O assassinato de Moïse Kabamgabe amarrado e morto em um quiosque na Barra da Tijuca, após cobrar os salários atrasados, não é novidade para quem conhece a realidade brasileira, sobretudo as “leis não escritas” de certas áreas urbanas e rurais brasileiras. O caso passaria desapercebido, como mais um dentre tantos outros de barbárie explícita do cotidiano brasileiro, mas como se tratou de um imigrante congolês, pode ter repercussão internacional. Espero que a justiça seja feita, mesmo sabendo que a área que trabalhava era dominada por milícias [1].
O problema que vejo é com os brasileiros mesmo, que parecem amortecidos com sua história não contada, a história das relações interpessoais baseadas na ameaça, opressão e violência. Alguém está lembrado da menina Agatha Vitória Sales Félix, morta com um tiro nas costas em uma área de confronto na Favela do Alemão, Rio de Janeiro, em 2019? O tiro, dado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, gerou comoção dentro de um quadro onde os confrontos ceifam a vida de adultos e crianças, muitas vezes, por “balas perdidas”.
Anos atrás cheguei a ouvir de um casal economicamente bem sucedido aqui em Florianópolis, “não aguento mais ouvir falar em Agatha, Agatha, é só o que se fala na televisão”. A frase chocante pela insensibilidade não deveria ter nossa repulsa simples, mas tentativa de entender – e entender não é concordar com – a origem desta insensibilidade típica que escapa ao estrangeiro que vê o Brasil como “país hospitaleiro”. Sim, é hospitaleiro, a maioria dos turistas se encanta com nosso país, mas isto é uma faceta. Há muito mais por conhecer da verdadeira “alma brasileira” e nem todos os ângulos são tão bonitos quanto propagado pelas campanhas de publicidade.
Décadas atrás, durante a Guerra da Bósnia, nos anos 90, quando eu ainda lia jornais feitos de papel, fiquei surpreso que a capital da Bósnia-Herzegovina, Sarajevo, em pleno conflito, organizava um concurso de miss. Ao ler a matéria, alguma das pessoas entrevistadas disse “nossa vida não pode parar”. Daí, quando leio sobre o Brasil, país com a maior taxa absoluta de homicídios no planeta (16ª em termos proporcionais [2]) percebo que nós também estamos na mesma situação dos bósnios, pior ainda hoje em dia.
A situação da segurança pública no Brasil é um daqueles tópicos que ninguém diz ignorar sua importância, que todos dizem ser fundamental, mas que, na prática, não se vê nenhuma ação efetiva, coordenada, exceto pelos governos estaduais. O controle das polícias pertence aos estados, membros da federação, mas não se vê um plano nacional. E muitos dos que votaram no atual governo, votaram pensando que isto ocorreria. Aliás, só para constar, a taxa de homicídios brasileira vinha caindo [3], mas aumentou 4% de dois anos para cá [4]. E quando se fala em queda, esta se deve, principalmente, aos governos do estado de São Paulo [5].
Algo poderia ser feito? Poderia. Mas aí a competência dos entes federados neste quesito precisa ser reformatada, com ação de inteligência como obteve o governo do estado paulista. Antes ainda, isto precisa constituir um ativo político, algo pelo qual nossos legisladores lutem e sem demanda popular por isso, nada vai acontecer. O detalhe é que a demanda só vai existir quando a sensibilidade para a questão suplantar a indiferença reinante. Aliás, você já compartilhou alguma notícia sobre o atroz assassinato de Moïse Kabamgabe hoje?
[1] Grupos armados no Brasil, máfias, que cobram por serviços prestados. Áreas dominadas por eles, normalmente, fogem à ação legal, como se fossem bantustões dentro de metrópoles brasileiras.
[2] Murder Rate by Country 2021.
https://worldpopulationreview.com/country-rankings/murder-rate-by-country. Acesso em 1 fev. 22.
[3] 30 por 100.000 (2017) para 27 por 100.000 (2018).
Cf. https://data.worldbank.org/indicator/VC.IHR.PSRC.P5?locations=BR [e]
https://www.statista.com/statistics/312455/number-homicides-brazil/.
[4] Homicides Increase in Brazil after 2 Years of Decline
[5] Reducing Homicide in Brazil: Insights Into What Works
https://www.americasquarterly.org/article/reducing-homicide-in-brazil-insights-into-what-works/#.YfkxWtLXBRY.twitter via @amerquarterly

Professor - IFRS | Licenciado em Geografia, UFRGS | Mestre em Geografia Humana, USP | viciado em Geopolítica | Pseudo-liberal, fundamentalista isentão ortodoxo e conservador flex.