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outubro 23, 2021

Outubro Rosa: o desafio para mulheres que enfrentam, entre outras doenças, o câncer de mama, como a pandemia tem afetado o tratamento e diagnóstico de doenças ginecológicas e as dificuldades de se conviver diariamente com uma doença.

A avenida Amador Bueno da Veiga não é uma reta. No trecho entre o Cemitério da Penha e o Hospital São Gabriel há uma subida. Não é ruim de se andar, mas lembro que eu subia lentamente. Era um dia de sol, meio de semana. Não lembro se era quarta ou quinta-feira, mas era um dos dois dias. Eu estava cansada. Já faz quase dez anos, mas me lembro de cada detalhe daquele dia. Cheguei ao Hospital São Gabriel para uma consulta com um ginecologista que eu não conhecia. Eu só precisava que o problema que eu tinha fosse sanado. Fazia um sol na casa dos 28-30 graus e o ar-condicionado do hospital vinha como um refrigério em estado de urgência. Eu estava há mais de quinze dias sangrando ininterruptamente depois de ter ficado quase dez meses sem menstruar. Eu deveria ter prestado atenção, eu sei. Deveria ter ido ao médico antes, eu sei. Mas quando se tem 23 anos, um trabalho, estudos, sonhos tão altos, nenhuma mulher imagina que tem algum problema. Voltemos ao consultório. Não estava lotado, mas também não tinham poucas mulheres. Éramos em um número considerável. Brancas, negras, idosas, de meia-idade, jovens. Sentei-me ao lado de uma moça negra de cabelo cacheado que me perguntou, curiosa: “você já passou com esse médico?” Eu respondi: “não, é a primeira vez”. “Ah, eu queria conversar com alguém que já o conhecesse”, me respondeu em tom de preocupação. Depois de esperar bons minutos, entrei no consultório. Era um médico idoso, cabelos bem brancos, com ombros largos, braços grandes, mas atarracado. Olhava por baixo de olhos castanhos com olheiras profundas.

“Então, no que eu posso te ajudar?” Me perguntou. Expliquei o meu problema. “Quinze dias menstruando? Por que não veio ao médico?" E eu respondi, quase me desculpando: “Eu comecei no trabalho novo, depois estava concluindo os estudos, não tive tempo”. O médico fez uma cara de reprovação. Pediu exames, disse para marcar o retorno o mais rápido possível. Eu saí do consultório tranquila, o meu único incômodo era a hemorragia que não parava.

Assim como eu, milhares de mulheres no Brasil e no mundo sofrem ou já sofreram problemas ginecológicos que precisam de um acompanhamento médico e uma atenção mais especial, sendo os mais graves o câncer de mama e o câncer de colo de útero. Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer, o câncer de mama é o mais incidente em mulheres no mundo, com aproximadamente 2,3 milhões de casos novos estimados em 2020, o que representa 24,5% dos casos novos pela doença em mulheres. É também a causa mais frequente de morte por câncer nessa população, com 684.996 óbitos estimados somente em 2020.

No Brasil, o câncer de mama é o mais diagnosticado em mulheres de todas as regiões, após o câncer de pele não melanoma. As taxas são mais elevadas nas regiões Sul e Sudeste e a menor é observada na região Norte. Em 2021, estima-se que ocorrerão 66.280 casos novos da doença, o que equivale a uma taxa de incidência de 43,74 casos por 100.000 mulheres.

A pandemia da Covid-19 alterou o cenário de detecção do câncer de mama; a mamografia, um dos exames mais importantes para diagnóstico da doença, recomendado para mulheres com idade entre 50 e 69 anos, foi diretamente afetada pela pandemia, conforme mostra estudo recente, publicado em abril na Revista de Saúde Pública, segundo apuração da BBC Brasil. O número de mamografias realizadas na rede pública nesta faixa etária diminuiu 42% em 2020 na comparação com o ano anterior, caindo de 1.948.471 em 2019 para 1.126.688 no ano em que a pandemia começou.

A diferença de 800 mil exames não realizados no ano passado deve significar algo em torno de 4 mil casos de câncer de mama não diagnosticados em 2020, considerando estimativas da taxa de detecção da doença nas mamografias digitais (em média de 5 casos detectados para 1.000 exames). Levando em conta esses números, a matemática é clara; a estatística é que nos próximos anos haja uma sobrecarga de casos de câncer de mama no SUS. Correndo por fora da ausência de mulheres em consultas e exames, há problemas antigos que não podem ser deixados de lado, como a falta de médicos e mamógrafos para a realização da mamografia. Ainda segundo dados da mesma reportagem o Departamento de Informática do SUS, Datasus, indica que a taxa de mamógrafos disponíveis do SUS era de 1,3 para cada 100 mil habitantes; na rede privada, de 6,16.

Essa demora tanto para a realização da mamografia quanto na detecção do câncer também afeta as outras fases do tratamento e aumentará a possibilidade de morte por essa doença. No caso do Papanicolau, teste ginecológico que detecta lesões prévias ao câncer de colo de útero, segundo apuração da Revista Saúde, a redução da realização do exame no SUS chegou a 66,9%, o que também dificulta o tratamento e cura no câncer de colo de útero.

A artesã Jussara Rodrigues, moradora de Ermelino Matarazzo, bairro na zona leste da capital paulista, conta que desde novembro de 2019 tenta fazer mamografia e o exame de Papanicolau, através da rede pública pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas sem sucesso.

“A pandemia piorou a situação, mas nunca foi fácil marcar um exame no SUS. Sempre tentei, fui ao posto de saúde, peguei encaminhamento, mas foram poucas as vezes que eu consegui, na maioria das vezes só pagando mesmo”, conta a artesã.

O mioma uterino, doença que eu tive, é a quinta doença ginecológica mais comum em mulheres, segundo o Instituto de Saúde da Mulher. Não oferece risco de vida, mas compromete e muito a qualidade de vida, a fertilidade e a saúde sexual feminina. O agravante do mioma é o fato dele ser um perigo silencioso. Se percebe o mioma desde o início, na maioria das vezes, apenas com a realização do ultrassom transvaginal. No estágio em que eu estava, o exame detectou dois tumores, um de 3 e outro de 9 centímetros, de forma mais ilustrada, e segundo a comparação do médico ginecologista que me operou, João Francisco Dória Ramos: “o maior do tamanho de uma laranja Bahia e o menor do tamanho de uma laranja Pêra”.

Eu voltei à consulta com o primeiro ginecologista, do Hospital São Gabriel, com os exames e já sabendo do diagnóstico pelo médico que realizou o ultrassom transvaginal em mim. Eram mais de 50 dias sangrando. Cólicas, cansaço, sono contínuo, constrangimento algumas vezes por vazar sangue na minha roupa e uma média de 16 a 24 absorventes usados por semana. Correndo por fora os analgésicos, lenços umedecidos, e roupa íntima extra levada na bolsa para trocar durante o dia.

O médico olhava os exames com preocupação e me disse o óbvio, que eu estava com dois miomas em estágio avançado de desenvolvimento. “E qual o tratamento adequado para essa situação? Eu perguntei. Ele respondeu que receitaria um remédio de uso contínuo para conter a hemorragia e pediu que eu voltasse para consulta dentro de seis meses. Sem entender, eu respondi: “Mas só isso?” Ele olhou para mim e sem delongas disse: “para o seu caso, só arrancando o útero fora”. Eu ouvi horrorizada e quase sem acreditar no que tinha escutado, na forma abrupta com que o médico tinha falado aquilo. Se eu ouvi uma sentença dessas, imagine quantas mulheres por dia não ouvem coisas piores em outros consultórios? Além da humilhação em não ter como marcar seus exames ou a dificuldade para isso, as dores, os incômodos, os sintomas dando o alerta de que há um perigo rondando dentro de nós, ambientes de trabalho que não estão prontos para atender às necessidades de mulheres doentes ou com câncer e muito menos políticas públicas que unem comunidades, escolas e alunas para orientações sobre educação sexual e saúde íntima.

Quando cheguei à porta para sair do consultório, virei de costas, respirei fundo, olhei para o médico e disse: “você deveria ter mais sensibilidade ao falar com as mulheres aqui dentro. Eu, ainda posso ter possibilidades de me consultar com outro médico, mas muitas não tem. Seja mais humano e dê uma esperança a elas”. Saí do consultório e bati a porta.

Foram quase dez meses de tratamento, exames específicos, remédios para anemia e quatro médicos. Era a primeira segunda-feira de dezembro de 2013. Um dia de sol e quase silencioso nas primeiras horas da manhã. O socorro ao sofrimento que eu vivi chegou exatamente às 14h31 num centro cirúrgico no Hospital Edmundo Vasconcelos. Eu via os olhos verdes e felizes da ginecologista Syomara Almeida, médica e aluna do cirurgião José Francisco Dória Ramos que me operou, atrás da máscara cirúrgica. Ela pegou na minha mão esquerda, apertou e disse: “já vai passar, viu? E trate de engravidar logo”. Eu sorri, um pouco sonolenta pelo efeito do pré-anestésico.

“Qual a sua sobremesa preferida? O que você gosta de fazer no seu tempo livre?” Me perguntava o anestesista enquanto colocava o remédio na minha veia, que não foi muito fácil de achar. A primeira resposta eu lembro que disse: torta de chocolate e morango. A segunda, já não lembro de mais nada.

O bom de estar anestesiado é a sensação de que o problema foi simples e fácil de ser resolvido. Não se vê, ouve ou sente nada. É um sono profundo, um estado de espera sem consciência. Meus olhos se abriram devagar. As luzes da sala eram difusas; algumas estavam acesas, outras apagadas. Alguém, que eu não sei quem é, ressonava profundamente ao meu lado. O barulho do sono desse desconhecido era o que mais me incomodava, nem tanto as luzes brancas. Uma cortina azul me separava do dorminhoco e de quem estava do meu lado esquerdo. Meus olhos se fecharam novamente. Senti que a cama em que estava começou a se movimentar. Eu me esforçava para abrir os olhos, mas não conseguia. Não sei se o caminho era longo, não lembro de vozes ou barulhos enquanto a cama andava.

“Jéssica. Acorde. Já acabou.” Dizia a médica Syomara. “Abre o olho, menina! Você está no quarto”. Eu abri os olhos e do meu lado direito estava a ginecologista, do outro a minha mãe, que tocou no meu braço. Com a voz fina e falhando, perguntei à médica: “deu tudo certo, doutora?” E ela respondeu: “deu sim. Tudo certinho. Você está livre. Hora de pensar em vida nova”.

Referências:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-57277699

https://saude.abril.com.br/medicina/com-pandemia-numero-de-exames-feitos-no-sus-cai-20/

https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-de-mama

https://www.ism.net.br/saude/as-8-doencas-ginecologicas-mais-comuns-na-mulher

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