Procure no site:

julho 24, 2021

John Tomasi em “Free Market Fairness” desafia o leitor a pegar as teorias da justiça de esquerda e dar uma interpretação de direita a elas. O presente texto é em parte uma resposta a esse desafio. Chamo minha interpretação da abordagem das capacidades de livre mercado aristotélico. Abaixo esclareço do que isso se trata.

.

Minha utopia pessoal é um sonho neoliberal. Nela a sociedade e as instituições primárias e as formas de governo realizarão os princípios da justiça, tal como preconiza o filósofo John Rawls. Mas esses princípios não serão realizados mediante uma abordagem transcendental, como critica o economista Amartya Sen, mas sim via experimentação e pesquisa empírica, como argumenta a pensadora Martha Nussbaum. O espírito iluminista guiaria nossa procura, uma vez que não abandonaremos a razão em prol de um positivismo xucro. De forma aristotélica, construiremos uma lista das capacidades do homem necessárias para seu desenvolvimento pleno, uma pesquisa que envolveria uma coleta massiva de dados, variando de registros históricos de várias culturas a pesquisas de survey

Uma vez construída a nossa lista de capacidades, vale notar que não será algo escrito em pedra, algo ad eternum, mas algo fluido e numa eterna dialética se construindo e se transformando via discussão democrática. Os princípios da justiça nos acarretam a buscar equidade nas capacidades. Será instituído no nosso governo democrático representativo, parlamentarista, republicano e federalista o que Nussbaum chama de welfarismo institucional.

Por exemplo, haveria programas de renda mínima focalizados, sendo aleatorizados de modo a facilitar o acompanhamento de sua efetividade por nossos acadêmicos, que estão num constante diálogo com o governo, a fazer pesquisa de impacto. Em verdade toda política pública terá avaliação de impacto, as quais serão feitas mediante uma análise técnica, de custo-benefício, baseadas em evidências, sempre buscando a eficiência técnica e alocativa dos recursos públicos.

Então temos uma meta social que é maximizar as oportunidades dos desfavorecidos de modo que todos tenham uma oportunidade de desenvolverem suas capacidades, mas é preciso notar que uma das capacidades essenciais é as pessoas serem autoras da sua própria vida, como defende o filósofo John Tomasi. A construção autoral da vida mediante escolhas econômicas e civis nos acarreta a defesa de robustos direitos civis e econômicos para os cidadãos.

As pessoas então têm direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer contra eles. Esses direitos são tão fortes e têm tamanho alcance que levantam a questão de saber o que o Estado e seus servidores podem fazer, como bem argumentou Robert Nozick em sua perspectiva mais libertária. Neste sentido estreito, quero também um estado que seja mínimo (por falta de outra palavra melhor).

Todavia, diferente do sonho libertário, quero justiça social, sendo esta garantida pela sociedade. Contudo, em minha utopia o governo vai preferir, via de regra, a solução privada, evitando a solução que infla o setor público.

Ainda assim, onde for estritamente necessário, o governo estará lá. Nesta utopia teremos vouchers para educação e financiamento público, mas provisão/operação privada da educação. Teremos parcerias público-privadas para saúde e educação universal, provisão pública para os bens públicos e estatais nos monopólios naturais. Afinal, não sou contra tudo que vem do Estado, apenas sou cético, uma vez que, como expõem os economistas da escolha pública, sei que o governo, assim como o mercado, tem falhas.

Quero que o governo e o mercado sejam complementares, então quero um Estado mínimo, porém robusto, assim como um mercado livre e robusto. Teremos então uma sociedade capitalista, e o governo terá a meta de instituir as regras dos jogos para que uma ordem espontânea possa desenvolver-se, como preconiza o economista Friedrich Hayek. Quero que as pessoas sejam livres. Mas verdadeiramente livres, uma vez que entendo e aceito a crítica marxista de que sem renda a liberdade é meramente formal, esvaziada de real significado, então de meta econômico nosso governo quer maximizar o crescimento. Mas um crescimento sócio-ambientalmente consciente.

As instituições econômicas serão todas compostas por nossos melhores economistas, que buscam estabilidade macroeconômica, liberalização doméstica e abertura. As políticas macroeconômicas serão feitas mediante regras e não de forma discricionária, produzindo melhores resultados que modelos tipicamente desenvolvimentistas-discricionários, como foi razoavelmente demonstrado pelos economistas Kydland e Prescott. Será instituído o tripé macroeconômico e regras fiscais para evitar que o governo falhe com seus compromissos. O mercado será livre, porém o setor público intervirá para preservar a concorrência e corrigir as falhas de mercado.

Nosso lema? Crescimento e livre mercado, entendido aqui em sua mais ampla interpretação: não apenas livre comércio como também a livre circulação de pessoas. Não teremos barreiras ao comércio, a não ser em casos bem específicos, com estudos bem rigorosos e por um curto período de tempo. Teremos também fronteiras abertas, onde vetar a entrada de uma pessoa no país que deseje migrar será exceção e não regra e, com isso, uma sociedade multicultural. Isso é outro motivo para termos um estado de bem-estar social enxuto, mas não inexistente.

Quero essencialmente o que sonha a nossa mais vã filosofia: a liberdade das pessoas, como escreveram os grandes pensadores do passado, como John Locke, David Hume, John Stuart Mill e outros. As pessoas têm de ser livres, pois quero que cada indivíduo tenha a liberdade e a capacidade de buscar a sua própria concepção de boa vida. A liberdade será um norte para as instituições primárias dessa sociedade, pois quero com a liberdade essencialmente o florescimento do homem, como defendeu Wilhelm von Humboldt.

Nossa sociedade utópica será democrática e terá sufrágio universal, como hoje já é hoje o padrão em qualquer sociedade que mereça ser classificada como democrática. Mas é bom reforçar isso, pois, por mais que sejamos técnicos em cada nível de governo, jamais nos renderemos à tecnocracia. O governo sempre vai criar espaço para as pessoas deliberarem e se expressarem politicamente, como por exemplo mediante orçamento participativos, referendos e demais instrumentos. As pessoas estarão e serão politicamente engajadas, sempre atentas contra qualquer atentado contra suas liberdades. Seguirão a ciência e usarão da razão para construir políticas razoáveis e sensatas.

Nessa sociedade o pobre vai conviver com o rico, as moradias serão verticalizadas e teremos espaço para preservar a natureza e para construir uma sociedade harmônica e fraterna, na qual cultivamos a comunidade. As construções refletirão as aspirações artísticas e técnicas dos nossos melhores arquitetos e engenheiros. Minha utopia é nozickiana, pois é uma metautopia. Cada indivíduo, restringido pelas regras do jogo, pode explorar e construir sua própria utopia de seu jeito e ao seu modo. Os socialistas terão seus kibutz e/ou firmas autogeridas por trabalhadores; os artistas terão incentivos à cultura; os religiosos terão a liberdade para expressar sua fé; e todos poderão ser autores de sua vida numa sociedade livre e multicultural. O Estado vai ajudar os necessitados, mas não será paternalista, pois cultivamos a autorresponsabilidade.

Ainda haverá alguma pobreza relativa, dado que a régua do que definiremos como pobreza sempre aumentará, mas não miséria. Ainda haverá males naturais e alguns conflitos , ainda que não haverá mais guerras. É pelo livre comércio, como Kant postulou tanto tempo atrás, que as nações se harmonizam e tal objetivo de um mundo sem guerras nem está tão distante hoje. Quero a paz e a liberdade. Quero a fraternidade e a propriedade. Quero um mundo aos moldes da minha utopia, mas seria ela tão utópica assim, dados os avanços que o mundo já percorreu em tão poucos séculos?

E você, qual é a sua utopia?

Autor: Gabriel F. Ferraz

Revisão: Fernando Moreno e Lucas Favaro

Referência e recomendações

Ameriks, Karl, and Desmond M. Clarke. Aristotle: Nicomachean Ethics. Cambridge University Press, 2000.

Rawls, John. A theory of justice. Harvard university press, 2020.

Sen, Amartya Kumar. The idea of justice. Harvard University Press, 2009.

Sen, Amartya. "Development as freedom (1999)." The globalization and development reader: Perspectives on development and global change 525 (2014).

Nussbaum, Martha C. "Creating capabilities: The human development approach and its implementation." (2012)

Tomasi, John. Free market fairness. Princeton University Press, 2012.

Nozick, Robert. "Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Fernando Santos." (2011).

Hayek, Friedrich August. Law, legislation and liberty: a new statement of the liberal principles of justice and political economy. Routledge, 2012.

Kydland, Finn E., and Edward C. Prescott. "Rules rather than discretion: The inconsistency of optimal plans." Journal of political economy 85.3 (1977): 473-491.

Locke, John. Two treatises of government. Yale University Press, 2008.

Deixe seu comentário. Faça parte do debate