Procure no site:

julho 3, 2021

Seria o liberalismo contra a justiça social? E seria toda a justiça social cética da iniciativa privada? A esses questionamentos encontramos uma resposta no excelente livro de John Tomasi “Free Market Fairness”, obra esta que tem um simples mas provocativo objetivo: juntar Hayek com Rawls.

O economista Friedrich Hayek é posto como um símbolo do que os americanos chamam de liberal clássico, ou seja, um defensor da livre iniciativa e do governo limitado, enquanto o filósofo John Rawls é um símbolo para os próximos da social-democracia, sendo um defensor de um arranjo institucional cujas desigualdades são apenas aceitas se melhoram as condições dos mais desfavorecidos. Rawls constrói uma teoria ideal que pode servir para um robusto programa de redistribuição de renda advinda do governo. Então, como essas visões contrastantes, embora ambas advogando a alcunha de liberal, podem possivelmente andar juntas?

Para entender como esses mundos à parte de Hayek e Rawls se separaram dentro do liberalismo, somos introduzidos a uma história, que ocupa os primeiros quatro capítulos. A história é a seguinte: nos primórdios do liberalismo havia os liberais clássicos que perseguiam a justiça primeiramente por meio de medidas constitucionais protegendo liberdades negativas e assegurando as condições para o desenvolvimento de uma sociedade comercial. Eles advogavam essa forma institucional pois, em suas concepções, a justiça era puramente formal. Ou seja, esses liberais colocavam em primeiro plano a liberdade econômica, junto com as demais liberdades civis (liberdade de expressão, de associação, religiosa, entre outras). 

O paradigma liberal começa a mudar internamente com a chegada de John Stuart Mill. Vendo as enormes desigualdades que a sociedade de mercado poderia gerar, ele passa a relegar as liberdades econômicas a um segundo plano, enquanto as liberdades civis já citadas ficariam em primeiro. O desenvolvimento dessa mudança culmina no pensamento “liberal elevado”, que também conta com a proteção constitucional para as liberdades tradicionais. Mas esses liberais buscam uma realização mais plena da justiça por meio de instituições políticas com poderes para realizar distribuições justas de riqueza e poder. Eles advogam um papel mais expansivo pro Estado, pois concebem a justiça em termos substantivos, distributivos. Ou seja, enquanto a igualdade liberal clássica era puramente formal, em que os indivíduos eram iguais meramente à luz da lei, a igualdade dos liberais elevados é uma igualdade substantiva. Eles ocupariam assim um plano moral supostamente superior, por isso o "elevado".

A partir daí, aqueles que viam os mercados com bons olhos seriam relegados ao campo libertário, no qual os direitos de propriedade são vistos como absolutos, de modo que os únicos direitos e liberdades relevantes eram os de mercado.

Mas Tomasi nos mostra que isso é apenas uma interpretação do liberalismo advogada pelos partidários de uma interpretação rawlsiana desta filosofia política. Todavia, há muitos liberalismos dentro do liberalismo e não precisamos ficar contentes com a situação e ter que escolher entre a justiça social ou as liberdades de mercado. Aqueles que têm afinidade com as questões morais da justiça social e que são amigos dos mercados são convidados por Tomasi a fazer parte de um programa de pesquisa que constitui a democracia de mercado.

A democracia de mercado coloca os direitos e a liberdade de mercado (como o direito de fazer contratos, direito de propriedade, etc) em pé de igual aos direitos e liberdades civis (liberdade de expressão, liberdade de imprensa, etc), uma vez que através do mercado as pessoas podem se expressar como autoras dignos da sua própria vida. É através dessa expressão autoral que os indivíduos conseguem deliberar seus poderes morais como cidadãos. Então Tomasi advoga os direitos e liberdades de mercado de uma forma não libertária, ou seja, não absoluta. Mas diferente do liberal clássico, Tomasi vai além. Os liberais podem sim pensar na justiça social, para este autor. Para ele, na democracia de mercado as instituições devem ser arranjadas de tal modo a beneficiar os mais pobres, mas preferindo um esquema hayekiano de ordem espontânea.

Através da democracia de mercado, Tomasi convida o leitor a experimentar. Ele usa as leituras típicas do liberalismo elevado - como o igualitarismo de sorte ("luck egalitarianism") de Ronald Dworkin, a abordagem de capacidades de Amartya Sen e Martha Nussbaum ou a própria justiça como equidade de John Rawls - e, além disso, dá uma interpretação democrática de mercado nelas, ou seja, permitindo que as liberdades de mercado estejam em par com o esquema de liberdades tradicionais de um liberal elevado.

Diante dessa tarefa, Tomasi não deixa o leitor completamente sozinho ao propor sua interpretação da justiça como equidade de Rawls sobre as lentes da democracia de mercado - uma concepção que ele denomina justamente de "Free Market Fairness". Somos apresentados nos capítulos 5 ao 8 à rationale desse sistema e o seu porquê. Somos agraciados com um sistema genuinamente liberal, mas que coloca os mais desfavorecidos como parte central nas nossas concepções de justiça. Assim, Tomasi efetivamente cria um híbrido genuíno de Rawls e Hayek, propondo um sistema de justiça social com ordem espontânea.

A obra serve também como uma ótima introdução ao pensamento liberal, assim como permite e dá ao leitor caminhos para explorar o meio liberal de todas as formas e gostos. É uma recomendação máxima para qualquer liberal que se preocupe com os desfavorecidos, mas ainda assim é amigo dos mercados.

Deixe seu comentário. Faça parte do debate