Recentemente o senado americano aprovou o plano de infraestrutura do presidente Joe Biden. Trata-se de um pacote trilionário de investimentos, o que acende um alerta amarelo com relação à responsabilidade fiscal. Polêmicas à parte, o plano traz consigo uma ideia interessante para o desenvolvimento sustentável das cidades, bem como para a melhoria de seus padrões urbanísticos. Ele estabelece requisitos técnicos para que sejam feitos repasses de verbas para as cidades norte-americanas, visando o combate ao espraiamento e a centralidade do carro na mobilidade, bem como a flexibilização do uso do solo. É uma forma interessante de intervenção do poder executivo federal sem que se comprometa a autonomia dos entes.
Iniciativas como essa, por parte da União, não só podem como devem existir no Brasil. Os municípios possuem um papel central na política urbana do país, mas são pouquíssimos os que têm capacidade técnica para fazê-la de forma qualificada, sendo que até mesmo cidades com maior abundância de recursos, em sua maioria esmagadora, não foram capazes de melhorar os padrões. Além da falta de recursos, os problemas têm origens diversas, desde o analfabetismo urbano por parte dos gestores até o lobby de setores como da construção civil e associações de bairro. Desta forma, os regulamentos federais, para além de estabelecer meras diretrizes formais, devem ser propostos para viabilizar a melhoria na qualidade dos nossos municípios. A seguir, elenco alguns pontos que poderiam qualificar o planejamento dos nossos municípios.
Na linha da ideia do governo Biden, um regulamento federal pautado em amplos estudos técnicos, em análises prévias de impacto e em farto repertório de evidências para a obtenção do escopo almejado é essencial para evitar mais burocracia, engessamento e custos aos cidadãos, gestores e mercado, além de inibir a utilização do mecanismo para fins políticos. A maior parte das nossas cidades não tem condições de elaborar políticas e um planejamento com a qualidade necessária. Desta forma, a União poderia oferecer (possivelmente através do Ministério do Desenvolvimento Regional) uma assessoria para que os entes carentes de recursos possam ter um amparo na elaboração do planejamento urbano. Além disso, o condicionamento de determinados repasses, elaboração de consórcios e financiamentos a indicadores urbanísticos me parece uma ferramenta interessante. A título de exemplo, as emendas parlamentares, uma vez destinadas à infraestrutura urbana, moradia e afins, poderiam ter de seguir certas diretrizes.
A gestão democrática, princípio do Direito Urbanístico consagrado no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01), também merece uma atenção especial. Apesar da preocupação do legislador em garantir a participação da sociedade no processo de estruturação das cidades, a forma como isso deveria ser feito não foi bem desenhada, o que gera distorções gravíssimas. Por um lado, somente os grupos com mais recursos tendem a se organizar e fazer pleitos ao poder público. Já a população de menor renda não tem, nem de longe, suas demandas apreciadas da mesma forma. Por outro, a ausência de uma sistematização dessa participação faz com que organizações excedam suas competências e acabem por criar comissões com poder deliberativo e assim impedir projetos que os desagradam.
A União deveria atuar de forma a criar um padrão de conduta para essa participação para que essas questões sejam evitadas. As demandas de todas as camadas sociais e territoriais da cidade devem ser ouvidas e consideradas, além de criar travas para coibir a atuação dos NIMBYs (acrônimo em inglês para “não no meu quintal").
Outro grande empecilho existente é o número descomunal de municípios que o país possui. São mais 5500, o maior de todo globo. Na prática, este fato enseja uma série de gastos com estruturas políticas, pois cada ente tem de ser dotado de organização administrativa própria. Por conta disso, segundo pesquisa do Índice Firjan de Gestão Fiscal, quase 2 mil deles são incapazes de custear com recursos próprios a respectiva câmara dos vereadores e prefeitura. Em média, essas cidades gastaram em 2019 R$ 4,5 milhões por ano, sendo somente R$ 3 milhões de recursos próprios (IFGF: Quase duas mil cidades não se sustentam, revela índice de gestão fiscal da Firjan).
Em outro levantamento feito pelo instituto, constatou-se que 74% dos municípios (aproximadamente 4 mil) foram avaliados em sua gestão fiscal em estado difícil ou crítico. A partir de uma análise minuciosa por parte da União, é possível desenvolver um estudo para a redução desse número e, consequentemente, o enxugamento de custos, haja vista que o atual cenário é insustentável. Não se trata de suprimir as pequenas cidades, apenas reorganizar a esfera administrativa, de modo que uma área maior possua distritos, instituto que não possui tutela formal no ordenamento.
Os problemas são diversos e as soluções apresentadas até o momento foram ineficazes. A maior parte dos brasileiros vivem em centros urbanos e a União tem de começar a pensar políticas de auxílio efetivo para essas cidades. Esperamos assim contribuir para o debate sobre como, a partir de pequenas intervenções, podemos impactar positivamente na qualidade dos municípios.

Especialista em Direito Público, Liberal, Entusiasta de Cidades e Meio Ambiente