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agosto 8, 2022

A ascensão da internet e do “mundo digital” aboliu uma série de filtros existentes na política e no debate público. Antes, para militar por uma causa era necessário se juntar a uma associação civil, um corpo estudantil, um partido político ou algo do gênero. Viabilizar que sua opinião circulasse para um grupo maior de pessoas demandava passar pelo crivo de algum veículo, como um jornal ou um periódico. Neste contexto, a academia exercia um papel central, a produção intelectual tinha concentração quase total nas universidades e centros de pesquisa. Isso tudo virou de cabeça para baixo após o advento da internet e a inclusão digital em massa. Hoje, qualquer pessoa que tenha acessos às redes, com qualquer formação e em qualquer lugar, pode organizar movimentos, criar conteúdo e dar suas opiniões sobre temas variados.

De um lado, esse fato é extremamente positivo, haja vista que foi a razão de emancipação de vários grupos ou pessoas por não ficarem mais à mercê de poderosos caciques partidários, chefes editoriais e aos caprichos da liturgia acadêmica. Por óbvio, trata-se de uma questão bem complexa, mas, hoje, várias vozes que jamais seriam ouvidas em um passado próximo podem ser escutadas em boa parte do mundo. Apesar desse e vários outros pontos positivos que poderiam ser abordados, o foco deste texto está nas consequências negativas desse processo.

Com a ausência de filtros, várias ideias que antes seriam sepultadas sumariamente (com razão) acabam ganhando um espaço enorme. Ideais radicais, conspiracionistas, autoritárias, antidemocráticas e iliberais, que jamais seriam aceitas em veículos de grande circulação, hoje tem um campo livre nas redes. Alguns podem apontar nesse poder de seleção da imprensa uma arbitrariedade ou preferência de uma elite intelectual. Os mais conspiracionistas conseguem bolar algumas teorias ainda mais horripilantes.

Contudo, não seria mais razoável supor que, ao menos na maioria dos casos, a ausência de espaço a essas ideias se dá pela sua discordância com o conhecimento científico hoje aceito, ou pela experiência histórica ter rechaçado a aplicabilidade dessas filosofias políticas e econômicas na promoção da paz e prosperidade?

Não entenda isso, de forma alguma, como um ataque à liberdade de expressão. O ponto é, tão somente, reconhecer a existência de um papel importante nos referidos filtros. Também é importante ressaltar que existem milhões de nuances nessa ideia de filtro, entretanto, me permito fazer uma generalização para tentar sustentar o ponto.

As pessoas, via de regra, são atraídas pela construção de rivalidades, geralmente em pares de oposição binária (esquerda vs. direita) e por soluções fáceis para problemas complexos — e os algoritmos estão aí para comprovar essa ideia. Sendo assim, com muitos ônus a menos do que os existentes em publicar uma opinião em uma jornal, por exemplo, as pessoas podem se dar ao luxo de rivalizar com quem tem ideias diferentes, e criar uma identidade mais forte de grupo. Também há a liberdade de prescrever soluções reducionistas para conjecturas complexas, o que se viu frequentemente ao longo da pandemia.

As lentes ideológicas tendem a tornar as pessoas cada vez menos tolerantes ao diálogo. Por sua vez, o problema das soluções fáceis não é apenas que elas “resolvem” todas as questões quase que magicamente. As soluções fáceis também dispensam a necessidade de ideias complementares, contrárias, enfim, dispensam ouvir outras opiniões. Isto é um prato cheio para o aumento da rivalidade entre “tribos” ou “bolhas”. Por que alguém vai prestar atenção em um indivíduo que pensa diferente se já existe a solução perfeita?

Neste contexto, diversos gurus da direita alternativa surgem com a negação completa do “estabilishment” moderno, contestando as instituições liberais, o estado de direito, negando questões ambientais, avanços sociais e ignorando a ciência. Sem saber como oferecer uma alternativa plausível aos problemas contemporâneos, suas soluções se restrigem a pedir que as coisas “voltem como eram antes”. Vários destes clamam, até mesmo, o retorno a um mundo idealizado do período medieval, uma sociedade sem as “perversões do iluminismo”.

Na outra ponta da ferradura, comunistas contemporâneos pregam, com a benevolência de alguns artistas famosos, o fuzilamento de liberais ou revoluções armadas como solução de problemas.

Liberistas*, mais moderados que os primeiros, diga-se de passagem, creem que apenas a liberdade econômica é suficiente para superar todas as mazelas da sociedade, se tornando lenientes com os ataques às instituições e à democracia como se fosse possível existir liberalismo (ou mesmo prosperidade) sem a segurança provida por estas instituições.

O que esses grupos têm em comum, em maior ou menor nível, é a dificuldade em se adequar às dinâmicas democráticas e ao diálogo pacífico. Em maior ou menor grau, por se estabelecerem em espaços de debate fechados, as mencionadas “bolhas”, não vislumbram o debate e a divergência como boa consequência de uma sociedade democrática, mas sim, vilãs que devem ser refutadas a todo custo. As ideias que se afastam mais do núcleo de pensamento desses grupos são prontamente rotuladas como incoerentes, no melhor dos casos, ou mesmo nefastas, criminosas, atentantes à moralidade, à soberania nacional, à dignidade humana ou qualquer outra generalização que cubra das piores intenções o pensamento divergente.

Comunistas veem os simpáticos às dinâmicas de mercado como opressores, elitistas e até mesmo fascistas. Direitistas radicais veem pautas progressistas como afronta aos valores tradicionais, "declínio do ocidente”, globalismo e marxismo cultural. Liberistas, por sua vez, veem a preocupação com a desigualdade e apelo a pautas sociais de grupos liberais como “coletivismo” e rotulam esses mesmos de serem "sociais-democratas enrustidos", ou, até mesmo, socialistas. Basta entrar no Twitter para confirmar meu ponto.

A dinâmica das redes sociais é perfeita neste contexto. É possível a divulgação em massa de todo tipo de lixo intelectual por aplicativos de mensagem, onde não há nenhum controle externo e se tem um alcance avassalador. Já em portais como Youtube, Facebook e Twitter, que se tornaram praticamente um espaço público, quando o lixo é divulgado, alegam que não têm responsabilidade sobre o que é postado (menos quando retiram os conteúdos "certos", aqueles que lhes desagradam, daí são empresas privadas agindo no legítimo direito).

Claro que não se trata de questão simples. Determinar até onde deve existir a curadoria de conteúdos nessas redes envolve desde o clássico dilema sobre liberdade de expressão até a responsabilização de indivíduos por falas objetivamente danosas. Definir quais impactos isso tem causado à democracia, às relações sociais entre minorias e grupos historicamente privilegiados e mesmo sobre a saúde mental da população inserida nestas "guerras online" é um ponto que merece uma exaustiva discussão. Uma prova cabal da destruição da dinâmica exposta aqui é a onda populista que observamos em todo o mundo. Partidos de extrema esquerda e direita estão cada vez ganhando mais espaço na política e no debate público.

Uma menção que não pode ser esquecida é que os “academicistas”, com sua linguagem hermética e uma arrogância inigualável, assim como as elites que controlam partidos políticos, mídia e associações, têm culpa no cartório. Boa parte da dinâmica apresentada é uma reação a isso tudo (apesar de existirem casos que não se enquadram nessa hipótese). Também não se pode negar, de forma alguma, que ideias intolerantes surgiram ou encontraram terreno fértil na própria academia - ainda que sua extensão, influência e agressividade política tenha crescido fora destes espaços de forma estrondosa.

Este texto não contempla uma série de nuances existentes, tamanha a complexidade do tema, mas serve como um alerta para a perigosa realidade que nos confronta. Diante do exposto, gostaríamos de deixar a seguinte mensagem: se a sua ideologia inviabiliza o debate, a formação de consensos mínimos e a acomodação de ideias divergentes por uma incongruências a priori inconciliáveis, sua ideologia não é muito democrática (muitos reconhecem isso abertamente).

Nos últimos séculos trilhamos um caminho constante, ainda que com vários percalços, rumo a uma sociedade cada vez mais tolerante, livre e pacífica, como defende o ilustre Steven Pinker. Esse caminho jamais seria possível sem a pluralidade de ideias e a convivência com o diferente. O risco de regredirmos é cada vez mais real.

*Liberistas: Benedetto Croce cunhou o termo liberismo, se referindo à posição que privilegia a liberdade econômica, de modo a diferenciá-la da doutrina do liberalismo. Enquanto o liberalismo é uma posição ética e política, com ênfase na defesa das instituições da democracia liberal, o liberismo foca apenas na defesa da liberdade econômica.

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