemia, para mim, era um assunto de grande interesse desde muito tempo. Outro motivo da minha curiosidade eram as polêmicas e teorias da conspiração envolvendo George Soros, que sempre alegou ter sido influenciado pelo livro.
Li essa grandiosa obra em 2016 e esse artigo é resultado dessa leitura. Uma leitura que, confesso, não achei nada fácil, mas justamente por isso, talvez essa introdução seja útil para quem também pretende se arriscar. Antes de tudo, devo avisar que esta resenha se refere apenas ao primeiro volume do livro, em que o autor examina as ideias de Platão. O segundo volume, que trata das ideias de Marx e Hegel, ficarão para, quem sabe, um artigo futuro, mas isso não vem tanto ao caso porque são as ideias originais do próprio Popper que mais me interessaram e nem tanto seus comentários sobre Platão.
Vamos então mergulhar neste livro que mudou minha forma de ver o mundo e que ajudou a organizar minhas ideias sobre relações aparentemente complicadas entre liberdade e democracia, entre ciência, moral e religião e entre progresso e tradição.
Dualismo Crítico
Embora David Hume não seja citado diretamente por Popper neste livro, sabendo da influência do primeiro sobre o segundo, presumo que o conceito de Dualismo Crítico de Popper seja uma consequência da Guilhotina de Hume. Estes dois conceitos filosóficos me influenciaram de uma forma irreversível, além de serem fundamentais para encerrar algumas polêmicas muito atuais. Por isso, quero começar falando deles.
A Guilhotina de Hume dizia que não podemos tirar conclusões morais tão facilmente a partir de fatos, que deve existir uma separação rígida entre matérias de fato e matérias de moral, entre o positivo e o normativo, entre o ontológico e o deontológico. Não entendeu? Não tem problema, é mais fácil entender a importância desse conceito quando olhamos para as conclusões absurdas que podem surgir da sua não observância.
Quando você tenta usar fatos para fazer juízos morais ou de valor, você cai na Falácia Naturalista e quando você tenta usar juízos de valor para constatar fatos, você cai na Falácia Moralista.
Exemplos de Falácia Naturalista:
“Tudo o que é natural é bom.”
“Maconha é uma erva natural, portanto, não faz mal.”
“Transgênicos fazem mal porque são modificações da natureza.”
“A medicina natural é sempre melhor que remédios produzidos pela indústria.”
Veja que o errado, nessas frases, não são necessariamente as premissas, nem as conclusões, e sim o argumento. Supondo (apenas supondo) que maconha realmente não faça nenhum mal, não é o fato de ser natural que prova isso, pois nem tudo o que é natural é bom. Ainda que a maconha não faça mal, cogumelos venenosos certamente fazem, e também são naturais. A Falácia Naturalista parte do pressuposto de que tudo o que é natural é sempre bom. Você certamente deve se lembrar de vários outros exemplos dessa falácia. Na verdade, eu costumo ouvir exemplos dela quase que diariamente, o que confirma a importância e a atualidade deste assunto.
Exemplos de Falácia Moralista:
“Homossexualidade é imoral, logo, não pode ser inata.”
“Matar animais é cruel, logo, não existe utilidade fisiológica em comer carne.”
“Egoísmo é ruim, logo, não faz parte da natureza humana.”
“Homens e mulheres têm direitos iguais, logo, não existem diferenças biológicas entre homens e mulheres.”
Note que a Falácia Moralista parte do mesmo pressuposto falso de que tudo o que é natural é bom, só faz o caminho lógico inverso. Projetam-se valores morais sobre a natureza, como se a natureza ou a realidade fossem obrigadas a se conformar aos nossos critérios morais. É bom deixar claro também que não estou rejeitando, de início, nem as premissas, nem as conclusões das afirmações acima, só estou dizendo que não podemos concluir uma coisa a partir da outra.
Outro autor liberal que aplicou a Guilhotina de Hume à filosofia social foi Robert Nozick ao falar da “sociologia normativa”. Esse conceito renderia um artigo à parte, mas gostaria de citar um exemplo que confirma a importância e a atualidade desse assunto. O exemplo é o seguinte: “o machismo é ruim, logo, a diferença salarial entre homens e mulheres é causada pelo machismo.”
Realmente, o machismo é muito ruim e, talvez, ele realmente seja a causa da desigualdade salarial entre homens e mulheres. É papel das ciências sociais, nesse caso, da sociologia e da economia, fazer uma análise positiva e científica das causas da desigualdade salarial entre homens e mulheres. É papel da ciência descobrir relações de causa e efeito e não podemos deixar que uma premissa moral, ou seja, normativa, influencie uma análise que deve ser exclusivamente positiva. Até porque, talvez algo tão ruim ou pior que o machismo seja a causa, e se errarmos no diagnóstico, provavelmente erraremos na solução.
Hoje em dia eu evito esse termo, mas boa parte do politicamente correto que impede um debate lúcido e aberto tem origem nessa falácia. Em muitos círculos, se você ousar dizer que a causa da desigualdade salarial entre homens e mulheres não é diretamente o machismo dos empregadores, você corre o risco de ser tratado como alguém que deseja minimizar a gravidade do machismo, sem que o mérito do seu argumento seja discutido. O machismo é ruim, mas nem por isso eu devo achar que ele foi o causador da extinção dos dinossauros.
Mas nada do que foi falado até agora está no livro, essa foi apenas uma introdução necessária para que você compreenda o que é o Dualismo Crítico. Popper chama a total incapacidade de separar matérias de fato de matérias morais, de separar o positivo do normativo, a não observância da Guilhotina de Hume, de Monismo Ingênuo. O Monismo Ingênuo não vê diferença entre as leis morais e as leis da natureza. Ele é um resquício das sociedades primitivas, que achavam que tanto as regras morais quanto as leis da natureza foram escritas pelos deuses e eram, portanto, igualmente inquebráveis.
O monismo ingênuo começa a desmoronar quando alguns indivíduos, normalmente aventureiros e comerciantes, entram em contato com outros povos, que adoram outros deuses e que têm regras morais completamente diferentes. Quando eles observam que estes outros povos estranhos não seguem as leis que eles tinham como inquestionáveis, sem que nada de mal lhes aconteça, eles percebem que as leis da natureza são inquebráveis e se submeter a elas não é uma opção, mas se submeter às leis morais é opcional. Mas, veja bem, dizer que algo é opcional não quer dizer que seja livre de consequências, como mostraremos adiante.
Por mais que lhe pareça óbvio, neste momento, o quanto o Monismo Ingênuo é, como o nome sugere, ingênuo, lembre-se que as falácias naturalistas e moralistas nada mais são do que consequências dele e ainda são muito comuns hoje em dia. O oposto do Monismo Ingênuo é o Dualismo Crítico, ou seja, a total separação entre leis morais e leis naturais. A dificuldade em se livrar destas falácias, contudo, vem do fato de que existem estágios intermediários entre o Monismo Ingênuo e o Dualismo Crítico. São eles o Naturalismo Biológico, o Naturalismo Psicológico ou Espiritual e o Positivismo Ético ou Jurídico. Mas não convém explicar em detalhes cada um deles.
Apenas rapidamente, um exemplo do Naturalismo Biológico é a seguinte afirmação: “todos os homens nascem iguais, portanto, todos devem ter os mesmos direitos.” Repare que esse argumento, muito comum entre os teóricos do direito natural, o que inclui até alguns precursores do liberalismo, na verdade é outro exemplo da mesma Falácia Naturalista que tratamos anteriormente. Ainda que os homens sejam naturalmente iguais, devemos nos lembrar de que nem tudo o que é natural é necessariamente bom e que, portanto, não temos obrigação nenhuma de nos conformarmos à nossa natureza. Até porque, a mesma Falácia Naturalista já foi usada para defender exatamente o contrário. Defensores da aristocracia diziam que os homens são naturalmente desiguais e que, portanto, deveriam ser tratados de forma desigual. Aristóteles, por exemplo, dizia que era injusto tratar igualmente os desiguais. Platão, mestre de Aristóteles, era outro aristocrata que compartilhava desta mesma opinião.
O Dualismo Crítico é o fundamento para uma sociedade aberta, enquanto que seus opostos são os fundamentos falaciosos nos quais se sustentam as sociedades fechadas. A sociedade aberta é aquela que está sujeita à mudança, ao progresso e ao aperfeiçoamento. A sociedade fechada é aquela cujas leis são tidas como inquestionáveis ou inalteráveis e que, portanto, são estáticas. Se as leis morais estão escritas na natureza, então elas jamais podem ser mudadas. Só o Dualismo Crítico permite a mudança e o progresso social gradual.
Historicismo e Mecânica Social
Antes de entrarmos mais a fundo no próximo assunto, alguns esclarecimentos sobre o tópico anterior são necessários para a compreensão deste outro.
Existem leis morais e existem leis naturais com implicações sociais e elas não podem ser confundidas. Por exemplo: o homem precisa comer, se ele não comer, ele morre. Essa é uma lei natural, mas é uma lei natural com implicações econômicas e sociais. Popper chama essas leis naturais com implicações sociais de leis sociológicas. É papel das ciências sociais estudar estas leis. As leis de mercado, por exemplo, como a lei da oferta e demanda, são exemplos de leis sociológicas.
O Dualismo Crítico reconhece que não podemos derivar normas morais a partir de fatos, mas reconhece que podemos e devemos julgar quais meios são mais adequados para se atingir um determinado fim. Por exemplo, se você quer levantar uma pedra muito pesada, a ciência é capaz de dizer que usar uma alavanca é melhor do que tentar levantar apenas com a força dos músculos. É uma regra de como agir, mas é uma regra condicionada a um fim. Kant chamava isso de Imperativo Hipotético, mas não vamos entrar em detalhes para não confundir dois sistemas filosóficos muito diferentes. Os fatos, analisados pela ciência, podem nos dizer qual é o melhor meio para se atingir um fim, mas não é capaz de dizer quais devem ser os fins.
Então, embora as ciências, e isso inclui as ciências sociais, não sejam capazes de validar regras morais, elas são capazes de validar os meios que estamos utilizando para se atingir determinado fim. Por exemplo, se queremos crescimento econômico, as ciências econômicas são capazes de mostrar quais políticas são mais adequadas para isso. Agora, diante do dilema entre eficiência e equidade, a ciência é incapaz de dar uma solução.
Vimos que o Dualismo Crítico permite o progresso social e a sociedade aberta, enquanto o Monismo Ingênuo e seus estados intermediários (o naturalismo biológico, o naturalismo psicológico ou espiritual e o positivismo ético-jurídico) tenta confinar a sociedade na estagnação, gerando sociedades fechadas. Mas quem, em sã consciência, não deseja o progresso social genuíno? A resposta é: aqueles que acreditam que não há mais progresso a ser obtido, que há um fim da história e que, ao se chegar ao final da linha, qualquer mudança será para pior. Estes são os Historicistas.
Todos os autores que Popper critica nesse livro, em seus dois volumes, ou sejam, Platão, Hegel e Marx, são mais ou menos historicistas. Os historicistas acreditam que a ciência é capaz de fazer profecias históricas, saber onde a história vai terminar e para onde ela vai inevitavelmente nos levar. Popper rejeita essa hipótese. Ele concorda que é papel da ciência estabelecer relações de causa e efeito e isso permite algumas previsões de curto prazo, como por exemplo, conhecendo a lei da gravidade, e vendo alguém se jogar do alto de um prédio, podemos prever que aquela pessoa vai se esborrachar ao se chocar com o chão. A ciência quando muito consegue prever o tempo ou uma pequena crise financeira. Previsões mais ousadas do que estas, contudo, estão totalmente fora da capacidade atual da ciência.
Pensadores como Platão e Marx, no entanto, não pensavam desta forma. Eles acreditavam ter descoberto o que um futuro longínquo nos reserva. A diferença entre os dois é que Marx coloca o estágio perfeito do desenvolvimento humano no futuro, quando a humanidade atingirá o comunismo, e Platão, por outro lado, o coloca no passado, nas aristocracias tribais e patriarcais de outrora e que sobreviveram até seus dias em cidades como Esparta. Por conta dessa idealização de um passado remoto, Platão acreditava que a sociedade tende a se degenerar. Há, evidentemente, níveis diferentes de fé no historicismo. Platão acreditava que a humanidade rumava para a ruína, mas que esta tendência poderia ser revertida, bastando seguir as diretrizes dele (Platão) ao pé da letra. Uma vez atingido o estado perfeito, nada mais deveria mudar, pois mudar o que já é perfeito é necessariamente mudar para pior. A sociedade perfeita, para os historicistas, é uma sociedade fechada.
O oposto do historicismo é a mecânica social ou tecnologia social. Como vimos no começo desse tópico, a ciência é incapaz de dizer quais fins devemos buscar enquanto sociedade, mas é capaz de nos mostrar os melhores caminhos. A mecânica social nada mais é do que a tentativa de usar as ciências sociais para descobrir os melhores meios para se atingir determinados fins. Quer mais liberdade? – O caminho é esse. Quer mais igualdade? – O caminho é esse outro. Para o historicista, por outro lado, os fins já estão dados. Os esforços de toda a sociedade devem se concentrar em atingir esse fim e o papel da ciência é apenas interpretar a vontade da história e os sinais dos tempos.
O grande problema com o historicismo é que ele não é falseável. Como a história é cheia de altos e baixos, qualquer tendência na direção contrária àquela prevista pelo historicista será vista apenas como mero percalço no longo caminho que leva ao fim da história. A realização das profecias históricas estão sempre muito além do tempo de vida de qualquer ser humano, por isso, não podem ser verificadas, mas sempre podem ser adiadas. Quando o capitalismo entrará em colapso? Quando a ditadura do proletariado se transformará em comunismo? Não há data marcada, só sabemos que será no futuro.
Aqui novamente temos um estágio intermediário, agora entre o historicismo radical e a mecânica social. À mecânica social que realmente se baseia na ciência de forma realista Popper chama de Mecânica Social Gradual, já a mecânica social que flerta com o historicismo é a Mecânica Social Utópica.
O problema das utopias
A diferença entre a Mecânica Social Utópica e a Mecânica Social Gradual é que a primeira tenta usar a ciência para solucionar muitos, quando não todos, os problemas humanos e sociais de uma só vez. No fundo, a Mecânica Social Utópica tem um pouco do historicismo porque acredita na possibilidade de se alcançar uma sociedade perfeita, ou o fim da história. Marx é um exemplo de historicista radical. Ele acreditava que vamos atingir o comunismo, não importa o que aconteça no meio do caminho. Platão já era alguém mais próximo de um tecnologista social utópico, pois acreditava que algumas ações eram necessárias para se mudar o curso natural da história. O que ambos tinham em comum era a crença na possibilidade de uma sociedade perfeita.
Como você pode imaginar, Popper defende mais uma vez que essa arrogante pretensão também está fora das capacidades da ciência. Para Popper, a sociedade aberta e a Mecânica Social Gradual são baseadas em ciência autêntica, pois se comportam tal como a própria ciência. Da mesma forma que a ciência, em especial a defendida por Popper, não acredita em verdades absolutas, postula que toda verdade deve estar aberta ao questionamento e que isso é o que permite o progresso científico, também a sociedade não pode conhecer o bem absoluto, somente um progresso gradual de eterno aperfeiçoamento. Se o objetivo da ciência é a verdade, o objetivo da política é o bem comum. Da mesma forma, se para a ciência não existe verdade absoluta, para a política não existe bem absoluto.
O objetivo de uma sociedade aberta não é buscar o bem absoluto, mas evitar o mal tanto quanto possível. Por isso, nas palavras do próprio Popper: “Toda tentativa de se construir um paraíso na Terra levará inevitavelmente a um inferno.”
Uma das principais vantagens da Mecânica Social Gradual em comparação com a Utópica é explicada por Popper: se um modelo utópico de sociedade falha, é necessário jogar todo o seu conjunto fora e começar do zero (isso quando o viés de confirmação dos utópicos não lhes impede de reconhecer que seu modelo perfeito falhou), fazendo com que todo o esforço anterior tenha sido em vão (e, pior, a sociedade é prejudicada como um todo e em todos os seus aspectos). Quando você tenta uma cura holística para a sociedade e ela falha, a sociedade como um todo permanece doente ou fica ainda mais doente.
Já quando você erra na solução para um problema social específico, isso só afeta as pessoas diretamente envolvidas com aquele problema, não a sociedade inteira, e você não tem que jogar fora todas as conquistas sociais anteriores.
Mas Popper vai além: a sociedade aberta não é apenas uma sociedade que progride, ela é uma sociedade livre. Já a sociedade fechada não é só estagnada, ela é necessariamente totalitária.
Como o Dualismo Crítico reconhece que a ciência não é capaz de determinar quais fins a sociedade deve buscar como um todo, numa sociedade aberta somos livres para buscar os fins que desejamos ou que nossa consciência individual nos dita, desde que respeitado o igual direito dos demais. Uma sociedade fechada, por outro lado, busca um finalidade última, todos os meios, portanto, devem se conformar à busca por este fim, por este objetivo comum. Todos os esforços da sociedade devem se voltar para o mesmo objetivo e desvios não podem ser tolerados. Na sociedade aberta, o estado existe para servir os indivíduos enquanto estes buscam seus próprios fins. Numa sociedade fechada, o estado é um organismo autônomo e os indivíduos é que são meras células deste organismo, buscando um fim pré-estabelecido.
Democracia, mudança sem violência e o ditador benevolente
Aqui chegamos em outro ponto do livro que, além de muito importante, é também muito atual. Tem-se dito que os liberais são contrários à democracia, que o liberalismo termina onde começa a democracia, que a decisão individual acaba onde começa a decisão coletiva e que, portanto, os liberais devem argumentar contra a democracia, buscando inclusive argumentos aristocráticos contra ela. Popper demonstra que isso é uma enorme bobagem.
Óbvio que a democracia tem seus problemas. Evidente que ela nem sempre (ou melhor, que ela quase nunca) elege os melhores representantes, e aqui está o Teorema da Impossibilidade de Arrow que não me deixa mentir. Mas a resposta para essa aparente incompatibilidade está numa das principais mensagens do livro: o objetivo de uma sociedade aberta não é buscar o bem supremo, é evitar o mal tanto quanto possível. A democracia tem problemas mas é melhor que sua alternativa, a ditadura. A pergunta não é se a democracia é perfeita ou não e sim se ela é melhor que suas alternativas.
Uma vez que o estado é necessário, que o governo existe para servir os indivíduos e que a sociedade deve estar aberta ao progresso social constante, será inevitável trocar de governantes e representantes políticos de tempos em tempos. A democracia apenas permite que esta troca se dê de forma pacífica e não por meio de guerras civis ou revoluções violentas. A democracia exige o exercício da política por meios pacíficos e por isso favorece a razão, enquanto que um governo não democrático só pode ser derrubado com violência, fazendo com que as diferenças sejam resolvidas pelo conflito violento e não pelo debate racional.
Liberais tradicionalmente acreditam que a maioria não deve ter o poder de tirar as liberdades e direitos dos indivíduos e, de fato, nem mesmo uma democracia pode permitir que uma maioria simples, de cinquenta por cento mais um, tenha o poder de rever os direitos mais fundamentais das minorias. Mas é importante lembrar que jamais teremos um conhecimento perfeito sobre o que quer que seja, muito menos sobre o significado da liberdade, sobre o individualismo e seus limites. Nossa compreensão sobre a liberdade e a melhor forma de exercê-la evoluiu muito com o passar dos séculos e deve continuar evoluindo. Não podemos pegar a nossa atual compreensão da liberdade e transformá-la num dogma estacionário, impossível de ser revisto. Uma sociedade liberal sem democracia, portanto, pode acabar se tornando uma sociedade fechada, uma vez que seria uma sociedade eternamente presa a uma concepção ultrapassada de liberdade.
Outra crítica comum tanto à democracia quanto à sociedade livre é que tais arranjos às vezes parecem contraditórios. Uma democracia pode acabar elegendo um ditador, como diversas vezes já aconteceu. Uma sociedade de liberdade absoluta é uma sociedade onde uns podem tirar a liberdade de outros. Mas todas as demais alternativas caem em contradições semelhantes.
Se você diz que quem deve governar é o povo e que o povo pode escolher ser governado por um tirano (ou, da mesma forma, se você diz que quem deve governar é o mais sábio - como dizia Platão), então pode acontecer do mais sábio decidir que o povo deve governar. A liberdade e a democracia só são contraditórias se você as toma como bens absolutos e que precisam existir de forma absoluta. Mas uma sociedade aberta, novamente, não busca o bem absoluto, nem a liberdade absoluta, nem a democracia absoluta, ela busca somente evitar o mal, evitar a tirania e evitar a opressão tanto quanto possível. A contradição não vem da crença na liberdade, mas da crença num bem supremo.
Os utópicos e historicistas também acabam caindo, de uma forma ou de outra, na crença ingênua do ditador benevolente. Marx o via encarnado no Partido Comunista e Platão o via na figura do Rei Filósofo. Popper enumera uma série de argumentos contrários e de problemas com a crença no ditador benevolente. A primeira dificuldade é bem evidente: o ditador benevolente pode deixar de ser benevolente. O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, como diria Lord Acton. Outra dessas dificuldades ocorre mesmo quando o ditador possui boas intenções. Neste caso, a dificuldade está em saber se suas boas intenções estão sendo atingidas, já que um ditador tende a não ser muito aberto a queixas e, portanto, não pode saber se está no caminho certo ou não. Ditaduras costumam não ter feedback e ditadores vivem mais rodeados de bajuladores do que de conselheiros. No caso de um ditador tentando construir uma utopia essa dificuldade é ainda maior.
Outro problema é que a utopia só pode ser colocada em prática no longo prazo, ao longo de mais de uma geração de ditadores benevolentes. O problema é que o ideal de uma geração pode não ser o ideal da geração seguinte. Assim, a geração seguinte pode mudar completamente de rumo e todo o esforço da geração anterior acaba sendo em vão, vide a mudança repentina de Mao Tsé-Tung para Deng Xiaoping, na China, ou de Brejnev para Gorbachev na URSS. Mesmo quando essa mudança de rumo é pequena, imagine quanto do projeto original pode mudar no decurso de sua realização?
Nem toda mudança social é um progresso
Se você leu até aqui, talvez ainda tenha muitas perguntas sem respostas. Você pode estar se perguntando, por exemplo: se não podemos derivar máximas morais a partir de fatos, então vamos derivá-las de onde? Sinto lhe decepcionar, mas o livro acaba sem responder a esta pergunta. Na verdade, é uma pergunta filosófica bem mais complicada do que parece e talvez simplesmente estivesse fora das pretensões do autor. Isso abre margem para o relativismo moral, ou pior, para o niilismo moral? É uma pergunta pertinente, mas acho que minha resposta é não. O fato de não sabermos essa resposta não significa que a resposta não exista ou que qualquer resposta sirva. O fato de não sabermos de onde tirar nossos valores morais não significa que não temos de onde tirar. Podemos achar outra fonte que não sejam os fatos da realidade, ou que talvez até sejam os fatos da realidade mas somente depois de uma reflexão racional mais profunda que supere o Monismo Ingênuo.
Popper deixa claro que o fato de que podemos escolher a qual conjunto de regras vamos nos submeter não significa que nós simplesmente inventamos as regras. Podemos descobrir essas regras de alguma forma. Popper diz que o filósofo grego Protágoras foi um dos primeiros Dualistas Críticos, mas ele acreditava que as regras morais não poderiam ser descobertas sem auxílio divino. Até por isso, o Dualismo Crítico não é necessariamente incompatível com a religião.
Popper é muito claro ao explicar que, embora a sociedade seja livre para escolher seu próprio conjunto de regras, isso não significa que qualquer conjunto seja tão bom quanto qualquer outro. Pelo contrário, só podemos fazer uma escala de valores, de julgar quais conjuntos de regras são melhores ou piores, porque somos indivíduos livres e racionais.
Isso nos traz a outra questão muito atual: recentemente, tem-se relativizado muitos valores morais mais tradicionais sob o falso argumento de que são meras “construções sociais” ou costumes aceitos passivamente. Não são leis imutáveis e inquebráveis da natureza, como pensa o Monismo Ingênuo, mas sim meras convenções sociais, acordos feitos entre os indivíduos de uma sociedade. O Dualismo Crítico confirma essa alegação. O problema é que este argumento não é suficiente para provar que tais preceitos morais devem ser abandonados. Se não devemos aceitar o tradicional de forma acrítica, também não podemos aceitar o novo dessa mesma forma. O Dualismo Crítico não implica em aceitar qualquer mudança e nem toda mudança é um progresso. Pelo contrário, a crença de que a humanidade caminha necessariamente para um fim milenar e o excesso de otimismo para com qualquer mudança social é fruto do pensamento historicista.
Onde o George Soros entra nessa história?
Chegamos num dilema: Popper era um progressista, por defender uma sociedade que deve estar em constante mudança, buscando o progresso, ou era um conservador, na medida em que defendia mudanças graduais e rejeitava as utopias? A resposta é: nenhum dos dois. Essa é uma falsa dicotomia e tal ambiguidade é característica do bom pensador liberal. Qualquer liberal que não pareça progressista e conservador ao mesmo tempo provavelmente está no caminho errado.
Diante disso, concluo que qualquer tentativa de interpretar Popper sob uma ótica totalmente conservadora ou totalmente progressista está equivocada, e George Soros, na minha humilde opinião, teve uma interpretação excessivamente progressista. Mas para não ser muito repetitivo, tentarei publicar futuramente um artigo onde analiso as ideias que orientam George Soros, tomando como base um artigo escrito pelo próprio. Mas aí fica para uma próxima.