O modernismo brasileiro está completando 100 anos. A Semana de Arte Moderna de 1922, marco paradigmático da modernização artística do país, completa seu centenário resgatando o debate de obras importantes que interferiram na vida cultural e política do país. O “Manifesto antropófago” de Oswald de Andrade propõe uma antropofagia metafórica nas artes, a exemplo dos índios tupinambás, que devoravam estrangeiros e logo depois se apropriavam de sua alma. Devorar o que vem de fora e captar suas virtudes para dentro da constituição da arte brasileira era parte de uma dinâmica criativa que se tornava movimento.
O empresário, escritor e historiador Paulo Prado, uma das mentes por trás da Semana de 22, nos trouxe um ensaio de enorme erudição e ousadia, que teorizava a tristeza brasileira, a partir de dois eixos: luxúria e cobiça. Paulo Prado, discípulo de Capistrano de Abreu, concluiu “Retrato do Brasil” em 1927, oferecendo ao país um exame bastante polêmico e até pessimista da nossa formação nacional, finalizada com a configuração de um perfil melancólico e triste do país.
O ensaio se divide em quatro capítulos. No primeiro, “Luxúria”, percebe-se na primeira frase a constatação que vai permear todo o trabalho: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Logo após, a revelação de uma interpretação brasileira que mais tarde faria parte das obras de Sergio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro: “Legaram-lhe essa melancolia os descobridores”. Isto é, o ensaio trata de um Brasil triste que recebe da colonização ibérica a sua tristeza.
A sensualidade das índias e negras, nuas e seminuas a desfilar pela colônia, encontrava a depravação colonizadora. “Do contato dessa sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes”, escreve Prado, convicto de que a perversão sexual dessa gente degenerada que chegava por aqui configurava o primeiro sustentáculo da alma triste do Brasil.
No segundo capítulo, PP trata da cobiça, da ambição sem medidas dos dominadores que só faziam por pensar na apropriação das riquezas do belo país a quem conquistavam. A descrição histórica de vários acontecimentos mostra o conhecimento historiográfico do autor que, no entanto, parece não compreender que tal cobiça não era privilégio português ou espanhol. Mesmo assim, a segunda sustentação da tristeza brasileira estaria nesse caráter do conquistador. Vale lembrar que nosso autor absorveu uma estranha tese racial, a de que Portugal contou até final do século XVI com uma classe de heróis guerreiros, e que se degenerou, formando um novo agrupamento inferior. Essa gente degenerada teria chegado no território brasileiro, mas não atingiu São Paulo, que herdou a primeira fase heroica. A prova estaria no empreendedorismo dos bandeirantes.
O terceiro capítulo do livro narra a tristeza brasileira, e no quarto há um verdadeiro massacre ao romantismo, tratado como “o insuportável desejo de procurar a felicidade num mundo imaginário". Na poesia brasileira, os dois refrãos românticos se resumiriam a “morte e amor”. O romantismo recebeu de PP a classificação de “infecção” e “deformação literária”.
Na edição recém publicada pela Companhia das Letras há varias resenhas produzidas no período, como a de Tristão de Athayde, que critica PP por seu pessimismo e diz que a ideia de uma “guerra” ou “revolução” como saídas para nossa condição de tristeza deveriam ser substituídas pelo acolhimento do catolicismo; ou mesmo Oswald de Andrade, que identifica no amigo o pior dos olhares ocidentais sobre a América descoberta.
Retrato do Brasil pode até surpreender a muitos com sua tese central, afinal, somos inclinados a entender o Brasil não como triste, mas como alegre, o país do samba, do futebol e do carnaval. Também podemos nos assustar com o olhar pessimista de PP sobre nosso povo, onde somente uma total reconstrução seria capaz de nos salvar de nossa deprimente vocação.
No entanto, ao captar que na América do Norte a disciplina religiosa e a ética do trabalho levavam aquela nação ao topo da prosperidade enquanto por aqui prevalecia o atraso, PP se insere num campo polêmico, mas bastante conceituado da interpretação de nossa formação cultural.
Se por um lado o viralatismo constituiu parte da nossa tradição intelectual, por outro, a exaltação de virtudes imaginárias e a celebração de nossas desgraças como DNA virtuoso de nossa “raça” acabam configurando um patriotismo de autoestima, incapaz de identificar marcas pervertidas da nossa cultura; preguiçosa, pouca afeita ao mundo intelectual, que despreza a leitura, a boa arte e os espetáculos de vanguarda.
Podemos optar simplesmente por culpar as estruturas econômicas, como fazem os marxistas. Dizer que as desigualdades formaram condições injustas para o proletariado em seu desenvolvimento inintelectual, moldando a alienação política das classes subalternas via "ideologia dominante".
A realidade, contudo, revela o pobre inculto, que tem orgulho de não ler, não estudar e mesmo assim participar em pé de igualdade dos grandes debates nacionais, com total consciência de seu lugar, porém rebelando-se, como nos falou Ortega y Gasset. Orgulham-se da sua mediocridade, acobertados por aqueles que insistem em relativizar a construção do conhecimento, como se o botequim e a universidade falassem a mesma língua.
Paulo Prado tem a coragem e a ousadia de colocar o dedo na ferida, não para ridicularizar a sua própria casa, mas para compreender nossas deficiências, encontrar a gênese de cada um de nossos problemas, e assim trabalharmos na reparação e evolução. Deveríamos acolher esse espírito autocrítico, em nome de um futuro melhor.
Adelson Vidal Alves é licenciado em História com especialização em História contemporânea pelo UGB (Centro Universitário Geraldo Di Biase), colunista do jornal Folha do Aço e do site Horizontes Democráticos, editor do blog Voz Liberal e autor de “Escritos sobre a peste: breves reflexões sobre a pandemia de Covid-19".
Eu resumiria parte disso assim: um povo que para se sentir importante quer ver o semelhante pobre, pq so sendo mais rico que o proximo consegue ter essa sensação de superioridade… e depois o pobre (seja qual seja o porque da sua situacao) quer destruir o que e do proximo que tem mais que ele. Temos ai uma sociedade que vive em circulos… Isso se percebe bem vivendo fora dai. Aqui se pode ter propriedade sem cerca… nada vai acontecer… A inveja e intrínseca da nossa cultura e por isso “destruo se nao posso ter”. Incluindo os espaços públicos que seriam para o seu próprio beneficio… Ha muito para falar neste tópico...Cassandra PUC95, do Canadá.