A Rússia invadiu a Ucrânia. Ancorada em um cinismo assustador, diz que seus soldados entraram em um Estado independente a fim de garantir a paz, sem ter sido convidado pelo dono da casa. O presidente Vladimir Putin, na verdade, repete a velha prática russa de mentir, enganar, fingir demência para então alcançar seus objetivos. Pura estratégia militar fundada na mentira.
O Ocidente respondeu com sanções, o que na prática pode criar dificuldades para o autocrata russo e incomodar as elites corruptas da Rússia, além de limpar um pouco o ambiente ocidental da sujeira do dinheiro russo. Mas, a exemplo de 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e recebeu retaliações econômicas, é possível que Putin sobreviva.
A ditadura russa tem apoio de outros regimes autoritários, como China e Belarus, tem a simpatia de gente como Bolsonaro e a solidariedade do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Também recebe a defesa de setores da esquerda que nutrem um patológico anti-americanismo. Putin diz aceitar a situação do seu país pós-Guerra Fria, no entanto, lamentou a existência do Estado ucraniano, culpando os bolcheviques, que teriam dado autonomia aos ucranianos.
A distorção da história, prática comum nos regimes autoritários, também se vê aqui. A Ucrânia deita raízes no século IX, e sua capital, Kiev, foi fundada séculos antes de Moscou. O que a Rússia fez, na sua versão imperial ou soviética, foi perseguir e assassinar, tratando a língua e cultura ucranianas como bárbaras e primitivas, impedindo ate mesmo que a história desse povo fosse contada nas escolas.
Josef Stalin (1878-1953), o terrível ditador soviético, fez da Ucrânia um cemitério de famintos. Através da coletivização da agricultura e dos constantes saques aos camponeses, eleitos inimigos da classe, a URSS matou cerca de 5 milhões de ucranianos de fome. O horror do Holodomor conta histórias de canibalismo e desespero. Mais que exterminar gente com a fome, a russificação histórica da região passou pela necessidade de exterminar as elites intelectuais, a fim de frear qualquer processo de conscientização nacionalista.
Os esforços cruéis de neutralizar a independência ucraniana não foram suficientes para impedir a criação de um novo Estado livre. Em 1991, a Ucrânia conseguiu sua autonomia, depois de um referendo popular aprovado pela maioria. Desde então, vem lutando para construir sua própria história, mesmo sob constantes ameaças russas.
A intervenção de Putin na região em 2014, logo após uma rebelião popular derrubar o governo pró-Rússia então no país, mostrou que o Kremlin não deixaria os ucranianos em paz. O autocrata teme qualquer aproximação da Ucrânia com o Ocidente, teme que os valores de liberdade, democracia e direitos humanos formem uma Ucrânia livre e desenvolvida. Mais: teme que os próprios russos sejam seduzidos pelas vantagens ocidentais. Sobre isso bem escreveu Anne Applebaum, em seu livro “A fome vermelha: a guerra de Stálin na Ucrânia”:
“Da mesma forma que, em 1932, Stálin disse a Kaganovich que a “perda” da Ucrânia era sua principal preocupação, o governo russo de hoje tambem acredita que uma Ucrânia soberana, democrática e estável, ligada ao restante da Europa por laços culturais e comerciais, é uma ameaça aos interesses dos líderes russos.”
E segue ela:
“Afinal, se a Ucrânia se tornar europeia demais – se conseguir algo parecido com uma integração bem-sucedida com o Ocidente – talvez os russos se perguntem: porque não nós?”
Ou seja, o que Putin teme é uma Rússia liberal.
Publicado originalmente aqui.
Adelson Vidal Alves é licenciado em História com especialização em História contemporânea pelo UGB (Centro Universitário Geraldo Di Biase), colunista do jornal Folha do Aço e do site Horizontes Democráticos, editor do blog Voz Liberal e autor de “Escritos sobre a peste: breves reflexões sobre a pandemia de Covid-19".