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janeiro 28, 2022

Por ocasião do sexagésimo aniversário da Revolução Russa, Enrico Berlinguer, então secretário do Partido Comunista Italiano (PCI), propôs uma reflexão que ganharia repercussões históricas. Em suas palavras: “A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista”.

As palavras do dirigente comunista foram recebidas com grande incômodo nas fileiras do marxismo vulgar, que compreendia a democracia como sendo objeto de adjetivação de classe, instrumento a ser usado e descartado logo que a revolução proletária triunfasse. Seguindo a rica tradição democrática do comunismo italiano, oriunda de grandes dirigentes políticos, como Antônio Gramsci e Palmiro Togliatti, Berlinguer propõe um socialismo que seja erguido tendo a democracia como alicerce. A democracia com valor historicamente universal se firma aqui como um campo a ser explorado e aprofundado, em direção gradual ao socialismo.

Esse debate chega ao Brasil entre o final da década de 70 e inicio dos anos 80 do século XX, através de um vigoroso ensaio escrito por Carlos Nelson Coutinho. O título do artigo era “A democracia como valor universal”. Segundo o autor, os alvos do artigo eram a ditadura militar, então vigente no Brasil, e também o marxismo-leninismo. Para Coutinho, assim como as bases econômicas do socialismo nascem já na sociedade capitalista, as instituições da nova ordem social também já estariam em formação dentro do capitalismo, tal como o parlamento moderno, fruto das lutas dos subalternos. A polêmica foi grande dentro da esquerda brasileira.

Mais de vinte anos depois, Coutinho retoma o tema em outro ensaio, intitulado “Democracia: um conceito em disputa”. Nele, o autor reafirma suas posições do seu antigo texto, mas faz uma importante observação: “(…) o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos históricos – formas sempre modificáveis, sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento -, mas o que tem valor universal é esse processo de democratização”.

Em 1989, outro ensaio causaria grande debate na comunidade política, desta vez, à direita. O artigo “O fim da História?”, do norte-americano Francis Fukuyama, escrito no contexto de declínio da experiência comunista, propunha, usando Hegel como sustentação, que o capitalismo de livre mercado e a democracia liberal teriam vencido a corrida histórica, se estabelecendo como bases fundamentais das sociedades do mundo todo. O artigo recebeu e ainda recebe críticas, principalmente em momentos onde o sistema capitalista enfrenta crises e recuos na democracia liberal acontecem, como no nosso tempo, com a emergência de várias forças autoritárias com ambições de poder.

Coutinho e Berlinguer pareciam concordar no tratamento da democracia como um fundamento duradouro, conquista do processo civilizatório. Já Fukuyama, embasado na perspectiva hegeliana, define a universalidade democrática no interior da institucionalidade liberal. A democracia liberal representativa seria o ponto alto e final de nossa evolução histórica. Se a democracia, vista como “socialização da política”, é definitivamente a vitória civilizatória a ser preservada, uma outra pergunta cabe ser feita: seria o modelo de representação parlamentar do liberalismo algo a ser exportado universalmente?

Se olharmos por um prisma conceitual minimalista, a democracia liberal poderia ser vista como sendo um regime de “liberdades individuais e políticas públicas oriundas da vontade popular”, para seguir a fórmula de Yascha Mounk. No entanto, aqui, ao falar em democracia liberal estarei me referindo diretamente às democracias ocidentais, onde prevalece o constitucionalismo, a separação dos poderes, a laicidade estatal, etc. É esse modelo a se perguntar se seria ou não objeto de universalização.

Penso que, de fato, tal formato democrático tem muito mais facilidade de triunfar em nações nas quais exista alguma coesão étnica, tradição secular e espírito de nacionalidade. Onde vigora o sistema tribal, conflitos étnicos e teocracias, fica muito difícil fazer frutificar uma organização social que valoriza a impessoalidade e a subordinação de todos ao império das leis, estas feitas através de consensos democráticos em espaços laicos. É por esses aspectos que podemos compreender o porquê da resistência da maior parte do Oriente médio, da África, da Ásia e até da América Latina, em colocar em prática a democracia liberal. A recente experiência dos EUA no Afeganistão atesta toda essa dificuldade. Contudo, identificar dificuldades não significa anular a possibilidade de considerar a democracia liberal como universal.

De início, devo fazer a constatação de que a democracia liberal se configura como modelo superior de organização social e política, atestada no sucesso indiscutível da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Trata-se de uma institucionalidade onde se permite consagrar a liberdade individual, a solução pacífica dos conflitos contemporâneos e de estabelecer uma estabilidade próspera duradoura. Os países que optaram por esse modelo se desenvolveram, ao contrário de quem os rejeitou e os rejeita. Se é no continente europeu e na América do Norte que a democracia liberal evoluiu, obedecendo aos ventos favoráveis implementados pelos atores políticos que davam rumos à cultura cívica hoje percebida como hegemônica na democracia ocidental, também podemos observar as vantagens que países do Oriente obtiveram ao acolher mesmo que em parte o que o historiador britânico Niall Ferguson chamou de “aplicativos” do Ocidente. Basta olhar os casos do Japão, da Coreia do Sul, da Índia, de Hong Kong, Israel e Singapura. Mesmo a China pode sentir o desenvolvimento, ao se inserir no mundo globalizado pelo livre comércio, ainda que siga recusando acolher a democracia política.

A democracia liberal tem total possibilidade de assumir caráter universal, por ser o que de melhor e mais seguro construímos até agora. Como fazê-la expandir? Há quem defenda que a própria globalização se encarregará disso, ao fazer penetrar em países fechados os ganhos obtidos pelas populações que vivem sob o liberalismo político. Para outros, até mesmo o uso da força se faz justo, visto que regimes totalitários fazem uso de violência no intuito de impedir povos inteiros de acessar as conquistas do regime democrático.

O fato é que a história vem demonstrando seu dinamismo e a democracia ora avança, ora recua. Os defensores da democracia liberal enfrentam adversários persistentes, como as autocracias, o fundamentalismo religioso e o multiculturalismo pós-moderno. São os inimigos que o Ocidente liberal precisa vencer para fazer de suas instituições pilares fundamentais na construção de uma ordem global ancorada nas liberdades democráticas.

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