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outubro 25, 2021

Uma coalizão de esquerda liderada pelo trabalhista Jonas Gahr Støre venceu as eleições gerais norueguesas dia 13 de setembro passado, pondo fim ao governo de oito anos do Partido Conservador. Segundo a BBC Brasil, a desigualdade social se tornou questão central nas eleições do país, mas durante toda a matéria há uma demonstração de quão igualitários eles são, do que se deduz que isto não deveria ser um problema nacional. Daí fiquei com uma dúvida, pois se é um país conhecido por uma pequena desigualdade socioeconômica, na verdade um dos mais igualitários, como isto pode estar associado a um problema no país?

Audun Lysbakken (E), da Esquerda Socialista, Trygve Slagsvold Vedum (C), do Partido de Centro, e Jonas Gahr Stoere (D), do Partido Trabalhista. Imagem (fonte): Eureporter.co

De acordo com a matéria:

A pobreza não chega a ser um problema grave na Noruega, onde menos de 1% da população vive em condições consideradas precárias, a renda familiar média equivale a R$ 187 mil por ano (o triplo da brasileira) e onde a distância entre ricos e pobres é uma das menores do mundo.

Com uma ampla rede de benefícios sociais — educação gratuita, saúde pública e licença parental de 12 meses entre pais e mães —, o país nórdico é listado por alguns rankings internacionais como o mais igualitário do mundo.

Apesar disso, a desigualdade social (junto a temas como mudanças climáticas e transição energética) foi um fator decisivo na eleição mais recente da Noruega, a ponto de o candidato vencedor dizer que havia chegado "a vez de as pessoas comuns" ganharem voz.

Algo não fecha... A coalizão vencedora, de Centro-Esquerda foi formada pelo Partido Esquerda Socialista (Sosialistisk Venstreparti, SV), pelo Partido de Centro (Senterpartiet, Sp) e pelo Partido Trabalhista (Arbeiderpartiet, Ap), cada qual com pautas comuns e alguns diferenciais. No programa de governo dos trabalhistas vemos, especificamente em relação ao tema meio ambiente, duas seções, uma que diz respeito a sua política climática, que reconhece o aquecimento global como séria ameaça e propõe tecnologias e desenvolvimento para preservação dos empregos, como captura e armazenamento de carbono, hidrogênio como transportador de energia, tecnologias de baterias, energia eólica offshore e transportes livres de emissões.

A perspectiva é clara. É possível desenvolver uma economia mais sustentável ambientalmente e criar empregos: en rettferdig klima- og naturpolitikk som kutter utslipp og skaper jobber, que em uma tradução livre (com a permanente ajuda do Google Translate) seria “uma política justa para o clima e natureza, que reduza as emissões e gere empregos”.

Como vocês devem se lembrar na matéria da BBC Brasil, a proposta seria um aumento sobre as grandes fortunas para combater a desigualdade social que estaria, em tese, relacionada às mudanças climáticas. Agora, uma das revelações que mais me surpreendeu foi a do Partido de Centro:

Durante os sete anos do Partido Conservador no governo, os impostos na Noruega aumentaram em 6,7 bilhões de NOK. Pelo contrário, o Partido do Centro reduzirá os impostos na Noruega em NOK 9,1 bilhões [1]. O Partido do Centro aponta que o aumento dos impostos afeta as pessoas com rendimentos regulares ou mais baixos e, portanto, aumentam as diferenças na Noruega.

O mesmo Partido de Centro propõe reduzir os impostos sobre alimentos, sobre eletricidade e, sobre o biodiesel. Também está focado na redução de custos de transportes, na eliminação de taxas sobre passageiros aéreos e adoção de outras isenções fiscais para geração de empregos.

E quanto ao Partido da Esquerda Socialista, que eu esperava um discurso punitivo em relação às grandes fortunas, também vi o mesmo senso propositivo na adaptação industrial às chamadas “tarefas verdes”, nas quais a redução da dependência do petróleo é fundamental. Veja que, de modo muito diferente do que vemos no discurso da esquerda latino-americana – e brasileira em especial – não há uma oposição essencial entre meio ambiente e capitalismo. Nas palavras deles, a dependência exacerbada do petróleo lança “as bases para o desemprego e a morte industrial”, ou seja, a adoção de uma “agenda verde” não deve descartar a manutenção da atividade industrial. Isto não tem nada a ver com perspectivas como as endossadas por militantes que veem na produção econômica uma lógica destruidora do meio ambiente, como já pude comentar aqui.

No entanto, o que eu vi de mais impositivo na agenda deste partido foi um aumento muito específico na carga tributária para o setor de óleo e gás no país:

  • Definiremos requisitos mais rígidos para diretores e acionistas de petróleo, para que eles não possam se esquivar da responsabilidade climática.
  • Colocaremos em prática medidas climáticas reais que reduzam as emissões o suficiente.
  • Não permitiremos mais exploração de óleo e gás ou novas licenças de produção na plataforma norueguesa.
  • Forneceremos mais dinheiro para investimentos verdes.
  • Vamos aumentar o imposto sobre o CO2.

Nos programas de governo com relação ao setor, os outros partidos da coalização, trabalhista e centrista, não apresentam programa tão claramente impositivo, o que sugere que irá ocorrer debate interno sobre como acomodar a perspectiva da Esquerda Socialista. De qualquer forma, não se trata de um programa meramente negativo, mas que coaduna com as propostas já elencadas acima pelo Partido Trabalhista.

Enfim, o que ficou claro na leitura dos programas é que não se propõe uma antinomia entre meio ambiente e economia. E muito mais do que um “equilíbrio” entre economia “podendo poluir um pouco” e defesa do meio ambiente mantendo áreas de preservação, se trata de uma consonância com atividades econômicas de menor impacto. Diferente do que se costuma fazer por aqui, quando se tenta mitigar externalidades negativas através de compensações socioambientais, a ênfase da coalizão norueguesa está na redução dos efeitos na origem das atividades, tentando minimizá-las para sua futura substituição e menor impacto no uso de recursos energéticos.

Na verdade, este caminho já vem sendo trilhado com sucesso pelo país, o da maior eficiência no uso da energia em relação ao aumento do PIB, como se pode observar no gráfico abaixo:

Segundo o Statistics Norway:

Com exceção dos anos em torno de 1980 e 1990, a economia norueguesa teve um crescimento mais forte em sua criação de riqueza medida como PIB do que no uso doméstico de energia, embora o uso de energia também tenha aumentado substancialmente. De 1976 a 2003, o uso de energia aumentou 69 por cento. No entanto, o crescimento do PIB no mesmo período foi de 135 por cento. A intensidade energética, medida como uso de energia por unidade do PIB, diminuiu, portanto, no período, implicando em um uso mais eficiente da energia.

Agora, expressando minha visão particular e declarado wishful thinking, torço para que a coalizão deste governo seja muito bem sucedida e isto não tem absolutamente nada a ver com ser de esquerda, de centro ou de direita, mas de que se aponte um caminho para o desenvolvimento, empregos, sem prejuízo da qualidade de vida envolvendo toda a biosfera tanto quanto possível. Se isto será ou não possível dentro de um único governo no país, creio que, errando ou acertando, a intenção clara é tentar coadunar diferentes agendas (ambiental, econômica) em um modelo integrado. Não há garantias de que isto irá funcionar, mas conhecendo um pouco de como funciona a política nesses países nórdicos, acho que irá ter um sucesso relativo.

§§§

Quanto à referida matéria da BBC Brasil que ensejou este artigo, tenho a dizer que, sobretudo nesses tempos em que muito se fala de fakenews, nem toda desinformação é, necessariamente, explícita e intencional. Posso estar enganado, mas creio que com o enriquecimento geral do país, é óbvio que os seus ricos também aumentam mais ainda suas fortunas, o que parece incomodar alguns partidários de um maior controle da economia pelo estado. Se entendi bem, isto estaria relacionado com o setor de exploração de petróleo e gás responsável por sua cota (substancial) nas mudanças climáticas. Mas, aí que está o ponto, ao invés de atacar isto mostrando o que pode ser feito em termos tecnológicos, o que está subentendido na matéria? Que é “consequência da desigualdade social”. Para bom entendedor, segundo a perspectiva da BBC Brasil, se igualarmos mais as classes sociais na Noruega, as emissões de gases estufa acabam como que por encanto.

Existem, digamos, “cacoetes intelectuais”, como acreditar que em todas as relações comerciais vigora um jogo de soma zero, no qual onde alguém ganha obrigatoriamente apenas se outro perder, ou que a opressão de um grupo ou classe social sobre outra sempre caracteriza as normas sociais de um sistema capitalista. Estes vícios mentais não são criados nas redações jornalísticas, eles apenas reproduzem mensagens subliminares, subtextos e, às vezes, campanhas difamatórias explícitas em salas de aula do ensino básico e superior ou em produções cultuais, cinematográficas, etc.

Um outro erro, que funciona como espelho, é achar também que sempre há má intenção de quem produz e/ou divulga este tipo de visão maniqueísta sobre nossas sociedades. Na maioria dos casos não, a manipulação é implícita ou até inconsciente. Por isso mesmo acreditar que sempre existe um professor com broche partidário na lapela, boné de movimento social ou camiseta com estampa de ícones revolucionários-totalitários também é uma caricatura da situação que, ao contrário, é mais complexa. Sim, esses militantes existem, mas não são a maioria. A grande maioria utiliza clichês como argumento pela simples falta de leitura alternativa e, quando digo que devem ler algo diferente que se contrapõe às suas crenças não o faço simplesmente para que “troquem de lado”, até porque dificilmente há apenas “dois lados” claros em situações conflitivas envolvendo bens difusos, como o meio ambiente. O que eu definitivamente desejo é que tenham sim mais opções de informação para que possam decidir por si mesmos. Não há como se achar livre, dotado de livre-arbítrio e liberdade de pensamento quando nos vemos encarcerados nas nossas cavernas de Platão particulares nos nutrindo da mera ignorância e preconceito.


[1] NOK, Norwegian Krone (Coroa Norueguesa). 1 NOK equivale a 0,65 centavos de Real. 9,1 bilhões de NOK equivalem a 5 bilhões e 900 milhões de Reais, no câmbio de 13 de outubro de 2021.

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