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fevereiro 21, 2022

"Socialism is not based merely on a different system of ultimate values from that of liberalism, which one would have to respect even if one disagreed; it is based on an intellectual error which makes its adherents blind to its consequences.”

- Friedrich Hayek

No final de janeiro de 2022, os habitantes da bolha cyberbolchevista tupiniquim se viram obrigados a sair de sua zona de conforto. O motivo foi uma reportagem do Fantástico cobrindo, dentre outros assuntos, o Holodomor, uma terrível onda de fome que a Ucrânia e outras regiões da União Soviética na década de 1930, e reconhecida como crime contra a humanidade pelo Parlamento Europeu.

Para a surpresa de ninguém, o grupo não trouxe nada de novo para defender Stalin, e apenas repetiu os mesmos argumentos batidos de anos atrás, com os mesmos autores de segunda categoria (falaremos deles ainda).

O primeiro argumento é que fomes na Rússia eram comuns antes dos bolcheviques. Após Holomodor, não houve mais fomes. Sendo assim, os ditadores soviéticos Lênin e Stalin deveriam ser tratados como heróis que livraram a Rússia da inanição, e os períodos de fome seriam uma contingência em um país miserável. Argumento similar é utilizado para defender o ditador chinês Mao Tsé-Tung, que também analisaremos de forma mais superficial. Cabe perguntar: quais fomes seriam estas que antecederam os bolcheviques na Rússia e Mao na China, respectivamente? Quantas pessoas elas mataram? Como as fomes do período comunista se comparam com as dos períodos anteriores?

Trata-se de um texto longo, e o leitor que estiver com pressa pode ler apenas as partes 1 e 3, além da conclusão.

Parte 1: Fome e comunismo no século XX

O economista britânico Stephen Devereux, professor da Universidade de Sussex, a melhor do mundo em estudos sobre desenvolvimento segundo o ranking da QS, fornece-nos uma lista das principais fomes no século XX. Três delas foram na União Soviética: em 1921-22, 1932-33 e 1946-47. Juntas, segundo Devereux, elas foram responsáveis por quase 20 das 70 milhões de mortes por fome no século passado. Nenhuma delas ocorreu no período czarista, mas uma em cada cinco anos do período de 1917 a 1947 foi marcado pela fome na União Soviética. Ao pesquisarmos um pouco mais, descobriremos que a última grande fome na Rússia Imperial ocorreu no início da década de 1890, resultando na morte de "apenas" 500 mil pessoas. Assim como no resto da Europa, a fome caminhava para ser um problema do passado até na miserável Rússia Imperial. Já na China, das 40 milhões de mortes das ondas de fome no século passado, entre 30 e 33 milhões ocorreram apenas durante o período que ficou conhecido como o Grande Salto Adiante. No total, segundo o autor, 80% das mortes em fomes de grande escala ao longo do século XX ocorreram nos dois países.

Devereux continua com más notícias para os comunistas: das seis ondas de fome que ceifaram mais de um milhão de vidas no pós-Guerra, quatro - na Etiópia/Derg, na Coreia do Norte, em Camboja, além da própria China - ocorreram em países comunistas (as outras duas foram na Nigéria e em Bangladesh). Mas afinal, seriam os comunistas culpados? Se sim, até que ponto? Ou seriam eles os responsáveis por acabar com a fome nesses países?

Parte 2: O papel da economia

Durante uma live com outros dois membros da esgotosfera de groupthink soviete-tupiniquim, o ex-funkeiro da U.D.R. e atualmente charlatão em tempo integral João Carvalho afirmou que "todo livro de economia afirma que Stalin errou até não poder mais, mas admitem que a Rússia se tornou a maior potência do mundo sob seu governo". Evidentemente, Carvalho não menciona um único livro para exemplificar seu ponto, até porque tais livros não existem. "Economics", do ganhador do Prêmio Nobel Paul Samuelson, manual de economia mais bem-sucedido do século XX e ainda amplamente utilizado, previu em várias de suas edições que a economia soviética deixaria para trás a americana. Durante décadas, incontáveis estudantes dos EUA (e não só) aprenderam que seu país seria ultrapassado pela potência rival. Talvez João esteja falando da análise de Daron Acemoglu e James Robinson em "Por Que as Nações Fracassam" (duvido que ele tenha o lido, até porque Acemoglu e Robinson tratam do erro de Samuelson). Apenas posso recomendar a leitura integral do livro, ou ao menos de suas passagens sobre a União Soviética, para aqueles que pensam que a análise dos autores sobre a URSS é rasa.

Terminando essa breve digressão, João Carvalho também está errado acerca do crescimento soviético. A verdade é que a economia soviética era mais medíocre do que normalmente pensamos. De fato, eles conseguiram produzir foguetes e tecnologia militar e espacial. É relativamente fácil fazer isto quando se é uma ditadura e o governo decide como os recursos do país com mais riquezas naturais do mundo serão torrados (para quem quer uma explicação do bom desempenho de Cuba nas Olimpíadas, eis um dos grandes motivos). O czar estava seguindo pelo mesmo caminho, e no início do século XX, Baku, no Azerbaijão, já produzia metade do petróleo do mundo. De acordo com um estudo do NBER, a URSS chegaria num nível similar de desenvolvimento nos anos 1940 de qualquer maneira.

Figuras 1 e 2: Evolução da renda per capita em diversos países. A União Soviética ficou para trás.

Apesar do crescimento robusto entre 1928 e 1940, a mediocridade da economia soviética é visível para qualquer um que já teve a curiosidade de pesquisar os dados em vez de palpitar, o que (assumindo boa-fé) não é o caso de João Carvalho. Tal crescimento não era inédito, tendo ocorrido desde 1880 até a Primeira Guerra. No longo prazo, porém, a URSS comeu poeira. A distância da economia soviética para a dos EUA durante todo o século XX foi tamanha que, segundo o historiador conservador John Lukacs, a própria ideia de bipolaridade na Guerra Fria é enganosa, pois tratou-se de um período de domínio americano quase absoluto. Como a imagem acima mostra, a URSS, na melhor das hipóteses, andou em linha com o restante das economia medianas na maior parte do período. Já em meados dos anos 1960, a estagnação mostrava seus sinais e diversos países facilmente ultrapassaram a renda da URSS, inclusive o Japão e a Alemanha, arruinados na Segunda Guerra.

Outra razão às vezes apontada para a divergência com demais países europeus seria por conta do Plano Marshall, ajuda econômica fornecida pelos EUA aos países europeus no pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, a Finlândia, que fora parte do antigo Império Russo e era quase tão pobre quanto o resto daquele país, tornou-se extremamente rica quanto uma democracia independente, mesmo sem aderir ao Plano Marshall. A Espanha, país da Europa Ocidental que não aderiu ao Plano, também viu sua renda crescer muito mais rapidamente que a URSS no pós-Guerra. Já Portugal, que aderiu Plano Marshall mesmo mantendo-se neutro no Segunda Guerra, ficou para trás.

Mesmo se aceitarmos que desenvolvimento justifica ditadura e violação dos direitos humanos, o paraíso na Terra não veio e as milhões de mortes foram em vão. O crescimento soviético não poderia durar para sempre. De fato, Stalin garantiu ao país um grande estoque de capital físico, mas este não promoveu crescimento de longo prazo: é necessária uma economia capaz de inovar, algo que a Rússia só conseguia em algumas poucas áreas. O gigante fora construído com pés de barro e o declínio do Império Soviético era uma questão de tempo, podendo ser explicado pelos modelos da economia ortodoxa. O controle de preços e a falta de incentivos gerava mesmo no zênite soviético dos 1970 escassez de produtos básicos, obrigando a população a ficar horas em filas.

Já o vigoroso crescimento chinês das últimas décadas tem pouco ou nada a ver com o regime econômico defendido por Mao e comunistas até hoje (aliás, é sua negação), e também se encaixa facilmente na literatura atual (ainda que a viabilidade deste crescimento no longo prazo esteja sendo questionada por autores renomados, como Niall Ferguson e o já citado Daron Acemoglu).

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Figura 3: A industrialização forçada na União Soviética resultou em milhões de mortes, mas a grande maioria das metas do Plano Quinquenal de Stalin não foi cumprida. Fonte: An Economic History of the USSR: 1917-1991, de Alec Nove.

Não obstante, creio que a ineficiência econômica inerente ao comunismo não seja capaz de explicar as fomes nos países que adotaram este modelo. O próprio Devereux afirma que políticas genocidas ou experimentos bizarros de engenharia social explicam todas as fomes em ditaduras comunistas, exceto na Etiópia. A economia, assim como conflitos e o meio ambiente podem influenciar, mas não determinar, a ocorrência de eventos como o Holodomor. Devereux é enfático: seja a fome soviética nos anos 1920, ou nos anos 1990 na Coreia do Norte, as causas são sempre políticas.

Um bom contraponto são os Estados Unidos durante a Grande Depressão. Apesar do enorme retrocesso econômico, todas as causas de morte, inclusive por fome, caíram nos EUA nos quatro anos de crise, para brancos e não brancos, homens e mulheres. Como os americanos se saíram tão bem em uma situação tão adversa? O quê, além de uma economia racional, faltava aos países do bloco comunista? O economista e filósofo de Harvard e vencedor do Prêmio Nobel Amartya Sen tem a resposta.

Parte 3: Democracia

Enquanto escrevo, o Brasil está sofrendo com as terríveis chuvas em Petrópolis, que já mataram mais de 150 pessoas. Desde dezembro, trata-se do quarto desastre do tipo, após os incidentes na Bahia, Minas Gerais e São Paulo. O motivo do porquê chuvas no Brasil matarem mais do que tornados e furacões nos EUA está mais na política que na natureza. Fomes normalmente são tragédias evitáveis quando políticas públicas eficientes são adotadas. Secas ou enchentes só escancaram problemas maiores, que oferta e demanda sozinhas não conseguem explicar.

O leitor talvez tenha sentido falta de menção a grandes fomes na Índia após a sua independência na lista de Devereux. Como é do conhecimento de todos, tratava-se de um país tão ou mais miserável quanto a China dos anos 1950-60 ou a Rússia dos anos 1920-30. Para Sen, o motivo do sucesso da Índia em combater a fome está na democracia. Em seu monumental artigo Democracy as a Universal Value, ele afirma que "na terrível história das fomes do mundo, nenhuma fome substancial ocorreu em nenhum país independente e democrático, com a imprensa livre e eleições multipartidárias". O motivo, segundo ele, é bastante simples: fomes são impopulares. Ninguém votará em um político que falhou em prevenir uma tragédia que matou milhões de mortes - mas todos estão dispostos a votar nos heróis que conseguiram contornar uma situação tão difícil. Ter uma imprensa demonstrando os horrores diários da fome durante meses e uma oposição combativa no Congresso cria incentivos muito fortes para o governo agir. Como a grande maioria dos vulneráveis a fomes repentinas estão em estado de indigência, Sen garante que a criação de empregos temporários e a distribuição direta de comida pelo governo têm funcionado historicamente muito bem para evitar mortes quando o problema entra no radar.

O caso indiano é emblemático por uma série de motivos: desde sua independência, o país tem sido uma democracia turbulenta. Até 1991, 15 anos após a China realizar sua abertura econômica, a Índia, inspirada nos desejos de Gandhi e Nehru, adotava um sistema econômico que tendia para o socialismo (termo que ainda consta no preâmbulo de sua Constituição, a mais longa do mundo, mais de duas vezes maior que a brasileira). Mas, diferentemente da China de Mao, a ineficiência econômica do país não resultou em ondas de fome abruptas e de larga escala, e as frágeis instituições políticas indianas salvaram a população.

Entre 1970 e 1973, uma fome em Maharastra matou, segundo Devereux, 130 mil pessoas, uma fração daquilo que vimos na Rússia e na China, após o governo utilizar a estratégia defendida por Sen. Alguns anos antes, em Biar, a fome resultou em "apenas" duas mil mortes. Trata-se de um caso emblemático que nos ajuda a quebrar mais um mito: ajuda externa é bem-vinda, mas não determinante. Como o então governo indiano era crítico da Guerra do Vietnã, o presidente americano e democrata Lyndon Johnson optou por não enviar ajuda ao país na fome de Biar. Já na Fome Soviética de 1921, o governo americano encontrou resistência para enviar comida, pois os bolcheviques culpavam seus adversários pela situação que eles haviam criado. Após muito custo, a ajuda chegou, tendo acabado não por conta da melhoria na situação, mas porque o governo soviético finalmente tinha parado de exportar grãos em meio a fome.

Figura 4: Resultado da liberalização econômica na Índia em 1991 e da manutenção da democracia. Em apenas 15 anos o PIB per capita indiano dobrou. Fonte: Modern Principles of Economics, terceira edição, de Tyler Cowen e Alex Tabarrok.

Como a falta de democracia resultou no desastre soviético? No afã de industrializar a URSS o mais rápido possível, o governo de Moscou impôs uma série de medidas que diminuíram a quantidade de pessoas trabalhando no campo e produzindo comida. Paralelamente, para financiar a industrialização, o governo continuou exportando grãos enquanto a população passava fome. A produção nas pequenas vilas era retirada e enviada para as cidades. Stalin não precisava se importar se milhões morriam ou não. O estado soviético era puramente um aparelho de repressão, e podia lidar bem com dissidentes.

O Holodomor teve, portanto, duas causas, ambas remetendo completamente a Stalin e seus asseclas. A primeira está ligada a problemas clássicos do socialismo: falta de incentivos e informação dispersa. Como as pessoas não gostam de ter suas coisas tomadas, a produção despencou. Para piorar, a burocracia soviética não era capaz de alocar recursos tão bem quanto o mercado, demonstrando o que Hayek escrevera no mais famoso de seus artigos uma década depois. Assim como na Fome de 1921-1922, a incompetência do governo teve de ser remediada com doses de capitalismo: segundo o historiador econômico Alec Nove, já em 1934 as restrições à propriedade de gado foram atenuadas, e apenas quatro anos depois, três quartos do rebanho bovino, mais dois terços do suíno e quase dois terços do ovino estavam nas mãos da iniciativa privada.

A segunda grande causa do Holodomor é, de longe, a mais perturbadora. É impossível negar que a fome foi premeditada. Não precisamos necessariamente concordar com a tese de Robert Conquest, de que Stalin queria destruir o espírito nacionalista ucraniano (um estudo de 2021 demonstrou um inexplicável viés de mortes em ucranianos étnicos no período). Como os grandes economistas da Universidade George Mason Tyler Cowen e Alex Tabarrok escreveram em seu excelente manual de introdução à economia, Stalin sabia bem o que estava fazendo. Ele era consciente de que milhões na Ucrânia morreriam - mas estava disposto a pagar o preço para atingir seu objetivo de industrializar o país, e continuou durante anos com as políticas perversas discutidas anteriormente.

Figura 5: Queda na produção agropecuária soviética, causada pela coletivização das terras e da industrialização forçada pelos planos quinquenais de Stalin. Tal medida seria impossível numa democracia constitucional. Fonte: "Was Stalin Really Necessary?", de Alec Nove.

Parte 4: Controvérsia acadêmica?

A última fortaleza dos defensores dos regimes comunistas está em citar autores que concordam com eles (um argumento posterior, o tu quoque, ou "e o PT?", é falacioso demais para merecer atenção). Para eles, o debate no Brasil está atrasado e a abertura dos Arquivos Soviéticos provocou uma mudança no entendimento de seus crimes. Não provocou. Segundo o "The Oxford Handbook of the History of Communism", publicado em 2014, a maioria dos estudiosos acredita que 20 milhões de mortes foram causadas pela fome e a repressão na União Soviética. O número é menor do que aquele que Robert Conquest calculou nos anos 1960 (20 milhões de mortos apenas por repressão), mas ainda assim aterrador. No caso chinês, há menos consenso sobre o número exato, mas segundo a mesma fonte a maioria entende que apenas o Grande Salto de Mao resultou em algo entre 15 e 40 milhões mortes.

Os autores citados pelos defensores de Stalin são tão poucos que podemos citar a maioria deles aqui sem nos estendermos demais: Grover Furr teórico da conspiração e professor de literatura medieval da pequena Montclair University; Domenico Losurdo, filósofo da modesta Universidade de Urbino; Ludo Martens e Douglas Tottle, ambos sem grandes credenciais acadêmicas. Nenhum deles é historiador, economista, demógrafo ou cientista político. O único de uma área tangencialmente relacionada, Losurdo, não falava russo, e, portanto, não fez uma pesquisa original, baseando-se em informações já conhecidas e outros autores, não em fontes primárias. Evidentemente não há nada de errado em se basear em outros autores (estou fazendo o mesmo aqui), mas uma breve olhadela na bibliografia de seu livro, "Stalin: História Crítica de uma Lenda Negra", lançado em 2008 na Itália e em 2010 no Brasil, já indica que o trabalho dificilmente é revolucionário ou tão inovador como acreditam seus fãs. Apenas Furr ainda está vivo. A principal referência sobre o Holodomor, Tottle, escreveu seu livro em 1987, um ano após Robert Conquest publicar seu livro sobre o mesmo assunto e 4 anos antes da abertura dos Arquivos Soviéticos.

Como comparar essa gente com críticos da Rússia Stalinista como Robert Service (Oxford), Archie Brown (Oxford), Orlando Fige (Cambridge), Martin Gilbert (Cambridge), Norman Davies (UCL), Richard Pipes (Harvard), Martin Malia (Berkeley), Robert Gellately (FSU), Timothy Snyder (Yale), Alec Nove (Universidade de Glasgow) ou François Furet (Universidade de Paris)? Simplesmente não é possível. A maioria dos autores que citei escreveu boa parte de sua obra nas últimas três décadas, lia ao menos alguma coisa em russo e vasculhou meticulosamente os arquivos soviéticos.

O fato de uns poucos farsantes intelectuais como Furr e Losurdo terem publicado livros não significa que a reabilitação de Stalin seja uma ideia marginal. Na mesma live linkada na parte 2, João Carvalho afirma haver uma conspiração que impede os defensores do stalinismo de conseguirem espaço na academia. O discurso parece familiar? Haver discussão na internet (ou mesmo na política) não quer dizer que exista discussão acadêmica, como quem já debateu com negacionistas da pandemia ou do aquecimento global bem sabe. O problema é a falta de evidências de um lado, não um suposto viés ou gatekeeping, até porque o sonho de todo grande intelectual é mudar o paradigma em sua área de estudo e ser reconhecido por isto.

Então não há autores sérios defendendo Stalin como culpado pela fome e os excessos de morte na URSS? Bem, alguns apologistas adoram citar também estudiosos como Arch Getty, da UCLA e membro da “escola revisionista”. Estes são citados por colocarem o excesso de mortes sob o período stalinista em algo entre os seis e sete dígitos, e não oito, como a maioria dos intelectuais do assunto - inclusive o comunista incorrigível Eric Hobsbawm. Estes são utilizados como fontes pelos autores sérios. Em "A Maldição de Stalin", por exemplo, Robert Gellately usa Getty como uma de suas fontes para estimar as mortes no período stalinista, ainda que também use outros autores. Basta ler seus artigos para vermos que Arch e outros estão longe de serem defensores do regime soviético. Há aqueles, como Mark Tauger, que no máximo dão mais crédito às condições climáticas pelo desastre, mas, novamente, sem defender Stalin e sua camarilha. Ainda assim, como vimos, tanto a hipótese de Getty quanto a de Tauger são amplamente minoritárias na academia e o consenso atual é outro.

Há ainda um terceiro grupo de autores menores, como Robert Thurston (professor da desconhecida Miami University, em Oxford, Ohio, e estudioso da história do café), que lançaram livros décadas atrás e foram sumariamente esquecidos fora dos círculos comunistas mais hardcore. Mas mesmo eles não chegam a ser embusteiros como Furr e não questionam se Stalin foi um ditador brutal e sanguinário; sua discordância está em grau, não no gênero das acusações. Nada disso impede que estes autores sejam vítimas de banditismo intelectual e tenham partes de seus trabalhos tirados de contexto para dar um verniz de legitimidade a Stalin.

E, verdade, há autores equivocados (e mesmo mal-intencionados) também no campo liberal. O proeminente cientista político R.J. Rummel, criador do termo “democídio”, chegou ao exagerado número de 60 milhões de mortes na União Soviética e 75 milhões na China. Mesmo o famigerado “Livro Negro do Comunismo” provavelmente serve mais como compêndio das atrocidades dos regimes comunistas do que como uma contagem de mortes precisa. Podemos evitar a utilização desses dados, até porque, como deixei claro anteriormente, há uma montanha de estudos de primeira linha para citarmos.

Os últimos parágrafos podem parecer um credencialismo à lá Flavio Morgenstern e talvez sejam, mas eles refletem um dos mais importantes ensinamentos da pandemia. O meio-termo pode ser uma falácia. As pesquisas científicas devem ser livres de viés pessoal, mas o conhecimento deve ser preciso, não simplesmente imparcial. Não é possível achar um meio-termo entre os defensores e os críticos das vacinas ou negacionistas do aquecimento global. Quem tem mais autoridade e conhecimento, acadêmicos de verdade ou estudiosos amadores que afirmam que há uma conspiração impedindo suas ideias de ganhar apoio? Novamente, mudanças de paradigma são o motor da ciência. Dizer que há espaço para discordância é uma coisa, forçar uma controvérsia inexistente é outra.

Conclusão

É verdade que as fomes na Rússia e na China acabaram após as ditaduras de Lênin, Stalin e Mao Tsé-Tung. Também é verdade que as fomes que estes países enfrentaram no período foram ainda mais desastrosas que as no período pré-revolucionário, e que elas são, em grande parte, culpa dos governos destes países, que tanto as causaram, com políticas fracassadas, como também fracassaram em remediá-las. Ainda mais chocante, diversos países conseguiram resolver no mesmo período o problema da fome indo na direção contrária a da Rússia e da China (isto é, adotando uma democracia constitucional e uma economia capitalista). Repressão não é necessária, tampouco justifica desenvolvimento econômico, pelo contrário: a melhor evidência aponta que ela é um obstáculo para o crescimento. As "conquistas" do experimento soviético são muito mais magras que seus apoiadores pensam e poderiam ter sido alcançadas de outra forma, sem repressão.

Finalmente, a controvérsia sobre Stalin que alguns comunistas afirmam existir é pouco diferente do suposto "debate acadêmico" de negacionistas da vacina ou do aquecimento global: suas fontes são autores vigaristas do mesmo nível intelectual que os "intelectuais" defensores do governo Bolsonaro. Não há, segundo a melhor evidência disponível, espaço sequer para uma opinião neutra, ou mesmo apenas parcialmente negativa das ditaduras comunistas do século XX. Defender Lenin, Stalin e Mao, bem como dizer que suas políticas não geraram fome e repressão é, acima de tudo, um negacionismo científico tão impreciso (e talvez tão perigoso) quanto negar a pandemia, e um desrespeito com as vítimas de alguns dos mais terríveis regimes da história da humanidade.

Leituras recomendadas

Camaradas: Uma História do Comunismo Mundial – Robert Service

Ascensão e Queda do Comunismo - Archie Brown

The Oxford Handbook of the History of Communism – S. A. Smith (org.)

The Cambridge History of Communism (esp. Vol. I) - Silvio Pons, S. A. Smith (org.)

História Concisa da Revolução Russa – Richard Pipes

The Soviet Tragedy: A History of Socialism in Russia – Martin Malia

Lênin, Hitler e Stalin: A Era da Catástrofe Social – Robert Gellately

Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin - Timothy Snyder

A Maldição de Stalin: O projeto de expansão comunista na Segunda Guerra Mundial e seus ecos para além da Guerra Fria - Robert Gellately

The Atlantic and Its Enemies: A History of the Cold War - Norman Stone

The Other Russia: The Experience of Exile – Norman Stone

Was Stalin Really Necessary? Some Problems of Soviet Economic Policy - Alec Nove

An Economic History of the USSR: 1917-1991 – Alec Nove

A História do Século XX - Martin Gilbert

Modern Times: The World from the Twenties to the Ninities - Paul Johnson

Famine and Public Action - Jean Drèze e Amartya Sen

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