Trata-se de dois textos em um. O primeiro argumentará que bilionários não deveriam existir. O segundo argumentará que deveriam. Com qual dos autores você concordará ao final?
Sumário
Bilionários não deveriam existir.
Por Franz K.
Sim, você leu certo. Existem neoliberais que se posicionam contra a existência dos 2,8 mil bilionários do mundo. Para explicar a revolta, vamos dividir esse grupo em categorias:
1. Os ilegalmente bilionários
2. Os bilionários antiliberais
3. Os bilionários marcianos
Todos os 2,8 mil se encaixam em uma dessas categorias. Muitos, em mais de uma ao mesmo tempo. Vamos às reflexões:
1. Os ilegalmente bilionários
Quanto mais renda e patrimônio você tem, maior sua capacidade de fugir das regras tributárias ou de punições (pagamento de advogados, postergação de penas, uso de paraísos fiscais, arquiteturas tributárias e sonegação que não vem “na fonte” como nas classes mais baixas).
Veja, exceto o uso de caros advogados para se livrar de crimes financeiros “explícitos”, não estamos afirmando que as demais práticas evitam a punição dos bilionários. Só que o fácil acesso a essas práticas aumenta a probabilidade de acobertar crimes.
Quanto mais renda e patrimônio você tem, maior sua capacidade, se quiser, de buscar crimes financeiros mais relevantes (desvio na compra de uma usina, propinas em contratos públicos, etc.). "Ah, mas milionários também têm esse poder e você nem está contra eles". Verdade. Isso se dá por uma questão de intensidade. A gente acha que é só uma letrinha, mas é um universo de distância.
Por exemplo, sabe a diferença de poder entre um bilionário e um milionário? Te explico. Se um milionário quisesse gastar todo seu patrimônio em 1 ano, torraria pouco mais de R$ 2,7 mil reais por dia, descontados os juros. Bastante, né? Poderia morar esse ano inteiro na Pousada Maria Bonita em Fernando de Noronha (diária de R$ 2.500) e depois do réveillon com influencers voltar zerado pra casa e buscar algum emprego.
Mas e se um bilionário tivesse de gastar todo seu patrimônio em 1 ano? Teria de torrar R$ 2,7 milhões de reais por dia - novamente descontados os juros. Essa é a diferença de poder para cometer crimes que o bilionário tem, se quiser.
Sabendo que US$ 7,6 trilhões estão guardados em paraísos fiscais, fora o patrimônio em imóveis que a maioria possui, podemos chutar por baixo que 25% dos bilionários se encaixam aqui nesse grupo 1? Se quiser, pode supor só 10% deles, não muda muito o argumento. Em todas as classes sociais temos pessoas criminosas, sabemos que são minoria (senão o mundo seria ainda mais caótico, né?). Aqui, neste texto, pelo aumento da facilidade de cometer crimes, vamos usar a premissa de 25%.
2. Os bilionários antiliberais
Gastaremos pouco tempo estimando esse grupo. Um artigo na The Economist afirma que representam 25% dos bilionários. Por quê? Sem tecnicalidades sobre rent-seeking, fiquemos com uma rápida metáfora:
- A economia do mundo é uma mesa de sinuca desnivelada.
- Independente do sistema político-econômico do país, ela sempre está desnivelada a favor das classes mais altas encaçaparem suas bolas (honestamente ou não).
- Para os empresários das classes mais iniciais ou intermediárias de renda, o esforço da tacada precisa ser maior. Alguns conseguem, muitos, não.
- Aqui entra o papel desses bilionários antiliberais. Eles possuem poder e agem para “calçar” a mesa e aumentar o desnível e facilitar seus pontos tanto na esfera pública quanto privada.
- Na pública: fazem lobby (sim, legalmente) para beneficiar grupos ou projetos específicos, patrocinam leis que aumentam barreiras à entrada e outras demandas que limitam a competitividade.
- Na privada: usam seu poder para eliminar a competição por meio de dumping, fusões que concentram o mercado e outras táticas anticompetitivas.
- Todos os esforços vão nesse sentido. O maior medo desses bilionários é sempre a competição, que é a alma de um mercado em bom funcionamento, né?
- Enquanto isso, para ajudar no discurso, justificam que é assim que se eleva a “altura” da mesa para todos (até permitem alguns calçamentos mínimos no outro lado, para dar uma sensação de melhorar o ambiente competitivo).
- O discurso fica bonito, passam décadas dizendo que estão melhorando a economia com reformas estruturantes, mas por baixo do pano se aproveitam das falhas de mercado para concentrar renda.
Resumindo: os bilionários antiliberais odeiam competição e vivem buscando destruí-la, mesmo sem uso de ações ilegais. Indivíduos com tanto poder e com uma motivação tão antiliberal só atrapalham e danificam o mercado.
3. Finalmente: os bilionários marcianos
Já percebeu o que fizemos acima, né? Grupo 1: 25%. Grupo 2: 25%. Assim, grosseiramente, temos uma conta fácil: sobra metade dos bilionários nessa categoria. Em uma mesa de jantar com 10 bilionários em Davos, podemos nos alegrar que 5 deles são honestos marcianos e não destroem a competitividade nos mercados que atuam. Só estão por aí no mundo esquiando e curtindo a fortuna que criaram ou gastando suas heranças (aqui os antepassados podem ter pertencido aos grupos 1 e 2, nunca saberemos…).
Poderíamos terminar corrigindo então o título do texto: só metade dos bilionários não deveria existir!
Ok, a manchete inicial foi levemente caça-cliques. Assumindo essa nova ótica, então nos EUA só 362 bilionários não deveriam existir. No Brasil, 32. Podemos arredondar para 35, né? Afinal, sem comprar senadores, quantos bilionários brasileiros resistiriam a 90 dias de investigações de uma CPI?
Desses “talvez limpos” mas marcianos, alguns estão buscando se mudar para outros planetas, outros não têm ideia nem procuram saber como vive 40% da população mundial, outros compram iates de R$ 2,6 bilhões durante a maior pandemia que já vivemos.
Claro que também temos bons exemplos, como a campanha Giving Pledge, de prometer doar tudo em vida aos poucos, e o exemplo radical de um bilionário que surpreendeu o mundo doando 30% de seu patrimônio de uma vez, para atacar a crise humanitária da pandemia.
Conclusão: temos bilionários relativamente "limpos", neoliberais e com boas intenções? Temos uma parte, sim. Queremos eles como amigos. Mas suas boas intenções não são suficientes. Precisamos de mais bilionários neoliberais não marcianos, com os pés no chão, que olhem para a Terra onde pisam e ajam. Ajam mais e mais rápido e para ontem.
Qual o teto de patrimônio em que os bilionários deveriam ficar mais incomodados de viverem nessa desigualdade? Será que com R$ 999 milhões já não ficariam confortáveis por 3 ou 4 gerações da família? A partir de qual patrimônio eles devem ser radicalmente cobrados (moral e tributariamente)? A partir de qual patrimônio eles mesmos devem se cobrar de agirem com mais urgência?
Dos 2,8 mil bilionários do mundo, metade não deveria existir. Mas a outra metade deveria ter mais urgência em reduzir a desigualdade de oportunidades no mundo. Esse é um espírito fundamental do neoliberalismo: condições iguais de partida. Hoje, no mínimo, 4 bilhões de pessoas não possuem essas condições iguais de partida. Alguns nem comida pra se levantar.
Aos 1,4 mil bilionários não criminosos do mundo, nós neoliberais fazemos um apelo: sejam mais ativos na implementação de soluções, acordem, acelerem, invistam mais, ousem mais a fundo perdido. Ações pontuais ou pesquisas de problemas menos urgentes, como colonizar Marte, não são suficientes.
Aos 1,4 mil bilionários não criminosos do mundo, vocês conhecem o altruísmo eficaz? Estariam dispostos a investir imediatamente metade do patrimônio nessas ações? Por que esperar 30 anos? São todas ações com o maior retorno esperado para cada dólar investido. Nós neoliberais amamos tanto projetos com bom ROI, né? As opções já estão todas mapeadas aí. Seja para doação, seja para investimento.
Com tanto sofrimento dos seres humanos e não humanos neste planeta, com tanta degradação ambiental que estamos vendo, investir tempo realizando sonhos e viagens espaciais é uma afronta. Se vocês são bilionários honestos, mas estão indo por esse caminho, vocês até podem existir, mas não são exemplo pra ninguém.
Epílogo Bônus [uma última provocação, agora mais normativa]
Para manter a estabilidade do sistema, é consenso a necessidade de circuit breaks na Bolsa e de ter o governo como emprestador de última instância para bancos. Neoliberais também foram pioneiros na defesa da renda mínima.
O foco sempre foi em não cair demais (seja o índice da Bolsa, o capital dos bancos ou a renda das pessoas). Será que não está na hora de pensarmos em como não subir demais?
Por que é tabu pensarmos em circuit breaks de acumulação de patrimônio? Ou em um imposto total de última instância?
Nada radical. Hoje, Bezos é o número 1 da lista da Forbes, com US$ 177 bilhões de patrimônio. Podemos combinar em, se ele chegar a 200 bilhões, toda a renda adicional que ele tiver (ou o equivalente em patrimônio/ações/imóveis, o bilionário escolhe) deve ser redistribuída para subsidiar uma renda mínima? Não vai solucionar a pobreza, mas ajuda a pagar algumas escolas ou refeições, pode ser transferência direta ou PIX. O próprio bilionário pode indicar onde deseja que sua taxação seja direcionada (por região ou tipo de projeto que preferir).
Podemos colocar o gatilho em US$ 300 bilhões também, se essa ideia de taxar 100% acima de US$ 200 bilhões parecer muito radical. Mas algum teto precisaria ter. Não para resolver os problemas do mundo. Mas para resolver alguns deles, para algumas famílias ao menos.
PS: aliás, 10 anos atrás, teríamos destruído a economia colocando esse teto em US$ 100 bilhões? Naquela época, o mais rico da Forbes era Carlos Slim, com apenas US$ 50 bilhões.
Ok, parem de me chamar de comunista. Vamos pôr o teto em US$ 1 trilhão. Acho que chegamos a um consenso. Quando um indivíduo tiver um patrimônio maior que 174 dos 190 países do mundo, é porque algo deu errado. Que esse indivíduo seja taxado em 100% de tudo que ganhar ou acumular a partir daí. Pronto, não foi difícil, temos um consenso sobre a necessidade do teto. Só falta ajustarmos a altura dele.
Sim, bilionários deveriam existir.
Por Fernando Moreno
1. Introdução
Há excelentes razões para defendermos a existência de bilionários, principalmente para os desafios que hoje enfrentamos. Atualmente temos assistido a um movimento onde bilionários, em geral movidos por motivações altruístas, têm financiados projetos de alto impacto social e científico, visando desde o desenvolvimento de vacinas e prevenção da próxima pandemia até a erradicação da pobreza extrema. Contudo, admito que essa tendência ainda é bastante incipiente se tomarmos por parâmetro os 223 bilionários signatários do Giving Pledge, correspondente a pouco mais de 8% dos 2.755 bilionários do mundo.
Observo que a defesa que faço da existência dos bilionários não pode ser considerada como “apaixonada” pela causa. Ela é, antes de tudo, pragmática, visando tanto impactar positivamente nos problemas acima mencionados como também evitar o mal maior da destruição da prosperidade generalizada via desincentivos para o investimento, cujo impacto é quase sempre pior aos mais pobres.
Essa defesa também deixa espaço para a taxação via impostos, democraticamente deliberada. Com isso fujo de armadilhas comuns em que, minha opinião, recaem muitos libertários e alguns liberais, ao adotarem posições mais “principialistas” e menos consequencialistas e “evidencistas”, como nós neoliberais costumamos preferir.
Por fim, observe-se que a defesa da necessidade e até da utilidade da existência dos bilionários não os desculpa das enormes responsabilidades – morais – advindas de sua riqueza.
2. Imposto sobre grandes fortunas: revolucionários sob Rivotril
Se fizermos uma lista das ideias mais queridas da esquerda, seja a brasileira, seja a americana ou europeia, o imposto sobre grandes fortunas necessariamente deverá estar no Top 5. Se no passado a ideia favorita era o fuzilamento dos ricos no terror revolucionário, atualmente a esquerda (ainda que não toda) parece aceitar melhor a ideia de não matar os mais ricos e até mesmo de não subtraí-los de toda sua fortuna. Nisso a democracia operou como um Rivotril, popular calmante dos nervos, civilizando a margem à esquerda da política. Justiça seja feita, no contexto brasileiro quem atualmente mais precisa do Rivotril democrático e assim abandonar o gosto por sangue e barbárie está na extrema direita, tão bem representada pelo bolsonarismo espumante.

Mas voltemos à esquerda. Esta hoje se contenta com uma proposta um pouco mais republicana: taxar os mais ricos. Não, é claro, todos os ricos. Não devemos considerar como pertencentes ao grupo dos ricos o alto escalão do funcionalismo público, por exemplo. Rico é apenas o capitalista, o milionário, ou melhor, o bilionário. Com isso ela consegue fazer um recorte que não desagrade uma parte importante de seu eleitorado abastado. Retomo aqui um ocorrido em 2017, quando Temer tentava ajustar as contas públicas destruídas pela gestão Dilma:
Este mês, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal que, se prosperar, aumentará a transferência de renda dos pobres para os ricos. O objetivo da ação, deferida liminarmente pelo Ministro Ricardo Lewandowski, era suspender a Medida Provisória que adia os reajustes aos servidores públicos federais e que aumenta sua alíquota de contribuição previdenciária.
Se o PSOL obtiver ganho de causa, isso não somente prejudicará a solidez fiscal, mas também aumentará desigualdade de renda.
Segundo dados da PNAD, cerca de 6 em cada 10 servidores federais estão entre os 10% mais ricos do Brasil. No setor privado, apenas 1 em cada 10 está entre os 10% mais ricos. Além disso, os servidores públicos federais ganham, em média, o dobro do que trabalhadores do setor privado que têm características educacionais, regionais e laborais similares, conforme demonstra estudo do Insper. Por isso, no curto prazo, ao privilegiar servidores que são relativamente mais ricos, o ganho real dos servidores públicos deverá aumentar a desigualdade – algo que é confirmado por diversos estudos estatísticos.
Alguns comentaristas assinalaram essa incoerência, já que o PSOL, que diz defender medidas que melhoram a justiça social, desejava transferir recursos do contribuinte para uma minoria que tende a ser mais rica do que o próprio contribuinte. A reação do PSOL foi dizer que os ricos brasileiros não são ricos de verdade.
Juliano Medeiros, Presidente Eleito do PSOL, ao defender a postura do PSOL em favor dos mais ricos, espantou-se ao perceber que uma família de 4 pessoas com renda de 10.400 reais por mês (2,6 mil per capita) pertence ao decil mais rico do Brasil – sendo que, certamente, a maior parte das pessoas fora de sua bolha social sabe que tal renda não é pequena para a realidade brasileira.
Carlos Góes. O PSOL é o retrato da elite brasileira. Link
Vale lembrar que a esquerda não odeia todos os bilionários. Há também os "bilionários do bem", aqueles que merecem construir um império de falcatruas com dinheiro emprestado do BNDES, como o fez Eike Batista... Veja, em certo sentido, nós, neoliberais, somos mais contra bilionários que parte da esquerda brasileira. Nós nos opomos veementemente que recursos públicos que poderiam ter sido usados para construir hospitais e escolas fossem direcionados para o esquema fraudulento de Batista. Não dar dinheiro público para os ricos ficarem ainda mais ricos, em duvidosos projetos de escolha dos campeões nacionais, seria um bom primeiro passo para “acabar” com certos bilionários.
De todo modo, não temos problema com impostos sob os mais ricos para financiamento de bens públicos. Há também espaço para combater a desigualdade de renda dado os problemas sociais que ela gera. Nisso, nós do campo neoliberal assumimos uma posição bem mais progressista que libertários e alguns liberais. As evidências corroboram que a desigualdade de renda – e não apenas a pobreza, como querem alguns – leva a inúmeros problemas sociais, políticos e, inclusive, prejudica o próprio crescimento econômico. Esses pontos já foram abordados por diversos artigos que escrevemos e traduzimos, não cabendo nos estender aqui.
Caberia, contudo, também relacionarmos algumas ressalvas, que talvez não são suficientemente óbvias para o campo da esquerda:
- A solução para o problema da desigualdade e da pobreza não passa necessariamente pela expansão do Estado. É possível pensar em inovações, inclusive diminuindo o tamanho do Estado, ao mesmo tempo em que se aumenta a ajuda social aos mais pobres assim como soluções inovadoras para prover bens públicos de modo privado. Aliás, boa parte da desigualdade social é causada pela intervenção do Estado e nisso o Estado brasileiro parece ser exemplar, como nos casos já mencionados neste texto com o funcionalismo público e empréstimos via BNDES, o que deveria nos precaver para futuras expansões do Estado via impostos.
- Esses impostos sobre grandes fortunas não arrecadam muita coisa. Não espere resolver todos os problemas das contas públicas com ele. Por incidir num grupo muito reduzido de pessoas, seus resultados são modestos. Por exemplo, “na Noruega, o imposto está presente desde a década de 1960 e as alíquotas para os cidadãos que possuem mais que 1,48 milhão de coroas norueguesas (aproximadamente R$ 926.173,00) são de 0,7%. Por ano, a arrecadação do tributo representa 0,5% do PIB do país e recai sobre cerca de 15 mil contribuintes, num país de 5,4 milhões de habitantes”. Link.
- O imposto pode sair pela culatra, ao levar a fuga de capitais. Aqui a razão é de ordem prática e não moral. Os ricos, sob ameaça de verem suas fortunas cada vez mais taxadas, podem mover seu dinheiro para outros países. Deste modo, apenas com o combate sério a paraísos fiscais e uma ação coordenada global de instituição desse imposto poderia resolver esse impasse, o que parece improvável. No final do dia, a fuga de capitais pode levar a uma situação pior que a inicial, com o empobrecimento da população.
- O imposto sobre fortunas estimula ainda mais o gasto com luxos e frivolidades dos muito ricos. Sim, você leu certo. Ao taxarmos as grandes fortunas estamos taxando aquele valor que foi acumulado (ao invés de, por exemplo, aumentar o imposto sobre a renda da pessoa). Com isso, você estará na verdade penalizando aqueles rico que economiza e investe seu dinheiro e dando um "desconto" no imposto dos ricos que preferem gastarainda mais com seus carros de luxo e iates ao invés de investirem. O exemplo de Mankiw a seguir deixará esse último ponto mais claro:
Considere dois hipotéticos CEOs de grandes corporações. Cada um deles ganha, digamos, 10 milhões de dólares por ano, o que os coloca no 0,01% da distribuição de renda. Mas, além de suas receitas, os dois executivos são muito diferentes.
Um executivo, a quem chamarei de Sam Gastador, usa todo o seu dinheiro levando uma vida de luxo. Ele bebe vinho caro, dirige Ferraris e voa em seu jato particular para férias luxuosas. Ele doa grandes quantias a partidos políticos e candidatos, na esperança de que essas contribuições lhe rendam o cargo de embaixador algum dia. Como isso não tem dado muito certo, ele resolveu gastar grandes somas para financiar sua própria candidatura quixotesca à presidência.
O outro executivo, a quem chamarei de Frank Frugal, ganha tanto quanto Sam, mas tem uma abordagem diferente para sua boa sorte. Ele vive modestamente, economizando a maior parte de seus ganhos e acumulando um patrimônio considerável. Ele renuncia à oportunidade de tentar influenciar o processo político. Em vez disso, ele investe seu dinheiro em start-ups de sucesso, que ele é muito bom em identificar. Ele planeja deixar parte de sua riqueza para seus filhos, netos, sobrinhos e sobrinhas. A maior parte de sua riqueza, no entanto, ele planeja doar para a universidade que estudou, onde apoiará as gerações vindouras de alunos de baixa renda.
Pergunte-se: quem deve pagar impostos mais altos? Sam Gastador ou Frank Frugal?
Eu consigo entender o argumento para tributá-los da mesma forma. Afinal, eles têm os mesmos ganhos. Pode-se argumentar que como eles escolhem gastar seu dinheiro não é uma questão que o governo deva julgar ou influenciar.
Estou mais inclinado, entretanto, a pensar que o Sr. Frugal deveria ser tributado menos do que o Sr. Gastador. O argumento é pigoviano. O comportamento do Sr. Frugal confere externalidades positivas, tanto aos membros de sua família quanto aos beneficiários de seu legado de caridade. Além disso, ao aumentar o estoque de capital da economia, sua poupança leva a redução do retorno sob o capital, aumenta a produtividade do trabalho e os salários reais. Se alguém está preocupado com a distribuição de renda, este externalidade também pode ser vista como desejável.
O que acho difícil de acreditar é que o Sr. Frugal deva pagar impostos mais altos do que o Sr. Gastador. Mas é o que ocorre em algumas das propostas de políticas que estão sendo amplamente discutidas.
Gregory MANKIW. How to Increase Taxes on the Rich (If You Must). Link.
A ideia de taxação de grandes fortunas parece ser a solução mais prática hoje proposta pela esquerda para, se não acabar com os bilionários, ao menos fazê-los pagar sua parte justa na conta. Então voltemos para as origens dessa ideia: afinal, a fortuna dos bilionários é justa? Ou ela é uma apropriação injusta de um dinheiro que pertencia a outras pessoas – digamos, aos trabalhadores?
3. Mais valia: quando uma crítica moral se traveste de teoria científica
(Se julgar esse debate sobre teoria marxistas um tanto sacal pode pular para o próximo capítulo).
Há uma ideia subjacente ao pensamento de esquerda até hoje quando propõe coisas como o imposto sobre grandes fortunas: a ideia de que esse valor, hoje em mãos dos capitalistas, nunca deveria ter estado nas mãos deles. Seria a apropriação indevida da chamada mais valia, conceito central na teoria marxista.
Poucas ideias de Marx são mais relevantes em seu pensamento como a teoria da mais valia. Essa teoria se relaciona intimamente com outra e dela depende, a teoria do valor-trabalho, já presente em outros economistas clássicos como Adam Smith e David Ricardo.
A teoria do valor-trabalho diz que o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho que é necessário para a produzir. Num exemplo clássico entre os teóricos do valor-trabalho, a razão pela qual um diamante é mais valioso que um copo de água é porque é requerido, certamente, mais trabalho em encontrar e extrair um diamante do que um copo de água. A mais-valia por sua vez seria a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o salário pago a ele em troca. O capitalista estaria, deste modo, apropriando de parte do valor produzido pelo trabalhador. Link.
Mas seria a teoria do valor-trabalho válida? Não é o que dizem os principais economistas da escola neoclássica e o consenso científico da ciência econômica atual. O valor não seria uma propriedade objetiva, adquirida por um determinado objeto ao “inserirmos” trabalho nele, mas sim uma propriedade subjetiva, dependente das avaliações feitas pelos diversos indivíduos sobre se aquele determinado objeto tem valor ou não. É por isso que um colecionador pode estar disposto a pagar um alto preço pelo primeiro gibi do Batman enquanto eu não faria o mesmo. Cabe observar que a teoria subjetiva do valor não exclui a dimensão social óbvia¹ na formação de preços: caísse nas minhas mãos esse gibi eu certamente não o jogaria no lixo mas buscaria vendê-lo por um bom preço. Mas isso tão somente pelo conhecimento generalizado de que um objeto desse teria grande valor – para o colecionador!
Apesar de já descartada no campo da economia, essas ideias parecem resistir com considerável força no campo da esquerda. E isso não é à toa. A real força da teoria da mais valia nunca esteve em sua pretensão científica, mas em sua tentativa de fazer emergir um problema moral nas relações sociais. Para tornar esse ponto mais convincente, principalmente para o eventual leitor marxista destas linhas, trago citação de um pensador também marxista que identificou bem o problema:
Por que é necessário insistir na ideia de “neutralizar o grande capital”? Por que insistir em submetê-lo ao controle de regras estritas, em limitar o poder dos grandes acionistas e mesmo a propriedade privada das grandes empresas? Simplesmente porque o acúmulo de capital em poucas mãos não tem justificativa. É injusto. E aqui enveredamos pelo caminho dos fundamentos, inevitável. Todo mundo ouviu falar na teoria da mais-valia de Marx, a ideia de que há uma diferença entre o que é pago ao trabalhador e aquilo que ele produz em termos de valor. Os economistas de direita caem em cima dessa teoria, denunciando-a como sendo pouco científica, quando não pura metafísica. Há muita confusão nessa crítica. Mas a verdade é que essa teoria encerra problemas reais. Marx a apresentou há mais ou menos 150 anos, e praticamente não se avançou nisso. A esquerda deveria jogar fora a teoria da mais-valia? Não digo isso. Mas precisaríamos modifica-la radicalmente, o que significaria, no limite, produzir uma nova crítica da economia política. Crítica que aproveitaria muita coisa do Capital de Marx, mas que também mudaria outras, mesmo no plano do núcleo da teoria.
Não quero encher a cabeça do leitor com esse ponto, decerto muito técnico. Mas acho importante indicar pelo menos o caminho das pesquisas que venho fazendo. Há em Marx, junto com a teoria da mais-valia, um outro tema crítico, conexo, mas a meu ver separável, que é a ideia da impossibilidade de legitimar a posse do capital pelo trabalho do capitalista. Isto é, trata-se de mostrar que a posse do capital, e também da riqueza que vem do capital, não provém do trabalho do capitalista. E isso por uma dupla razão. Em primeiro lugar, porque o capital inicial de que dispõe o capitalista pode vir de muitas fontes: da herança, por exemplo; de resto, como se sabe, o mercado é um verdadeiro cassino, e a partir dele se pode adquirir muita coisa sem trabalho. Em segundo lugar, porque, mesmo supondo que o capital inicial do capitalista tenha vindo do seu trabalho, a riqueza que advém desse capital inicial como que se autonomiza do seu trabalho, e de certo modo de todo trabalho. Em última análise, essa riqueza nasce, na realidade, do próprio capital. Ou seja, a aquisição da riqueza por meio do capital não tem nenhum tipo de justificação ou legitimação (pelo trabalho do capitalista ou por outra via): o capitalista adquire mais capital porque já tem capital, ponto. Se a formulação precisa dos fundamentos dessa crítica está por ser feita, a desigualdade brutal que produz o capitalismo salta aos olhos, e não oferece dúvidas. Essa desigualdade é razão mais do que suficiente para que a crítica de seus fundamentos seja retomada em termos rigorosos.
Ruy Fausto. Reconstruir a esquerda. Revista Piauí. Link.
A citação acima foi retirada de um brilhante artigo de um pensador de esquerda dirigido à própria esquerda, criticando desde os problemas mais amplos e que já deveriam ter sido superados por este campo, como o estalinismo e demais tendência autoritárias (Lenin incluso), até o populismo e a corrupção sistemática praticados pelo PT. No mínimo, vale a leitura pelo esculacho que faz com a postura servil da filósofa e colega de trabalho Marilena Chauí.
Contudo, o recorte trazido aqui serve a um propósito mais específico: observar que, mesmo dentro da esquerda marxista, admite-se os problemas da teoria da mais valia. De acordo com Fausto, a crítica que resta, então, seria outra, mas que também já estaria nos escritos de Marx.
Novamente, nas palavras do autor: “o acúmulo de capital em poucas mãos não tem justificativa. É injusto.” Oras, se o ponto que sobrevive da teoria da mais valia marxista é uma questão de injustiça, estamos aqui nos domínios da filosofia moral. Mas se Fausto está certo nessa interpretação, por qual motivo passaram-se apenas 150 anos sem que muitos intelectuais marxistas insistissem nesse ponto? Simples! Pois isso remove a pretensão científica do projeto intelectual de Marx, “reduzindo-o” à reflexão filosófica.
A teoria do valor-trabalho não é científica, mas tão somente uma exortação moral. O mesmo se aplica à maior parte do “socialismo científico” a que se arrogava Marx. Para ver isso basta despir o rei Marx das “roupas invisíveis” de seu pretenso aspecto científico – ele estava o tempo todo nu! Esse último ponto, contudo, é muito melhor trabalhado neste artigo Diogo Costa no artigo “Do socialismo profético ao socialismo experimental”, não cabendo aqui me alongar.
4. A exortação moral aos bilionários
Não há propriamente roubo nas relações trabalhador-capitalista. Diga-se de passagem, com a cada vez maior automatação industrial, talvez seria mais correto devolvermos a mais-valia aos robôs, de preferência antes que a Inteligência Artificial mais avançada chegue e então “caia na real” de que está sendo roubada pelos capitalistas.

Mas se a teoria do valor-trabalho e o socialismo “científico” de Marx devem ser deixados de lado, talvez, como argumenta Fausto Ruy, reste espaço para a cobrança moral dos capitalistas bilionários? Penso ser o caso.
Primeiro, para alguns há sim o roubo (legalmente falando), corrupção e imoralidades na aquisição de suas fortunas. Não faço ideia de qual seria esse percentual, mas parece fazer bastande sentido pensar que se trata de um problema maior quanto mais subdesenvolvido é o país.
Casos como o anterior à parte, há também muito de sorte, tal como no “cassino financeiro” que Fausto menciona. E, independente disso, capital gera mais capital, isso é fato. A diferença é ver isso não como algo maligno, como quer a esquerda, mas em toda sua beleza, como querem os neoliberais. Prosperidade que gera prosperidade, via de regra, de modo inclusivo, enriquecendo a todos.
Cabe, contudo, olharmos para os excluídos deste processo e a eles estendermos nossa solidariedade. De quebra, estaremos incluindo-os na cidadania, no consumo e no capitalismo, gerando um ciclo virtuoso de prosperidade. É dever moral àqueles que já estão nesse ciclo inseridos buscar a inserção dos que ainda estão de fora. E nisso, sem dúvida, bilionários poderiam (e, moralmente, deveriam) rever sua lista de prioridades.
Aqui, recorro a Peter Singer, leitor crítico de Marx e provavelmente o filósofo moral mais influente da atualidade:
Para os super-ricos que vivem em particular extravagância e doam relativamente pouco, alguma culpabilização não estaria fora de cogitação. Considere Paul Allen, às vezes chamado de o “zilionário acidental”. Em 1975, Allen se juntou a um amigo do colégio para abrir uma empresa de computadores. Oito anos depois, ele se separou de seu amigo, mas manteve cerca de um quarto das ações da empresa. O antigo amigo era Bill Gates, e a empresa era a Microsoft. Agora, a Forbes lista o patrimônio líquido de Allen como 16 bilhões de dólares. Isso é cerca de um quarto do que Gates tinha quando doou US$ 28,8 bilhões. De acordo com o site de Allen, ao longo de sua vida, ele doou mais de US $ 900 milhões para causas filantrópicas. Muito poucas pessoas serão capazes de doar tanto, mas é menos de um trigésimo do que Gates doou, e se compara mal com o que comparativamente os “megaricos” doam. Além disso, em contraste com os projetos que Gates está fundando, Allen concentrou sua limitada filantropia em fundações artísticas, hospitais e outros projetos comunitários no já rico Noroeste do Pacífico dos Estados Unidos, onde ele mora. Tampouco Allen está vivendo modestamente e investindo sua fortuna para doar em algum momento futuro, como Buffett fez. Ele é dono de três times esportivos profissionais, nos quais investiu centenas de milhões de dólares. Seus brinquedos incluem uma grande coleção de aeronaves militares antigas e um iate de 413 pés chamado Octopus, que custou mais de US$ 200 milhões e tem uma tripulação permanente de 60 pessoas. Quando lançado em 2003, o Octopus era o maior iate do mundo. Possui estúdio de música e quadra de basquete próprios, dois helicópteros, sete barcos, um submarino e um veículo com controle remoto para observação do fundo do mar. No submarino podem dormir oito pessoas por até duas semanas debaixo d’água, se é isso que você deseja. De acordo com o Yachtcrew, um site para aqueles que buscam carreiras em iates, os proprietários normalmente devem gastar um mínimo de 10 por cento do custo do navio a cada ano para mantê-lo em boas condições de trabalho e cobrir os salários da tripulação. E Allen possui dois outros iates monstruosos, incluindo o Tatoosh, que em 2003 era o terceiro maior do mundo.
Não conheço Paul Allen e espero que o que escrevi sobre ele não seja visto como um ataque pessoal. Seu estilo de vida é, ao contrário, sintomático de nossa cultura, e é essa cultura que desejo criticar. Afinal, Allen não está sozinho em desfrutar de tais brinquedos. O Octopus caiu para o sexto lugar em tamanho, atrás dos iates de propriedade da realeza de Dubai e da Arábia Saudita, o bilionário russo Roman Abramovich, e Larry Ellison, diretor executivo da empresa de software Oracle. Ellison é outro bilionário extravagante que poderia estar fazendo muito mais bem com seu dinheiro; ele foi citado como tendo dito “O dinheiro é apenas um método de contagem de pontos”. Atualmente classificado em quatorze na lista da Forbes dos mais ricos do mundo, ele é estimado em US$ 25 bilhões. Ele tem uma propriedade em estilo japonês de quarenta acres em Woodside, Califórnia, estimada em US$ 200 milhões, e propriedades em Malibu no valor de mais de US$ 180 milhões. Ele colocou milhões de dólares de seu próprio dinheiro em licitações malsucedidas para disputar a Copa América de 2003 e 2007. Ele possui muitos carros exóticos e vários aviões, incluindo caças a jato. Seu iate Rising Sun custou cerca de US $ 200 milhões para construir – quase o mesmo que o Octopus de Allen, mas ele reclama que é difícil encontrar ancoradouros grandes o suficiente para isso, então agora ele encomendou um “iate de lazer” menor que será mais fácil de Parque. De acordo com a Slate, em 2007 ele doou US $ 39 milhões. Se isso parece generoso, pense da seguinte maneira: se Ellison nunca ganhasse outro dólar, ele poderia dar US$ 39 milhões todo ano pelos próximos seiscentos anos e ainda ter mais de US$ 1 bilhão como uma almofada para sua velhice.
Peter Singer. The Life You Can Save. Link.
Particularmente, se eu estivesse escrevendo o texto contrário à existência dos bilionários, o teria iniciado com esse trecho do livro de Singer. É espantoso o que a prosperidade moderna tem possibilitado aos bilionários modernos adquirirem, coisas que fariam os reis mais poderosos e ricos do passado sentirem grande inveja.
Singer é habilidoso na escrita, desenvolvendo cuidadosamente o argumento moral pelo qual deveríamos doar mais aos mais pobres, de modo proporcional às nossas rendas. Não pense assim, portanto, que a responsabilidade moral recai tão somente sob os bilionários, milionários ou apenas ricos. O argumento de Peter Singer não respeita notas de corte arbitrárias nem se preocupa em eventualmente desagradar seu leitor abastado, ainda que não capitalista ou bilionário. Sua exortação é para todos nós que temos um nível confortável de vida de classe média. Primeiramente, você já refletiu o que é ter um nível de renda classe média neste século?
Em número próximo aos que vivem em extrema pobreza, há cerca de um bilhão de pessoas vivendo em um nível de riqueza nunca antes conhecido, exceto nas cortes de reis e nobres. Como rei da França, Luís XIV, o “Rei Sol”, podia se dar ao luxo de construir o palácio mais magnífico que a Europa já viu, mas não conseguia mantê-lo fresco no verão com a mesma eficácia que a maioria das pessoas de classe média em nações industrializadas pode manter seus casas frias hoje. Seus jardineiros, apesar de todas as suas habilidades, eram incapazes de produzir a variedade de frutas e vegetais frescos que podemos comprar o ano todo. Se ele desenvolvesse uma dor de dente ou adoecesse, o melhor que seus dentistas e médicos poderiam fazer por ele nos faria estremecer.
Mas não estamos apenas em melhor situação do que um rei francês que viveu há séculos. Também estamos muito melhor do que nossos próprios bisavós. Para começar, podemos esperar viver cerca de trinta anos a mais. Há um século, uma criança em cada dez morria na infância. Agora, na maioria das nações ricas, esse número é inferior a uma em duzentas. Outro indicador que revela como somos ricos hoje é o número modesto de horas que devemos trabalhar para atender às nossas necessidades dietéticas básicas. Hoje, os americanos gastam, em média, apenas 6% de sua renda na compra de alimentos. Se trabalharem quarenta horas por semana, levará apenas duas horas para ganhar o suficiente para se alimentar durante a semana. Isso deixa muito mais para gastar em bens de consumo, entretenimento e férias.
(...)
Se você está balançando a cabeça em desaprovação com os excessos dos super-ricos, não balance muito. Pense novamente em algumas das maneiras como os americanos de renda média gastam seu dinheiro. Na maior parte dos Estados Unidos, você pode obter os oito copos de água recomendados por dia na torneira por menos de um centavo, enquanto uma garrafa de água custará US $ 1,50 ou mais. E apesar das preocupações ambientais geradas pelo desperdício de energia que vai para a produção e transporte, os americanos ainda estão comprando água engarrafada, no valor de mais de 31 bilhões de litros em 2006. Quando o Dr. Timothy Jones, um arqueólogo, conduziu um estudo financiado pelo governo dos EUA sobre desperdício de alimentos, ele descobriu que 14% do lixo doméstico é comida perfeitamente boa que estava em sua embalagem original e ainda no prazo de validade. Mais da metade dessa comida era embalada a seco ou enlatados que duram muito tempo. De acordo com Jones, US $ 100 bilhões em alimentos são desperdiçados nos Estados Unidos todos os anos. A estilista Deborah Lind quist afirma que uma mulher possui, em média, mais de US$ 600 em roupas que não usou no ano passado. Seja esse valor correto ou não é justo dizer que quase todos nós, homens e mulheres, compramos coisas de que não precisamos, algumas das quais nunca usamos.
A maioria de nós está absolutamente certa de que não hesitaria em salvar uma criança que está se afogando, e que faríamos isso a um custo considerável para nós mesmos. No entanto, embora milhares de crianças morram a cada dia, gastamos dinheiro em coisas que consideramos certas e dificilmente notaríamos se elas não estivessem lá. Isso está errado? Em caso afirmativo, até onde vai nossa obrigação para com os pobres?
Peter Singer. The Life You Can Save. Link.
Sim, bilionários deveriam estar fazendo mais pelo mundo. E você, que está me lendo e que provavelmente tem um confortável padrão de classe média, também.
5. O que os bilionários (e você!) poderiam estar fazendo com suas fortunas?
A lista a seguir obviamente não pretende ser exaustiva. Também não foi retirada da minha cabeça. Há diversos pesquisadores² que já se debruçaram há algumas décadas no que poderia ser feito de muito positivo no mundo com alguns bilhões de dólares a mais:
- Acabar com a Pobreza Extrema no mundo. Esse é o tema mais óbvio, dado o que estamos debatendo aqui. Contudo, não pressuponha que seja uma tarefa trivial e dependente apenas de dinheiro. Desenvolvemos melhor esse ponto no artigo "Não, Jeff Bezos não pode acabar com a fome no mundo".
- Desenvolvimento de curas, vacinas e acesso ao tratamento de doenças negligenciadas. Está relacionado ao item acima. A malária mata meio milhão de pessoas todos os anos. Já foi muito pior, quase 1 milhão no ano de 2003. Como ela, há diversas outras doenças mortais ou debilitantes que afligem praticamente apenas os mais pobres do mundo. Há sinais claros de que atacar a pobreza extrema ajuda a combater essas doenças e vice-versa.
- Prevenir a próxima pandemia, investindo em pesquisas e lobby por políticas mais adequadas neste sentido. Quantas vidas teriam sido salvas se estivéssemos melhor preparados para uma pandemia no ano de 2020? O quanto teríamos economizado? Deixando o lado humanitário de lado, até por razões puramente econômicas faria todo sentido que os bilionários do mundo gastassem mais aqui.
- Investimentos inteligentes em diminuição do Aquecimento Global e mitigação de seus impactos. Aqui os investimentos mais inteligentes parecem estar em coisas como lobby pró-taxas de carbono, P&D de novas tecnologias e geoengenharia.
- Investimentos relacionados a Inteligência Artificial, a provável inovação de maior impacto deste século, principalmente em seus aspectos de segurança e governança (transparência e controle pela sociedade).
Observe que essa lista de problemas prioritários poderia apenas parcialmente ser bem financiada pelos estados nacionais com alguma efetividade. Alguns dos problemas são globais ou transnacionais, outros envolvem ajuda humanitária para outros países. Não é que estados e organizações multilaterais como a OMC e ONU não se envolvam com tais tarefas, mas elas quase sempre precisam de apoio especializado de ONGs e organizações da sociedade civil para melhor serem implantadas. Não faltam casos de dinheiro desperdiçado por falta de envolvimento com a população local em políticas pró-desenvolvimento. Por conta disso, talvez os bilionários estejam em melhor posição para financiar e direcionar esses recursos – desde que esse bilionários não fiquem desperdiçando todo o dinheiro com iates, construindo foguetes e processando uns aos outros, é claro.
Agora, se a lista apresentada parece ambiciosa demais ou se parece ingenuidade esperar que os bilionários do mundo comecem a gastar suas fortunas com essas ações, saiba o seguinte: eles já o estão fazendo.
Bill e Melinda Gates, por exemplo, tem priorizado pela sua fundação o combate a doenças tropicais negligenciadas no mundo subdesenvolvido, já tendo doado mais de 50 bilhões de dólares e planejando doarem mais.
O próprio Peter Singer foi responsável por dar impulso a esse movimento de generosidade entre bilionários. Após leitura do livro The Life You Can Save, o casal Cari Tuna e Dustin Moskovitz resolveram doar suas fortunas, amealhadas no mundo de Silicon Valley, para os maiores problemas que o mundo hoje enfrenta, uma lista parecida com a proposta acima, acrescida de alguns pontos a mais. Link.
Não se trata de casos isolados. Desde 2010, Warren Buffet, Bill e Melinda Gates deram original ao Giving Pledge, uma espécie de compromisso público direcionado especificamente para os bilionários do mundo onde estes se comprometem a doar, pelo menos, mais da metade de suas fortunas para a caridade e causas de suas preferências. No momento em que este texto é escrito (agosto de 2021), mais de 223 bilionários de 27 países assumiram esse compromisso, correspondente a pouco mais de 8% dos 2.755 bilionários do mundo. Link. Link.
6. Teto? Só se for de gastos
Franz em seu texto parece insistir em um ponto: um eventual teto, impedindo assim de existirem bilionários. Qualquer um real (dólar, ien, bitcoin) a mais de fortuna que o eventual bilionário wannabe alcançasse seria automaticamente taxado em 100%.
Limitar a existência de bilionários poderia trazer coisas positivas? Podemos admitir que sim. Penso principalmente na menor influência do dinheiro na política e menor consumo conspícuo, por exemplo. Talvez, num aspecto mais sociológico, poderia fazer bem para a coesão social. Tudo aqui está, contudo, no terreno especulativo. Como sempre, desejamos as evidências.
Contudo, os pontos negativos de um eventual teto são mais claros: ele impediria o financiamento de projetos importantes, como os listados acima, e que o setor filantrópico estaria melhor preparado para operacionalizar do que os Estados. Mas o pior mesmo é que isso seria um entrave automático para qualquer investimento visando o lucro que ultrapassasse esse teto. O bilionário preferiria torrar o dinheiro dele, inclusive em muita coisa inútil de consumo conspícuo, do que tentar investir em alguma outra coisa mais produtiva para a sociedade. (abordamos isso na 2ª parte do texto, 4º ponto).
Deste modo, sua proposta consegue ser ainda pior que a do imposto sobre grandes fortunas, em termos de desincentivo aos investimentos. Faria até mais sentido um imposto muito, muito alto, digamos, 90% ou 95%, para todo ganho acima de 1 bilhão, que o teto puro e simples.
De resto, trata-se de um valor arbitrário (por qual motivo 1 bilhão e não 500 milhões ou 10 bilhões?) e com dificuldades inerentes de contabilização (os bilionários não tem 1 bilhão parados em suas contas correntes, dependendo assim de coisas que são apenas estimativas de valores, tais como seus imóveis e a cotação de ações na bolsa de valores, que variam diariamente).
Franz entende que não há nenhum motivo para alguém ter um bilhão ou mais pois não consegue entender que tipo de necessidade não atendida a pessoa teria acima desse valor. Aqui, acho que sou mais avançado do que o próprio Franz. Minha barra seria muito inferior, provavelmente em 50 milhões de dólares ou muito menos. Mal consigo imaginar que tipo de gasto próprio alguém poderia ter com uma fortuna acima disso, ainda que as extravagâncias com iates e frotas de aviões que vimos anteriormente seja uma pista.
Particularmente, entendo que a pessoa que amealhou um patrimônio acima de 50 milhões de dólares deveria considerar doar todo o excedente deste valor. E mesmo aqueles que têm muito menos deveriam passar a doar muito mais regularmente, inclusive as pessoas que se consideram simples membros da classe média mas cujos recursos já as colocam tranquilamente nos 10% ou mesmo 1% mais ricos do mundo. Mas a palavra-chave aqui é doação, motivada por suas reflexões sobre o estado de coisas do mundo e seu desejo de ajudar, e não taxação, com todo tipo de impactos econômicos. Tais recursos seriam por sua vez canalizados para ONGs e sociedade civil organizada, com diversas vantagens sobre o Estado no emprego de tais valores, podendo financiar, com muito mais precisão, menor corrupção e desperdício, a agenda dos maiores problemas do mundo acima proposta.
7. Notas
¹ Também presente na teoria do valor-trabalho de Marx. A teoria do valor-trabalho de Marx poderia mais corretamente ser chamada de teoria do valor social do trabalho. É por esse motivo que não bastaria o trabalhador “ficar enrolando” no trabalho para que o produto final valesse mais.
² Digno de citação aqui seria o trabalho do Copenhagen Consensus e de organizações ligadas ao Altruísmo Eficaz, tal como a Open Philanthropy. Para se aprofundar no tema sugerimos a leitura dos perfis de problemas do site 80.000 horas.
8. Bibliografia
FAUSTO, Ruy. Reconstruir a esquerda. Revista Piauí. Link.
GÓES, Carlos. O PSOL é o retrato da elite brasileira. Link.
MANKIW, Gregory. How to Increase Taxes on the Rich (If You Must). Link.
POLITIZE! Imposto sobre grandes fortunas: você sabe como funciona? Link.
SINGER, Peter. The Life You Can Save. Link.
WIKIPEDIA. Teoria do Valor Trabalho. Link.
WIKIPEDIA. The World's Billionaires. Link.

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