A década de 1970 foi uma divisora de águas no pensamento político e na econômico mundial. À medida que o desemprego avançava e a inflação acelerava, uma nova resposta aos problemas enfrentados pelo chamado “bloco ocidental” mostrava-se necessária, visto que o modelo adotado desde o final da Segunda Guerra Mundial, inspirado ao menos em tese em ideias do economista britânico John Maynard Keynes não era capaz de explicar estes problemas, muito menos de dar uma resposta a eles. Em 1974, o economista austríaco Friedrich Hayek receberia o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel. Dois anos depois, em 1976, seria a vez do economista americano Milton Friedman ser agraciado com o mesmo prêmio.
Em 1977 o economista e filósofo político James Buchanan, que também venceria o Nobel nove anos depois por seu pioneirismo na chamada “teoria da escolha pública”, publicou em parceria com Richard Wagner o livro "Democracy in Deficit – The Political Legacy of Lord Keynes" ("A Democracia em Déficit – O Legado Político de Lord Keynes", em tradução livre), analisando os efeitos de décadas de hegemonia de pouca responsabilidade fiscal nos Estados Unidos, bem como as causas dessa hegemonia, além de previsões de um futuro sombrio caso nada fosse feito. Trata-se de um ensaio simples, com aproximadamente 200 páginas, mas que permanece bastante atual e é profundo o suficiente para ajudar a explicar não apenas o caso americano do período, mas também, como veremos, a história recente do Brasil.
Para Buchanan e Wagner, a democracia possui um viés de incorrer em déficits fiscais, ainda que tal viés não tenha aparecido antes da década de 1940, quando as ideias de Keynes se tornaram mais proeminentes. O motivo é bastante simples: o aumento de gastos públicos é uma política popular. Por outro lado, seu financiamento, advindo ou do aumento de impostos ou do corte de gastos em outras áreas, nem tanto. Tal informação é de conhecimento geral, sendo ignorada apenas pelos colegas de profissão dos autores. Este tipo de sarcasmo é frequente no livro, que critica economistas presos em uma torre de marfim que ficam engendrados em suas ideologias e possuem, segundo os autores, menos conhecimento do mundo real que o cidadão comum.
Paradoxalmente, apesar deste viés, a democracia, ao menos em sentido amplo, é menos compatível com os déficits fiscais do que com um orçamento equilibrado. À medida que as finanças públicas saem de controle, o governo vê-se obrigado a interferir cada vez mais na economia para impedir o aumento dos preços – uma política ineficaz e autoritária. Como o déficit de hoje é o imposto de amanhã, gerações futuras, que não tomaram a decisão política de incorrer ou não em déficits fiscais pesados, serão obrigadas a arcar com o custo dos gastos que enriqueceram a geração atual. Outras instituições, que segundo a maioria dos próprios keynesianos deveriam estar blindadas de pressão externa, como os órgãos de política monetária, também são contaminadas pela irresponsabilidade fiscal, e acabam agindo de forma menos técnica, emitindo dinheiro de forma desordenada.
Para piorar, os políticos eleitos para representar os interesses da população são conscientes deste viés. Pensando mais nas eleições do que na população, tais políticos frequentemente optam por políticas ineficientes e que podem render votos, como as que criam empregos efêmeros no curto prazo. Paralelamente, esses mesmos políticos resistem em fazer ajustes fiscais dolorosos para conter a escalada da inflação, ajustes estes que tendem a destruir empregos no curto prazo, ainda que no longo prazo o efeito sobre o desemprego desses ajustes seja nulo. Em outras palavras, os efeitos da irresponsabilidade fiscal são vistos de forma positiva no curto prazo, o que mascara seus danos no longo prazo. Por outro lado, responsabilidade tende a resolver problemas de forma sustentável, mas por meio de um curto prazo doloroso e impopular. Preocupados com as eleições, que ocorrem no curto prazo, a decisão da maioria dos políticos é óbvia. No caso americano, ainda que não citado nominalmente por Buchanan e Wagner, um dos principais exemplos dessa combinação foi o chamado “Choque Nixon” (em referência a Richard Nixon, então ocupante da Casa Branca), que, dentre outras medidas, congelou preços e salários em 1971.
Os autores vão além, e fazem especulações sobre uma suposta falta de comprometimento do próprio Keynes para com a democracia e a liberdade: para eles, Keynes nunca foi um democrata de verdade, mas sim um elitista, que acreditava que uma eventual burocracia composta por homens brilhantes seria mais eficaz que a população na hora de tomar decisões políticas e coordenar a economia e a sociedade. Trata-se de uma afirmação para lá de controversa. Até mesmo o já citado Hayek, crítico ainda mais feroz de Keynes, afirmava que seu oponente era politicamente um liberal convicto que levou para o caixão sua defesa de um governo limitado pelas leis.
Não obstante, Buchanan e Wagner creem que as ideias de Keynes foram utilizadas de forma incorreta: segundo eles, Keynes entendia que a política fiscal ativa deveria ser utilizada em momentos de crise, mas que nas condições normais, a responsabilidade fiscal deveria ser a regra. Teria Keynes, que faleceu em 1946 com apenas 62 anos, mudado de posição se tivesse tido tempo para ver o resultado de suas ideias? Nunca saberemos, mas, assim como Hayek e Friedman, os autores acham a hipótese possível.
O que fazer para resolver os problemas elencados? Segundo os autores, é importante tomar cuidado para não jogar fora o bebê junto com a água. Para eles, esse defeito da democracia não é nem de perto motivo suficiente para sua substituição por outro sistema. Uma resposta, portanto, deve ser encontrada dentro, não fora das instituições democráticas.
Buchanan e Wagner sugerem então, sem entrar em muitos detalhes, medidas para conter o avanço do déficit público americano. Apesar de não esconderem sua preferência por um estado deveras enxuto, os autores acreditam que mais importante que o corte de gastos é o equilíbrio orçamentário. Sendo assim, caso o governo fracasse em cortar gastos, um aumento de impostos pode ser necessário para ajudar a resolver o desequilíbrio. O Congresso deve ter mais poder sobre o orçamento. Diferentemente do Executivo, em que o único vencedor da eleição leva tudo, no Poder Legislativo há ao menos em teoria espaço para a representação de todos os grupos da sociedade, e as decisões controversas precisam ser mais consensuais. O debate necessário para que se chegue em decisões no Legislativo, segundo os autores, pode travar o crescimento dos déficits fiscais e resultar em políticas mais racionais. Por fim, e mais importante, os autores defendem um mecanismo constitucional capaz de frear governos irresponsáveis e suas aventuras eleitoreiras. Trata-se talvez do mais fundamental princípio do liberalismo político: por mais discricionariedade que os políticos possam ter para implantar sua agenda, ninguém está acima da lei, e o desrespeito às regras do jogo deve resultar em punição exemplar.
Constantemente, os autores expressam seu desejo de estarem errados, não apenas no campo teórico, mas também nas suas previsões sombrias em relação ao futuro da economia e da Democracia na América e é verdade que o diagnóstico do livro se mostrou apenas parcialmente correto. A inflação americana continuou acelerando nos anos seguinte e só foi domada no início da década de 1980 via uma dura política monetária, com o então presidente do FED Paul Volcker subindo as taxas de juros para inacreditáveis 20%, num processo recessivo que resultou numa taxa de desemprego acima de 10%. Mas o déficit público também permaneceu alto no período. Somente no governo Clinton a realidade finalmente se impôs e o déficit público foi efetivamente controlado. As instituições políticas e econômicas americanas, contudo, passaram pelo período de forma relativamente incólume, apesar de algumas turbulências.
Para o caso brasileiro, que adotou as políticas criticadas por Buchanan de forma muito mais robusta e persistente que os Estados Unidos (seria impossível pensar em um keynesiano sério apoiando boa parte do que foi feito por aqui), "Democracia em Déficit" permanece extremamente atual após 45 anos de sua publicação. Não seria nenhuma surpresa se alguns dos elaboradores da proposta do Teto de Gastos, promulgada em 2016, tenham lido e se inspirado ao menos em parte em Buchanan. Vimos também, especialmente nas eleições de 2010 e 2014, a opção consciente pela irresponsabilidade pelos governos do PT que, em vez de pensar no país, decidiram adotar práticas eleitoreiras para garantir a eleição e reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff. O resultado é conhecido: uma crise de proporções homéricas que até hoje não conseguimos sair. Com relação à eleição de 2022, o presidente Bolsonaro tem ido pelo mesmo caminho, priorizando o resultado das urnas ao controle fiscal.
Recentemente, Buchanan foi alvo de polêmicas em relação ao seu envolvimento com organizações financiadas pelos Irmãos Koch. Em 2017, quatro anos após seu falecimento, a historiadora americana e ativista de esquerda Nancy MacLean publicou o livro "Democracy in Chains", argumentando que Buchanan foi o arquiteto da extrema-direita populista nos Estados Unidos, também afirmando que o economista desejava conscientemente destruir a democracia em seu país. Escrevendo para o site Vox, os cientistas políticos Henry Farrell e Steven Teles chamaram a hipótese de Maclean de “teoria da conspiração de esquerda”. Ao ser questionada em uma palestra sobre o motivo pelo qual Buchanan gostaria de sabotar a democracia em seu próprio país, a autora disse achar que ele era autista, e que pessoas com essa condição “não sentem solidariedade e empatia”.
Defender o legado de Buchanan é, portanto, também defender o liberalismo, e "Democracia em Déficit", apesar de seus defeitos, é uma defesa apaixonada desse ideal. Trata-se de uma prova inequívoca do comprometimento do grande economista e pai da Teoria da Escolha Pública tanto com a saúde das instituições liberais democráticas como da economia, bem como uma excelente explicação de como as duas andam lado a lado.