Mark Lilla é um renomado cientista político, historiador e jornalista, além de ser um dos expoentes do pensamento progressista nos Estados Unidos. Após a eleição de Donald Trump, Lilla entendeu ser necessário fazer autocrítica ao comportamento da esquerda americana nas últimas décadas e, então, escreveu o livro “O progressista de ontem e do amanhã”.
Valendo-se de uma exposição muito clara sobre os aspectos da política do país após a crise de 1929, o autor consegue traçar um panorama bem sintetizado e interessante. Muitos de seus argumentos são aplicáveis para as diversas democracias ao redor do mundo, inclusive o Brasil. Ele demonstra de forma lúcida como a ausência de diálogo e da cidadania (em seu sentido estrito) foram decisivos para um domínio do Partido Republicano.
Em um primeiro momento, estabelece uma divisão do cenário político americano em dois períodos que ele denomina de “dispensações” (“dispensations”, referencia ao termo bíblico). A primeira tem como marco inicial a eleição do democrata Franklin Delano Roosevelt e a implementação do “New Deal”, um período em que a ideia dominante era de cidadãos participativos na política, um projeto de nação focado na união contra os riscos do mercado, fragilidades internas e ataques a direitos civis. Em um momento de caos completo na sociedade, a adoção desses ideais coincidiu totalmente com o sentimento de povo desamparado que se via e uma situação trágica nunca antes vivenciada, pelo menos nessa intensidade.
Com o passar dos anos, esse projeto não recebeu as reformas necessárias e, segundo o autor, optou por uma forte retórica para aumentar cada vez mais a interferência do estado na vida das pessoas, em especial na economia. Prometia-se grandes resultados oriundos de regulações e investimentos públicos e o que se vislumbrava na realidade era uma crescente inflação e estagnação econômica. A seguinte passagem do livro resume bem o problema desse período: “Regulamentos bem intencionados fixados descoordenadamente por dezenas agências sufocam as pequenas empresas e começavam a asfixiar o crescimento econômico" (pg.34).
Situações como essa são extremamente comuns ao longo da história: governos e políticos são incapazes de realizar uma crítica interna efetiva e mudar a direção de seus atos. A partir disso, recorre-se a medidas temerárias, populistas em sua grande maioria, e que desconsideram os efeitos de longo prazo. A análise histórica demonstra que as liberdades públicas tendem a ser afetadas pela execução destes planos governamentais mirabolantes.
Segundo Lilla, o partido Democrata, em razão da ampla “soberania” que exerceu no período, perdeu um hábito fundamental para a boa governança de um país, o de “consultar a temperatura da opinião pública, de buscar o consenso e de dar pequenos passos de cada vez” (pg.34). Este abandono na prática do ideal de um governo próximo e solidário às pessoas somado ao momento caótico que o país se encontrava custou o fim da “dispensação” vigente. As portas se abriram para um discurso completamente oposto, protagonizado pelo ex-presidente Ronald Reagan.
O discurso que emergiu forte neste cenário político oferecia como remédio a redução drástica das “amarras estatais” em prol do indivíduo. Um viés anti-político foi adotado como solução para problemas que se enfrentavam naquele momento.
Com um viés muito individualista, os novos detentores da hegemonia política alegavam que o estado deveria se manter mínimo e sua principal função seria não atrapalhar o sucesso pessoal. É importante ressaltar que tais momentos políticos geralmente são envoltos em uma grande retórica. De fato, as medidas tomadas pela administração Reagan reduziram em alguma medida o tamanho do estado e principalmente o protagonismo deste na economia. Contudo, as narrativas políticas (tanto dos partidários quanto dos críticos) costumam superdimensionar os acontecimentos políticos reais e principalmente os resultados obtidos, para o bem ou para o mal. Toda proposta política mais "audaciosa" acaba passando por alterações antes de sua aprovação que acabam tendo por resultado suavizar seu impacto, principalmente em uma democracia.
De todo modo, ainda cabe uma análise da narrativa adotada neste período: Reagan pautou sua campanha em uma exaltação dos Estados Unidos e de seu povo, dizendo repetidas vezes que não havia nada de errado com eles. Implicitamente, sugeria que a razão do momento de estagnação fosse atribuída a um outro fator. A máquina pública, como já mencionado, foi tida como a grande culpada e, de fato, era, na visão de Mark Lilla. Mas não porque o Estado seria um mal em si, como Reagan dava a entender, mas pela ausência de reformas estruturais que pudessem garantir a eficiência do gasto público. Para Mark Lilla, não havia necessidade de uma mudança abrupta da direção governamental, como ocorreu, mas de um exame crítico dos gastos públicos e regulamentações, acompanhado por uma modernização no “modus operandi” para saciar as demandas e anseios da população e retomar o crescimento. Ao invés disso, os opositores do ex-presidente republicano insistiram em discursos e teses que já não eram mais aceitas pelo povo, o que só fortalecia os republicanos.
É importante esclarecer que, ao fazer menção às visões de mundo adotadas pelos partidos Democrata e Republicano, quero me referir também às diretivas de simpatizantes de certas ideologias. A menção aos republicanos se refere, em geral, aos conservadores, já os democratas abarcam os progressistas. Liberais se dividem entre os dois grupos, mas costumam adotar posições mais centristas, não sendo o alvo que Lilla mira no livro. Dito isso, Lilla narra que os republicanos conservadores se dedicaram em expandir ao máximo seus ideais e influência, criando think thanks e se esforçando para conquistar cargos no judiciário e em todas as instâncias políticas. Assim, poderiam sempre estar próximos da população e influenciar diretamente sua vida, além de estabelecer um canal efetivo para entender suas demandas.
Os democratas, por outro lado, foram para a direção oposta, dedicando-se a narrativas subjetivistas, como bem demonstra o slogan adotado pelo movimento feminista de que “o pessoal é político”. O foco era a identidade, conceito que emergiu com toda força na sociedade graças aos alunos de Kojeve, na França. Inclusive muitos deles migraram para os EUA, em especial na Califórnia. Lilla associa essa postura ao Romantismo Político. “Para os jovens da Nova Esquerda tudo isso fazia sentido, pois, como todo romântico, está cansado de saber tudo está interligado” (pg.58). Esta abordagem levava a uma interpretação de que todas as esferas da vida são políticas e nenhuma delas está dispensada da luta. Alega que os movimentos identitários queriam mais do que somente justiça social e o término da guerra. “Queriam que não houvesse espaço entre o que sentiam dentro de si e o que faziam no mundo lá fora” (pg. 59).
Ante a enorme diversidade de grupos e identidades, cada um visando, rigorosamente, seu propósito, o resultado foi uma forte desintegração do partido democrata em movimentos menores que atuavam fora de sua órbita, principalmente nos campus universitários. Lilla ressalta, sem nenhum problema, que essas iniciativas por um lado contribuíram diretamente para que os Estados Unidos se tornassem um país mais tolerante e atento a minorias, mas, em se tratando de política, essa fragmentação foi catastrófica. Importante ressaltar que, apesar do sucesso na empreitada por mais tolerância, não era necessária que a atuação fosse feita nos moldes do identitarismo. “O liberalismo identitário baniu a palavra 'nós' para os confins mais distantes do discurso político respeitável. Contudo, sem ela não existe futuro de longo prazo para o liberalismo (progressismo). Historicamente, os liberais (progressistas) apelaram para o nós para assegurar direito iguais, demandando que nós tenhamos um sentimento de solidariedade para com os desafortunados e que os apoiemos” (pg 96).
Nota-se o ponto chave da análise de Mark Lilla: a impossibilidade da consecução de uma sociedade cada dia melhor sem que exista uma coesão para tal. A cidadania, no sentido estrito da palavra, ou seja, de um status político compartilhado, é o que se deve mirar para a transformação da atual situação, pois, apesar dos valores individuais que cada um adere, “oferece uma linguagem política para falar sobre uma solidariedade que transcende os vínculos identitários” (pg. 98).
O grande clamor do autor em toda a sua argumentação é, tão somente, que as pessoas entendam que estão no “mesmo barco” e se convençam de que, para que se possa realmente melhorar a realidade americana, é imprescindível um diálogo efetivo. O individualismo característico da era Reagan e o identitarismo de esquerda que lhe seguiu resultaram em uma sociedade mais polarizada, incapaz de compreender a existência de uma teia social que liga todos os cidadãos e que a democracia é um processo contínuo de convivência com ideias divergentes. Logo, é necessário fazer concessões.
Por fim, resta esclarecer que o atual cenário, após a eleição de Joe Biden, em nada invalida as críticas elaboradas, principalmente por conta da excepcionalidade do contexto em que ocorreu. A leitura deste livro continua sendo extremamente valiosa em um período de tantos conflitos ideológicos.
Autor: Pedro Portes
Revisão: Fernando Moreno

Especialista em Direito Público, Liberal, Entusiasta de Cidades e Meio Ambiente