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novembro 1, 2021

O homem que escreveu um dos ensaios mais citados do ambientalismo era um racista, eugenista, nativista e islamófobo – e mais, seu argumento estava errado.

Cinquenta anos atrás, o professor da Universidade da Califórnia, Garret Hardin, escreveu um ensaio influente na revista Science. Hardin via todos os humanos como pastores egoístas: nos preocupamos com o rebanho do nosso vizinho comendo a melhor grama, então mandamos mais de nossas próprias vacas para consumir essa grama primeiro. Tomamos primeiro, antes que alguém roube a nossa fatia. Isso cria um ciclo vicioso de degradação ambiental que Hardin descreveu como a “tragédia dos comuns”.

Hardin teve um impacto imenso no ambientalismo moderno. Sua visão é ensinada em ecologia, economia, ciência política e estudos ambientais. Seu ensaio permanece como um blockbuster acadêmico, com quase 40 mil citações, e continua sendo republicado em antologias de meio-ambiente.

Mas aqui vão algumas verdades inconvenientes: Hardin era um racista, eugenista, nativista e islamófobo.  Ele é listado pelo Southern Poverty Law Center como um conhecido nacionalista branco. Suas obras e ativismo político ajudaram a inspirar o ódio anti-imigração que se espalhou nos Estados Unidos recentemente.

E ele promove uma ideia batizada de “ética do bote salva-vidas”: como os recursos globais são finitos, Hardin acreditava que os ricos devem atirar os pobres ao mar para se manterem flutuando.

Em vez disso, para criar um clima justo e vibrante, precisamos lançar ao mar Hardin e sua metáfora equivocada.

Quem revisita o ensaio original de Hardin hoje deve se preparar para uma surpresa. Suas seis páginas estão repletas de alarmismo. Subtítulos proclamam que “a liberdade para se reproduzir é intolerável”. Discorre longamente sobre os benefícios de “filhos de pais improvidentes morrerem de inanição”. Alguns parágrafos depois, Hardin escreve: “Se amamos a verdade, devemos abertamente negar a validade da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. E assim segue. Hardin praticamente clama por um Estado fascista para eliminar os genes inferiores.

Ou construir um muro para barrar os imigrantes. Hardin era um nativista virulento cujas ideias inspiraram alguns dos mais terríveis sentimentos anti-imigração atuais. Ele acreditava que apenas sociedades racialmente homogêneas poderiam sobreviver. Também se envolveu com a Federação para Reforma Imigratória Americana (FAIR), um grupo de ódio que hoje saúda as políticas racistas do presidente Trump. Hoje, neonazistas americanos citam as teorias de Hardin para justificar violência racial.

Isso não se limita a palavras no papel. Hardin fez lobby no Congresso contra ajuda humanitária para países pobres, porque acreditava que suas populações estavam ameaçando a “capacidade de reposição” da Terra.

É claro, muitas pessoas problemáticas nos deixaram ideias nobres. O fato de a tragédia de Hardin ter sido parte de um projeto nacionalista branco não deve automaticamente anular seus méritos.

Mas os fatos não estão ao lado de Hardin. Primeiro, ele entendeu errado a história dos comuns. Como Susan Cox apontou, os pastos antigos eram bem regulados por instituições locais. Não eram locais vale-tudo onde pessoas tomavam livremente uns dos outros.

Muitos comuns globais também são apoiados por instituições comunitárias. A conclusão surpreendente que resultou do trabalho da vida de Elinor Ostrom, que venceu o Prêmio Nobel de Economia de 2009 (tecnicamente, o Prêmio Sveriges Riksbank de Ciências Econômicas em Memória a Alfred Nobel). Usando as ferramentas da ciência – em vez das ferramentas do ódio – Ostrom demonstrou a diversidade de instituições humanas que foram criadas para gerenciar nosso ambiente compartilhado.

É claro, humanos podem esgotar recursos finitos. Isso muitas vezes acontece quando carecemos das instituições apropriadas para gerenciá-los. No entanto, não devemos creditar Hardin com essa descoberta. Hardin não fez uma afirmação científica informada. Ao contrário, utilizou-se de preocupações sobre escassez ambiental para justificar discriminação racial.

Devemos rejeitar suas ideias perniciosas por motivos científicos e morais. Sustentabilidade ambiental não pode existir sem justiça ambiental. Estamos de fato preparados para seguir Hardin e dizer que não podemos substituir todos os encanamentos de chumbo? Não podemos proteger todos os corpos de poluentes cancerígenos? Não podemos nos importar com o futuro de todas as crianças?

Isso é particularmente importante quando falamos sobre mudança climática. Apesar do que Hardin possa ter dito, a crise climática não é uma tragédia dos comuns. A culpa não é de nossos impulsos individuais para consumir combustíveis fósseis até nossa morte. E a solução não é deixar pequenas ilhas na Baía de Chesapeake ou países inteiros no Pacífico afundar em direção ao esquecimento, sem um lugar no bote salva-vidas planetário.

Ao invés, rejeitar o diagnóstico de Hardin exige dar nome ao verdadeiro culpado pela atual crise climática que enfrentamos. Trinta anos atrás, um futuro diferente estava disponível. Políticas climáticas graduais poderiam lentamente mover nossa economia para níveis mais baixos de carbono, com custos imperceptíveis para a maioria dos americanos.

Mas esse futuro nos foi roubado. Foi roubado por interesses poderosos e poluentes que bloquearam reformas políticas a todo momento para preservar seus lucros de curto prazo. Nos travaram a todos em uma economia na qual o consumo de combustíveis fósseis continua sendo uma necessidade, não uma escolha.

Isso torna ataques ao comportamento individual contraproducentes. Sim, é ótimo dirigir um carro elétrico (se você consegue comprar) ou ter placas solares (se grupos de interesse no seu estado não conspiraram para tornar a energia renovável mais cara). Mas o ponto é que grupos de interesse estruturaram as opções disponíveis hoje. Indivíduos não têm a agência para guiar nossa economia do banco do passageiro.

Como a historiadora de Harvard Naomi Oreskes nos lembra, “[abolicionistas] vestiam roupas feitas com algodão apanhado por escravos. Isso não os fazia hipócritas (...) apenas significava que eles eram parte de uma economia escravista, e sabiam disso. Justamente por isso agiam para mudar o sistema, e não apenas suas roupas”.

Ou como a parlamentar Alexandria Ocasio-Cortez tuitou: “Viver no mundo como ele é não é um argumento contra agir por um futuro melhor”. A verdade é que dois terços de todas as emissões de carbono na atmosfera podem ser ligados à atividade de apenas noventa companhias.

Os esforços dessas corporações para barrar a ação climática são a verdadeira tragédia.

Temos pouco tempo restante. Precisamos de líderes políticos para pilotar nossas economia por um período de transformação acelerada, em uma escala que não é vista desde a Segunda Guerra Mundial. Para chegar lá, teremos que garantir que nossos líderes ouçam a nós, não – como meus colegas e eu demonstramos em nossa pesquisa – companhias de combustíveis fósseis.

Esperança exige que comecemos de um comprometimento incondicional uns aos outros, como passageiros de um mesmo bote enfrentando uma forte tempestade. O movimento climático precisa de mais pessoas nesse bote, não menos. Precisamos de espaço para todos os seres humanos se queremos construir o poder político necessário para enfrentar os navios petroleiros e carvoeiros vindo na nossa direção. Esse é um compromisso crucial em propostas como o Green New Deal (N. do T.: em tradução livre, “Novo Acordo Verde”, aludindo ao New Deal, um pacote ambicioso de investimentos públicos que visava encerrar a Grande Depressão no início do século XX).

Cinquenta anos depois, encerremos resgates inconsequentes a Hardin. Vamos parar de dizer que todos somos culpados por usar recursos compartilhados em excesso. Paremos de apoiar políticas que privilegiam a proteção ambiental de uns em detrimento a outros. E vamos substituir a metáfora equivocada de Hardin por uma visão inclusiva da humanidade – uma baseada em governança democrática e cooperação nesses tempos sombrios.

Em vez de escrever uma tragédia, devemos oferecer esperança para cada pessoa na Terra. Apenas assim o povo pode se erguer e silenciar os poderosos poluidores que tentam roubar nosso futuro.

Escrito por Matto Mildenberg em 23 de abril de 2019 originalmente aqui.

Traduzido por Tomás Pereira Machado.

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