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maio 16, 2021

Resumo e comentário por Scott Alexander do livro de David Harvey “Neoliberalismo: História e Implicações” (Título original do livro é: "A Brief History Of Neoliberalism").

Parte 1

Por volta de 1970, algo deu errado. A economia global, após vinte e cinco anos de bom crescimento no pós-guerra, de repente explodiu.

O mundo econômico pós-Segunda Guerra Mundial mas pré-1970 - o mundo do “liberalismo integrado” - era um lugar agradável. Havia corporações, mas elas não faziam nada extravagante, como competir umas com as outras. Os salários dos executivos eram tributados tão pesadamente que ninguém tinha muito incentivo para tentar aumentar sua margem de lucro; a força de trabalho estava tão fortemente sindicalizada que as empresas ficavam nervosas com qualquer mudança que pudesse chatear seus funcionários. Desde que as empresas seguissem o roteiro, o governo as colocariam sobre os braços e as protegeriam. Começar um novo negócio era considerado um ato bizarro de alquimia, tal como descobrir uma nova forma de matéria; pessoas normais trabalhavam para a mesma empresa gigante durante toda a vida e ganhavam um belo relógio de ouro como recompensa ao se aposentarem. O governo não era exatamente socialista em si, mas continuava a criar e expandir programas como o Medicare, Medicaid* e a Previdência Social, e todas as noites você ia dormir sabendo que amanhã provavelmente seria criado algum programa de assistência social pelo governo, incontroverso e de grande sucesso.

*Nota do Tradutor: Medicaid é um programa de saúde dos Estados Unidos para famílias e indivíduos de baixa renda. Medicare é o seu equivalente para a população idosa.

Então, o sistema econômico global explodiu. Como de costume, os economistas vão debater quais foram as causas exatas para sempre. Mas a história básica é: após a Segunda Guerra Mundial, as grandes potências se reuniram em Bretton Woods para projetar um novo sistema financeiro. Os EUA, como líderes do mundo livre, ditaram os termos: todas as moedas globais seriam atreladas ao dólar, que por sua vez seria atrelado ao ouro. Isso favoreceu fortemente os EUA e os EUA aproveitaram sua vantagem para obter duas décadas de crescimento estelar e financiar todos os programas e concessões do governo aos sindicatos do setor público. Mas quanto mais os EUA pressionavam, mais pressão eles colocavam em Bretton Woods, até que finalmente em 1971 ele entrou em colapso sob a pressão e a economia global vacilou, confusa.

O Status 451 fez um ótimo post sobre a década de 1970 como uma lacuna na memória cultural - não nos lembramos quão ruim ela foi. O foco do post era a violência e o terrorismo - "as pessoas esqueceram completamente que em 1972 tivemos mais de 1.900 atentados a bomba domésticos nos Estados Unidos", incluindo ataques ao Capitólio e ao Pentágono. "Um grupo porto-riquenho bombardeou dois teatros no Bronx, ferindo onze, em 1970; o NYT escreveu 6 parágrafos a respeito".

Lendo uma breve história do neoliberalismo, tive a impressão de que nossa amnésia econômica em relação aos anos 1970 não é menos impressionante. Não houve um crash do mercado no estilo de 1929, apenas uma coisa atrás da outra. Como li o livro perto da Páscoa, as Dez Pragas me vieram à mente. O excesso de dólares (* derrama uma gota de vinho *). O choque Nixon (* derrama outra gota *). A Lei de Estabilização Econômica de 1970. A queda do padrão ouro. A crise do aço dos anos 1970. A crise do petróleo de 1973. Estagflação. O inverno do descontentamento. A crise de energia de 1979. E o Anjo da Morte foi o Choque Volcker de 1980, quando o desemprego ultrapassou 10% e as pessoas enviaram ao Federal Reserve caixões e veículos dois por quatro não vendidos em protesto*.

*Nota do Tradutor: O Federal Reserve foi alvo de diversos protestos por este plano. Revendedores de automóveis, especialmente afetados pelas altas taxas de juros, enviaram caixões contendo as chaves dos veículos não vendidos. Fonte.

Foi ruim. A cidade de Nova York escapou por um dia de ter que declarar falência em 1975 (outras fontes dizem que ela estava tecnicamente falida, mas conseguiu evitar ser assim declarada) e foi assumida pelo governo estadual por alguns anos até voltar aos trilhos. As histórias vindas da Grã-Bretanha eram ainda piores:

Os apoiadores [do governo] estavam em revolta aberta e os trabalhadores do setor público iniciaram uma série de greves paralisantes no 'inverno de descontentamento' de 1978. Os trabalhadores da área de saúde pararam e os cuidados médicos tiveram de ser severamente racionados. Coveiros em greve recusaram-se a enterrar os mortos. Os caminhoneiros também estavam em greve. Apenas os delegados sindicais podiam autorizar que caminhões com "suprimentos essenciais" cruzassem as linhas de piquete. A ferrovia britânica divulgou um aviso conciso: "não há trens hoje"... sindicatos em greve pareciam levar a nação inteira à paralisação.

O México declarou falência em 1982; quando a fumaça se dissipou, os salários médios mexicanos haviam caído 40%. O resto da América Latina não se saiu muito melhor. Os comunistas sugeriram que a queda inevitável do capitalismo estava finalmente próxima.

Mas sabemos como isso acabou. Os EUA ficaram com Reagan. A Grã-Bretanha com Thatcher. Uma onda de sentimento de livre mercado, mais tarde denominado "neoliberalismo", varreu o mundo. Os governos enfrentaram os sindicatos do setor público deixando apenas a casca daquilo que um dia foram; uma série de mudanças regulatórias permitiu que as empresas fizessem o mesmo com suas próprias forças de trabalho. As taxas do imposto de renda caíram; novos executivos famintos por dinheiro lançaram uma orgia de fusões e aquisições. Empresários fundaram novas empresas e forçaram os velhos dinossauros a competirem em pé de igualdade; os dinossauros responderam reduzindo seus tamanhos e enviando empregos para fora do país. O emprego deixou de ser uma garantia vitalícia para ser uma linha que você coloca em seu currículo ao se candidatar à próxima vaga. Chegando em 1990-2000, a maior parte da poeira já tinha baixado e, para melhor ou pior, tínhamos um novo sistema estável.

Parte 2

Parece simples? Não se você ler sobre isso em Neoliberalismo: História e Implicações de David Harvey. O relato acima é quase o oposto da forma como Harvey descreve os eventos. Contar a história dessa maneira me faz sentir como Jacques Derrida desconstruindo algum texto para minar o autor e provar que ele estava argumentando contra si mesmo o tempo todo.

Harvey é um teórico extremo do conflito. A história que ele quer contar é a história de pessoas más destruindo o paraíso do “liberalismo integrado” para encher seus próprios bolsos e esmagar seus oponentes. Nos seus melhores momentos, Harvey trata isso como uma tese a ser defendida: o liberalismo integrado mudou para o neoliberalismo não por questões relevantes de política econômica, mas porque os ricos forçaram a mudança para “reafirmar seu poder de classe”. Nos piores momentos Harvey se esquece de argumentar, sentindo tudo tão profundamente em seu interior que chega a ter dificuldade em acreditar que alguém realmente poderia discordar. Quando ele está assim, ele não analisa nada da economia muito profundamente; claro, pessoas ricas disseram blablabla econômico, para justificar sua trama para empobrecer as classes trabalhadoras, mas nós não acreditamos nelas e não temos a obrigação de analisar exatamente de que coisas econômicas estavam falando.

Nessas partes, o modus operandi em "Neoliberalismo: História e Implicações" é fazer um vago resumo do que aconteceu, para depois sobrecarregá-lo com uma linguagem emocional. Ninguém no livro fez um corte no orçamento, eles cortam selvagemente o orçamento, ou dizimam cruelmente o orçamento, ou então [advérbio dramático] [verbo dramático] etc. Ninguém nunca é contra a reforma neoliberal - eles resistem bravamente à reforma neoliberal, ou valorosamente se opoem à reforma neoliberal, ou o que seja. Ninguém nunca “ganha” dinheiro, eles o “extraem”. Então você lê uma narrativa superficial de algum evento histórico, com todos os advérbios alterados para advérbios mais dramáticos. Então lê uma discussão não muito convincente de por que tudo isso foi apenas sobre restabelecer o poder plutocrático. Este tipo de livro já se tornou basicamente um gênero literário inteiro, e a obra de Harvey se encaixa perfeitamente nele.

As teses de Harvey, enquadradas de forma nada caridosa, são:

1. O liberalismo integrado era ótimo e completamente sustentável. O colapso do sistema econômico global em 1971 foi provavelmente apenas coincidência ou algo assim, e não tem relevância para qualquer debate sobre o mérito relativo dos diferentes paradigmas econômicos.

2. Claro, algumas pessoas dizem que a interminável recessão / estagflação / desemprego / falência / greves dos anos 1970 foram ruins, mas essas pessoas são supostos plutocratas tentando tomar o poder e destruir a classe trabalhadora.

3. Quando cidades e países incorreram em enormes déficits e não conseguiram mais pagar os empréstimos, às vezes os bancos que emprestaram o dinheiro não gostaram. Algumas vezes os bancos chegaram até a pedir a esses lugares que parassem de incorrer em enormes déficits como pré-condição para serem socorridos. Isso prova que os banqueiros estavam conspirando contra o público e tentando formar uma plutocracia distópica.

4. Já que provamos que o neoliberalismo é uma farsa sem vantagens, devemos voltar ao liberalismo integrado.

Vamos examinar uma por uma essas afirmações e ver se estou sendo injusto.

A primeira tese está quase totalmente implícita. Harvey não dá nenhuma razão para o fracasso de Bretton Woods e a crise econômica dos anos 1970. É tratado apenas como um fato, interessante apenas na medida em que os plutocratas usaram isso como desculpa para promover políticas neoliberais. Harvey nunca nega explicitamente que isso aconteceu, apenas trata esse evento no mesmo sentido que o naufrágio do Maine aconteceu - o evento é menos interessante em si mesmo do que o fato de que forças sinistras foram capazes de alavancá-lo para seus fins sinistros.

O que nos leva à segunda tese. Como sabemos que os reformadores neoliberais - as pessoas que dizem "dado que a economia está em ruínas, talvez devêssemos reformá-la" - foram sinistros, em vez de genuinamente motivados pela confusão econômica extremamente real ao seu redor? O argumento de Harvey é complexo. Uma parte é "porque houve um lobby organizado para isso". Ele habilmente mapeia a existência de vários grupos de lobby neoliberais, explica como o financiamento corporativo fluiu para think tanks e cita importantes figuras empresariais dizendo que a reforma neoliberal os ajudaria em seus resultados financeiros. Por exemplo:

“No caso dos Estados Unidos, começo com um memorando confidencial enviado por Lewis Powell à Câmara de Comércio dos Estados Unidos em agosto de 1971. Powell, prestes a ser elevado à Suprema Corte por Richard Nixon, argumentou que as críticas e a oposição ao sistema de livre empresa dos Estados Unidos tinham ido longe demais e que "chegara a hora - na verdade, já era muito tempo - de a sabedoria, a engenhosidade e os recursos dos negócios americanos serem direcionados contra aqueles que os tentavam destruir". Powell argumentou que a ação individual era insuficiente. 'A força', escreveu ele, 'reside na organização, no planejamento e na implementação cuidadosa de longo prazo, na consistência da ação por um período indefinido de anos, na escala de financiamento disponível apenas por meio do esforço conjunto e no poder político disponível apenas através da ação unida e das organizações nacionais”. A Câmara Nacional de Comércio, ele argumentou, deve liderar um ataque às principais instituições - universidades, escolas, mídia, editoras, tribunais - a fim de mudar a forma como os indivíduos pensam 'sobre a corporação, a lei, a cultura e o indivíduo'. As empresas americanas não carecem de recursos para tal esforço, especialmente quando agrupadas."

É difícil dizer quão diretamente influente foi esse apelo para se engajarem na guerra de classes. Mas sabemos que a Câmara de Comércio Americana posteriormente expandiu sua base de cerca de 60.000 empresas em 1972 para mais de 250.000 dez anos depois. Juntamente com a National Association of Manufacturers (que se mudou para Washington em 1972), acumulou um imenso baú para sua campanha de lobby no Congresso e realização de pesquisas. A Business Roundtable, uma organização de CEOs 'comprometidos com a busca agressiva de poder político para a corporação', foi fundada em 1972 e, a partir de então, tornou-se a peça central da ação coletiva pró-negócios. As corporações envolvidas respondiam por 'cerca da metade do PIB dos Estados Unidos' durante a década de 1970 e gastavam cerca de US$ 900 milhões por ano (uma quantia enorme naquela época) em questões políticas. Think tanks, como a Heritage Foundation, o Hoover Institute, o Center for the Study of American Business e o American Enterprise Institute, foram formados com o apoio corporativo tanto para polemizar quanto, quando necessário, como no caso do National Bureau of Economic Research, construir estudos técnicos e empíricos sérios e argumentos político-filosóficos em apoio às políticas neoliberais. Quase metade do financiamento para o NBER altamente respeitado veio das empresas líderes na lista Fortune 500. Intimamente integrado à comunidade acadêmica, o NBER teria um impacto muito significativo no pensamento dos departamentos de economia e escolas de negócios das principais universidades de pesquisa. Com finanças abundantes fornecidas por indivíduos ricos (como o cervejeiro Joseph Coors, que mais tarde se tornou um membro do gabinete extra-oficial de Reagan) e de suas fundações (por exemplo, Olin, Scaife, Smith Richardson, Pew Charitable Trust), uma enxurrada de folhetos e livros, com Anarquia, Estado e Utopia de Nozick sendo talvez o mais lido e apreciado, surgiu defendendo valores neoliberais. Uma versão para a TV de Livre para Escolher, de Milton Friedman, foi financiada com uma bolsa de Scaife em 1977. “O negócio era”, conclui Blyth, “aprender a gastar como uma classe”.

Isso parece uma visão um tanto conspiratória sobre “os negócios não gostavam de políticas antinegócios e fizeram lobby para mudá-las”. Além disso, me pergunto se qualquer movimento poderia sobreviver a esse nível de crítica. Alguns progressistas formaram grupos de pesquisa antidesigualdade após a Grande Recessão? Então, parece que o progressismo é uma farsa de movimento que simplesmente usou a Grande Recessão como mera desculpa para vender sua agenda de guerra de classes!

O outro argumento de Harvey é que o neoliberalismo é ideologicamente incoerente de maneiras que não correspondem a seu suposto compromisso com a liberdade, mas fazem sentido como um cavalo de Tróia para interesses plutocráticos.

“Os dois motores econômicos que impulsionaram o mundo durante a recessão global que se instalou após 2001 foram os Estados Unidos e a China. A ironia é que ambos têm se comportado como estados keynesianos em um mundo supostamente governado por regras neoliberais. Os Estados Unidos recorreram ao financiamento deficitário maciço de seu militarismo e consumismo, enquanto a China financiou investimentos maciços em infraestrutura e capital fixo através de dívidas com empréstimos bancários inadimplentes. Os verdadeiros neoliberais sem dúvida alegarão que a recessão [SA: Acho que ele se refere à recessão do crash das pontocom do início dos anos 2000, mas não está claro nem mesmo no livro] é um sinal de neoliberalização insuficiente ou imperfeita, e eles poderiam muito bem apontar as operações do FMI e do exército de lobistas bem pagos em Washington que regularmente pervertem o processo orçamentário dos Estados Unidos para os seus próprios interesses como evidência. Mas suas alegações são impossíveis de verificar e, ao proclamá-las, eles meramente seguem os passos de uma longa linha de teóricos econômicos eminentes que argumentam que tudo estaria bem com o mundo se todos se comportassem de acordo com os preceitos de seus livros-texto.

Mas há uma interpretação mais sinistra desse paradoxo. Se deixarmos de lado, como acredito que devamos, a afirmação de que a neoliberalização é apenas um exemplo de teoria errônea que enlouqueceu (com todo respeito ao economista Stiglitz) ou um caso de busca sem sentido de uma falsa utopia (com todo respeito ao filósofo político conservador John Gray), então ficamos com uma tensão entre sustentar o capitalismo, de um lado, e a restauração / reconstituição do poder da classe dominante, do outro. Se estamos em um ponto de total contradição entre esses dois objetivos, então não pode haver dúvida sobre para qual lado o atual governo Bush está inclinado, dada sua ávida busca por cortes de impostos para as corporações e os ricos. Além disso, uma crise financeira global em parte provocada por suas próprias políticas econômicas imprudentes permitiria ao governo dos EUA finalmente se livrar de qualquer obrigação de prover o bem-estar de seus cidadãos, exceto para o aumento do poder militar e policial que pode vir a ser necessário para pôr um fim no caos social e forçar a disciplina global”.

Não tenho muita certeza do que Harvey quis dizer quando diz que os cortes de impostos de Bush são a antítese da verdadeira ideologia de livre mercado. Mas aparentemente ele pensa que isso é verdade, e um sinal de que o governo está tentando provocar uma crise financeira global para “finalmente se livrar de qualquer obrigação de prover o bem-estar de seus cidadãos”.

Houve alguns outros supostos exemplos de prática neoliberal contradizendo a ideologia liberal - embora eu não consiga encontrar partes facilmente citáveis, acho que ele está pensando na Guerra do Iraque e em vários resgates financeiros (embora não nos resgates de 2008, já que este livro foi escrito no início dos anos 2000). Concordo que o governo não foi um neoliberal ideológico perfeito em todos os momentos, mas isso me impressiona menos do que aparentemente impressiona David Harvey. Mais uma vez, acho que essa crítica é forte o suficiente para ser aplicada a qualquer ideologia - que governo já seguiu perfeitamente os ditames do socialismo, do conservadorismo ou da teocracia? O governo é uma massa amorfa de poder que é capturada por grupos diferentes em momentos diferentes e direcionada sem muita ordem para um propósito ou outro; só porque ela não segue à risca uma filosofia específica sem desviar por cinquenta anos não torna essa filosofia inerentemente fraudulenta.

A terceira tese, sobre dívidas e banqueiros, começa na fascinante narrativa do livro sobre a quase falência de Nova York em 1975. Segue um trecho (longo):

“A crise fiscal da cidade de Nova York foi um caso icônico. A reestruturação capitalista e a desindustrialização vinham erodindo a anos a base econômica da cidade, e a rápida suburbanização empobrecia grande parte de seu centro. O resultado foi uma crise social explosiva por parte das populações marginalizadas durante a década de 1960, definindo o que veio a ser conhecido como 'a crise urbana' (problemas semelhantes surgiram em muitas cidades dos Estados Unidos). A expansão do emprego público e da provisão pública de bens e serviços - facilitada em parte por generosos recursos federais - foi vista como a solução. Mas, diante de dificuldades fiscais, o presidente Nixon simplesmente declarou o fim da crise urbana no início dos anos 1970. Embora isso fosse novidade para muitos moradores da cidade, era um sinal de redução da ajuda federal. À medida que a recessão ganha força, a disparidade entre receitas e despesas no orçamento da cidade de Nova York (já grande por causa dos empréstimos irresponsáveis ao longo de muitos anos) aumentou. No início, as instituições financeiras estavam dispostas a preencher o buraco, mas em 1975 um poderoso conchavo de banqueiros (liderados por Walter Wriston, do Citibank) se recusou a rolar a dívida e levou a cidade à falência técnica. O resgate que se seguiu envolveu a construção de novas instituições que assumiram a gestão do orçamento da cidade. Eles eram os primeiros da fila, usando as receitas dos impostos municipais para pagar os detentores de títulos: só depois, o que sobrou foi para serviços essenciais. O efeito foi restringir as aspirações dos poderosos sindicatos municipais da cidade, de implementar congelamentos salariais e cortes no funcionalismo público e na provisão de seus serviços (educação, saúde pública, serviços de transporte), e impor taxas aos usuários (as mensalidades foram introduzidas no sistema da universidade CUNY pela primeira vez). A humilhação final foi a exigência de que os sindicatos municipais investissem seus fundos de pensão em títulos municipais. Os sindicatos, então, ou moderavam suas demandas, ou enfrentavam a possibilidade de perder seus fundos de pensão em caso de falência da cidade.

Isso significou nada menos do que um golpe das instituições financeiras contra o governo democraticamente eleito da cidade de Nova York, e foi tão eficaz quanto o golpe militar ocorrido anteriormente no Chile. A riqueza foi redistribuída às classes altas em meio a uma crise fiscal. A crise de Nova York foi, argumenta Zevin, sintomática de "uma estratégia emergente de desinflação associada a uma redistribuição regressiva de renda, riqueza e poder". Foi "uma batalha precoce e talvez decisiva em uma nova guerra", cujo objetivo era "mostrar para os outros que o que está acontecendo com Nova York pode e, em alguns casos, vai acontecer com eles também."

Se todos os envolvidos nessa negociação fiscal a entenderam como uma estratégia para restaurar o poder de classe, é uma questão em aberto. A necessidade de manter a disciplina fiscal é motivo de preocupação por si só e não implica, como o monetarismo em geral, necessariamente redistribuições regressivas. É improvável, por exemplo, que Felix Rohatyn, o banqueiro comercial que intermediou o negócio entre a cidade, o estado e as instituições financeiras, tivesse em mente a restauração do poder de classe. A única maneira de "salvar" a cidade era satisfazendo os banqueiros de investimento e, ao mesmo tempo, diminuindo o padrão de vida da maioria dos nova-iorquinos. Mas a restauração do poder de classe era quase com certeza o que os donos de bancos de investimento como Walter Wriston tinham em mente. Afinal, ele via todas as formas de intervenção governamental nos EUA e na Grã-Bretanha como comunismo. E era quase certo que esse era o objetivo do secretário do Tesouro de Ford, William Simon (que mais tarde se tornaria chefe da ultraconservadora Fundação Olin). Vendo com bons olhos o desenrolar dos eventos no Chile, ele aconselhou fortemente o presidente Ford a recusar ajuda à cidade (“Ford para a cidade: Morra” foi a manchete do New York Daily News). Os termos de qualquer resgate econômico, disse ele, deveriam ser "tão punitivos, a experiência tão dolorosa, que nenhuma cidade, nenhuma subdivisão política jamais se sentiria tentada a seguir o mesmo caminho".

Embora a resistência às medidas de austeridade fosse generalizada, ela só poderia, de acordo com Freeman, “desacelerar a contra-revolução vinda de cima, mas nunca impedi-la. Em poucos anos, muitas das conquistas históricas da classe trabalhadora de Nova York foram desfeitas.” Grande parte da infraestrutura social da cidade foi diminuída e a infraestrutura física (por exemplo, o sistema de metrô) deteriorou-se acentuadamente por falta de investimento ou mesmo manutenção. A vida cotidiana em Nova York ‘tornou-se exaustiva e a atmosfera cívica tornou-se mesquinha’. O governo da cidade, o movimento sindical municipal e os nova-iorquinos da classe trabalhadora foram efetivamente despojados ‘de muito do poder que haviam acumulado nas três décadas anteriores’. Os nova-iorquinos desmoralizados da classe trabalhadora consentiram relutantemente com as novas realidades.

Mas os banqueiros de investimento de Nova York não se afastaram da cidade. Eles aproveitaram a oportunidade para reestruturá-la de acordo com a sua agenda. A criação de um 'bom clima de negócios' era uma prioridade. Isso significava usar recursos públicos para construir infraestrutura adequada para os negócios (em particular nas telecomunicações) juntamente com subsídios e incentivos fiscais para empresas capitalistas. Bem-estar corporativo no lugar do bem-estar das pessoas. As instituições de elite da cidade foram mobilizadas para vender a imagem da cidade como centro cultural e destino turístico (inventando o famoso logotipo 'I Love New York'). As elites dominantes se mobilizaram, muitas vezes a contragosto, para apoiar a abertura do campo cultural a todos os tipos de correntes cosmopolitas. A exploração narcísica do eu, da sexualidade, e da identidade tornou-se o fio condutor da cultura urbana burguesa. A liberdade e a licença artística, promovidas pelas poderosas instituições culturais da cidade, levaram, efetivamente, à neoliberalização da cultura. A ‘Nova York delirante’ (para usar a frase memorável de Rem Koolhaas) apagou da memória coletiva a Nova York democrática. As elites da cidade aderiram, embora não sem luta, à demanda por diversificação do estilo de vida (inclusive à preferência sexual e gênero) e ao aumento das opções de consumo de nicho (em áreas como a produção cultural). Nova York se tornou o epicentro da experimentação cultural e intelectual pós-moderna. Enquanto isso, os bancos de investimento reconstruíram a economia da cidade em torno das atividades financeiras, serviços auxiliares, como serviços jurídicos e mídia (bastante reanimados pela financeirização corrente), e consumismo diversificado (gentrificação e 'restauração' de vizinhança desempenhando um papel proeminente e lucrativo). O governo municipal foi cada vez mais sendo considerado uma entidade empreendedora do que social-democrata ou mesmo gerencial. A competição interurbana por capital de investimento transformou o governo em governança urbana por meio de parcerias público-privadas. Os negócios da cidade foram cada vez mais realizados a portas fechadas e o conteúdo democrático e representacional da governança local diminuiu.

A classe trabalhadora e os imigrantes étnicos de Nova York foram empurrados de volta para as sombras, para serem devastados pelo racismo e uma epidemia de crack de proporções épicas na década de 1980 que deixou muitos jovens mortos, encarcerados ou desabrigados, apenas para serem espancados novamente pela epidemia de AIDS que se prolongou até a década de 1990. A redistribuição por meio da violência criminal tornou-se uma das poucas opções sérias para os pobres, e as autoridades responderam criminalizando comunidades inteiras de populações empobrecidas e marginalizadas. As vítimas foram culpadas, e Giuliani reivindicou fama ao se vingar em nome de uma burguesia cada vez mais abastada de Manhattan, cansada de ter que enfrentar os efeitos de tal devastação em suas próprias portas”.

Se você é como eu, você leu tudo isso sobre "a contra-revolução de cima", "a humilhação final" e "exploração narcísica do eu, da sexualidade e da identidade" (ele quis dizer gays?) e depois de um tempo você quer ver alguns números ou pelo menos um pouco de contexto. Por exemplo - como Nova York ficou tão endividada? Os credores não foram razoáveis ​​(para os padrões da época) quando pediram seu dinheiro de volta, ou essa era uma prática aceita na época? Como Harvey acredita que governos e bancos deveriam lidar com uma situação em que alguém toma um empréstimo e não consegue pagar? Não vemos nada a respeito, Harvey parece nem cogitar que essa pode ser uma questão e, em vez disso, há página sobre página sobre como banqueiros gananciosos destruíram Nova York.

Além disso, acho que pelo menos algumas dessas páginas são falsas: a Wikipedia diz que “a cidade se tornou notória por seus altos índices de criminalidade e outros problemas sociais” em 1970, cinco anos antes de tudo isso acontecer. Além disso, segue um pouco mais desse artigo:

“O Sindicato dos Trabalhadores em Transporte da América (Transport Workers Union - TWU), liderado por Mike Quill, fechou a cidade com a paralisação completa do metrô e do serviço de ônibus no primeiro dia de mandato do prefeito John Lindsay. Enquanto os nova-iorquinos suportavam a greve do trânsito, Lindsay comentou: ‘Ainda acho que é uma cidade divertida’, e caminhou seis quilômetros de seu quarto de hotel até a prefeitura em um gesto para mostrar isso. Dick Schaap, então colunista do New York Herald Tribune, cunhou e popularizou o termo sarcástico em um artigo intitulado Fun City, cidade divertida em tradução livre. No artigo, Schaap sardonicamente apontou que ela não era nada divertida.

A greve de trânsito foi a primeira de muitas lutas trabalhistas. Em 1968, o sindicato dos professores (United Federation of Teachers - UFT) entrou em greve por causa das demissões de vários professores em uma escola em Ocean Hill e Brownsville.

Aquele mesmo ano, 1968, também assistiu a uma greve de saneamento de nove dias. A qualidade de vida em Nova York atingiu o ponto mais baixo durante essa greve, quando montes de lixo pegaram fogo e fortes ventos espalharam a sujeira pelas ruas. Com o fechamento das escolas, a desaceleração da polícia, os bombeiros ameaçando com ‘operação tartaruga’*, a cidade inundada de lixo e as tensões raciais e religiosas surgindo à superfície. Lindsay mais tarde chamou os últimos seis meses de 1968 de ‘os piores da minha vida pública’.

*N.T: no original “job actions”, similar a operação tartaruga, ou seja, quando trabalhadores optam por diminuir o trabalho como forma de protesto ao invés de uma greve tradicional.

Portanto, a imagem de Harvey de uma Nova York idílica sendo atingida por uma crise financeira sem motivo, sendo traída por banqueiros gananciosos e, em seguida, tornando-se corajosa e mesquinha, realmente não parece crível.

Harvey é um pouco melhor quando fala sobre crises de dívida no México, América Latina e além. Meu entendimento aqui é algo assim: o Choque Volcker causou uma forte alta no preço do dólar americano. Os países latino-americanos haviam contraído muitas dívidas denominadas em dólares, que (conforme o dólar subia) de repente se tornaram muito maiores. Eles estavam preparados para pagar suas dívidas antigas, mas não suas dívidas novas, muito maiores, então eles tiveram que fechar acordos com seus credores. A maioria deles eram bancos americanos, e o governo americano os apoiava. Os bancos e o governo, negociando em parte por meio do FMI, não estavam realmente dispostos a se comprometer e exigiram muito dinheiro de volta. Mas também, como condição para os compromissos que fizeram, exigiram que esses países se tornassem neoliberais. Os bancos / EUA / FMI disseram que isso era para que pudessem quebrar seu vício em dívidas e gastos excessivos, ter economias funcionais e serem capazes de pagar o que deviam eventualmente. Obviamente Harvey não acredita nisso, e diz que foi um complô para os ricos americanos aumentarem seu poder, além de esmagar todos os sistemas justos e decentes que poderiam ter fornecido uma alternativa para a distopia que eles planejavam em casa.

“O que o caso do México demonstrou, no entanto, foi uma diferença fundamental entre a prática liberal e neoliberal: no primeiro, os credores assumem as perdas decorrentes de más decisões de investimento, enquanto no segundo os tomadores são forçados pelos poderes estatais e internacionais a aceitar o custo do reembolso da dívida, independentemente das consequências para a subsistência e o bem-estar da população local. Se isso exigisse a entrega de ativos para empresas estrangeiras a preços de liquidação, então que fosse. Isso, ao que parece, não é consistente com a teoria neoliberal. Um efeito, como mostram Duménil e Lévy, foi permitir que os proprietários de capital dos Estados Unidos extraíssem altas taxas de retorno do resto do mundo durante as décadas de 1980 e 1990 (Figuras 1.8 e 1.9). A restauração do poder à elite econômica ou para a alta classe nos Estados Unidos e em outras partes dos países capitalistas avançados se baseou fortemente nos excedentes extraídos do resto do mundo por meio de fluxos internacionais e práticas de ajuste estrutural.

Não tenho certeza do que Harvey quis dizer aqui sobre como os credores, sob as práticas (não-neo) liberais, assumem as perdas. Suponha que na década de 1960 os banqueiros tivessem emprestado ao México. Quando o México não pudesse pagar, eles apenas diriam “tudo bem, tanto faz, fique com o troco”? Talvez eles teriam! Não sei! Eu gostaria de aprender mais sobre isso! Mas Harvey não me contou. Ele deixa as mentes, ações, sistemas e normas dos banqueiros como uma caixa preta, exceto na parte em que eles estão tentando esmagar os outros e “restabelecer o poder de classe”.

Há uma seção interessante sobre como os países que seguiram as recomendações do FMI tenderam a se sair mal, e aqueles que as rejeitaram tenderam a se recuperar e avançar para níveis melhores. Suspeito que algo assim seja verdade e estou tentando ler alguns outros livros para entender essa questão melhor. Mas "Neoliberalismo: História e Implicações", apesar de ter um capítulo sobre isso, é de pouca ajuda.

A quarta tese é que devemos retornar ao liberalismo integrado. Os detalhes exatos de como fazer isso são deixados para o leitor, mas imagino que envolveria regulamentação pró-sindicato, impostos mais altos sobre os ricos e a instituição de algum tipo de bem-estar social do berço ao túmulo fortemente vinculado ao emprego. A maioria de nós deveria querer isso (diz o livro) porque significa que outras pessoas, além dos plutocratas, poderiam levar uma vida decente. Mas mesmo os plutocratas deveriam ser um pouco a favor:

As fases anteriores da história capitalista - pensemos em 1873 ou 1920 - quando uma escolha igualmente rígida teve que ser feita, não são auspiciosas. As classes superiores, insistindo na natureza sacrossanta de seus direitos de propriedade, preferiram derrubar o sistema em vez de renunciar a qualquer um de seus privilégios e poder. Ao fazerem isso, eles não se esqueceram de seus próprios interesses. Se se posicionarem corretamente, podem (tal como fazem os bons advogados da área de falências) lucrar com o colapso, enquanto o restante de nós é apanhado de forma horrível no dilúvio. Alguns deles podem ser pegos e acabar pulando das janelas de Wall Street, mas essa não é a norma. O único medo que eles têm é de movimentos políticos que os ameacem com expropriação ou violência revolucionária. Embora possam esperar que o sofisticado aparato militar que agora possuem (graças ao complexo industrial militar) proteja sua riqueza e poder, o fracasso desse aparato em pacificar facilmente o Iraque no terreno deve fazê-los hesitar. Mas as classes dominantes raramente, ou nunca, entregam voluntariamente qualquer parte de seu poder e não vejo razão para acreditar que o farão desta vez. Paradoxalmente, um movimento social-democrata e da classe trabalhadora forte e poderoso está em melhor posição para redimir o capitalismo do que o próprio poder da classe capitalista. Embora isso possa parecer uma conclusão contra-revolucionária para os da extrema esquerda, também tem um forte elemento de interesse próprio, porque são as pessoas comuns que sofrem, passam fome, e até mesmo morrem no curso de crises capitalistas (examine a Indonésia ou a Argentina) ao invés das classes altas. Se a política preferida das elites governantes é après moi le déluge, então o dilúvio engolfa amplamente os impotentes e os desavisados, enquanto as elites têm arcas bem preparadas nas quais podem, pelo menos por um tempo, sobreviver muito bem.

Capa da edição original
Capa da edição brasileira

Parte 3

Aqui está uma visão mais positiva de “Neoliberalismo: História e Implicações”: apesar de tudo o que foi dito, ele consegue ser uma boa leitura. Ele fala sobre tópicos pouco explorados de uma forma envolvente. Embora eu não tenha ficado satisfeito com a explicação de Harvey sobre alguns problemas, este é um livro de 200 páginas, ele não consegue explicar tudo em profundidade e me fez ler jornais e artigos da Wikipedia sobre coisas que eu não teria lido de outra forma. Embora o livro tenha muitas pontas soltas e erros aparentes que fazem com que eu não confie em tudo que ele diz, algumas das coisas que são ditas seriam fascinantes se verdadeiras e por isso pretendo dar continuidade a minha pesquisa sobre se elas realmente são.

E embora eu ache que sou justo em caracterizar Harvey como de extrema esquerda, ele tem algumas visões únicas e originais que achei surpreendentes e desafiadoras. Isso ficou mais evidente quando ele condenou coisas que eu considerava muito esquerdistas / progressistas, como sintomas do neoliberalismo. Por exemplo, ONGs:

Não deveria ser surpresa que os principais meios coletivos de ação sob o neoliberalismo sejam então definidos e articulados por grupos de defesa não eleitos (e em muitos casos liderados pela elite) de vários tipos de direitos. Em alguns casos, como proteção ao consumidor, direitos civis ou direitos de pessoas com deficiência, ganhos substantivos foram alcançados por meio desses meios. Organizações não governamentais (ONGs) e de base também cresceram e proliferaram notavelmente sob o neoliberalismo, dando origem à crença de que a oposição mobilizada fora do aparelho estatal e dentro de alguma entidade separada chamada 'sociedade civil' é a força motriz da oposição política e transformação social. O período em que o Estado neoliberal se tornou hegemônico também foi o período em que o conceito de sociedade civil - muitas vezes apresentada como uma entidade em oposição ao poder do Estado - tornou-se central para a formulação de políticas de oposição. A ideia gramsciana do estado como uma unidade da sociedade política e civil dá lugar à ideia da sociedade civil como um centro de oposição, se não uma alternativa, ao Estado.

Ou direitos humanos:

A neoliberalização gerou em si mesma uma extensa cultura de oposição. A oposição tende, entretanto, a aceitar muitas das proposições básicas do neoliberalismo. A oposição se concentra nas contradições internas. Leva a sério as questões dos direitos e liberdades individuais, por exemplo, e as opõem ao autoritarismo e à arbitrariedade frequente do poder político, econômico e de classe. Aceita a retórica neoliberal de melhorar o bem-estar de todos e condena a neoliberalização por falhar em seus próprios termos. […]

O aumento da oposição em termos de violações de direitos tem sido espetacular desde 1980. Antes disso, conforme relata Chandler, um importante jornal como o  Foreign Affairs não tinha publicado um único artigo sobre direitos humanos. As questões de direitos humanos ganharam destaque depois de 1980 e cresceram positivamente após os eventos na Praça Tiananmen e o fim da Guerra Fria em 1989. Isso corresponde exatamente à trajetória da neoliberalização, e os dois movimentos estão profundamente implicados um no outro. Sem dúvida, a insistência neoliberal no indivíduo como elemento fundamental da vida político-econômica abre as portas para o ativismo pelos direitos individuais. Mas, ao se concentrar nesses direitos, em vez de na criação ou recriação de estruturas de governança democráticas substantivas e abertas, a oposição cultiva métodos que não podem escapar do quadro neoliberal. A preocupação neoliberal com o indivíduo supera qualquer preocupação social-democrata com a igualdade, a democracia e a solidariedade social. O frequente apelo à ação legal, além disso, aceita a preferência neoliberal por apelar para poderes judiciais e executivos em vez de parlamentares [...]

“Esse apelo ao universalismo dos direitos é uma faca de dois gumes. Ele pode ser usado com objetivos progressivos em mente. A tradição representada pela Anistia Internacional, Médicos sem Fronteiras e outros não pode ser descartada como um mero adjunto do pensamento neoliberal. Toda a história do humanismo (tanto no ocidente - tipicamente de caráter liberal - quanto de várias versões não ocidentais) é complexa demais para isso. Mas os objetivos limitados de muitos discursos sobre direitos (no caso da Anistia Internacional, o foco exclusivo, até recentemente, nos direitos civis e políticos em oposição aos direitos econômicos) torna muito fácil absorvê-los dentro do quadro neoliberal. O universalismo parece funcionar particularmente bem com questões globais, como mudança climática, buraco na camada de ozônio, perda de biodiversidade por meio da destruição do habitat e assim por diante. Mas seus resultados no campo dos direitos humanos são mais problemáticos, dada a diversidade de circunstâncias culturais e político-econômicas existentes no mundo. Além disso, tem sido muito fácil associar questões de direitos humanos a uma espécie de ‘ponta de lança’ imperialista, uma justificativa para expansão de influência de grandes potências ocidentais, ou como diriam Bartholomew e Breakspear,  'espadas do império'. Os chamados 'falcões liberais' nos Estados Unidos (políticos americanos de tendência liberal, mas afeitos a intervencionismo, geralmente de caráter militar), por exemplo, apelaram ao discurso universalista de direitos humanos  para justificarem as intervenções imperialistas em Kosovo, Timor Leste, Haiti e, acima de tudo, no Afeganistão e no Iraque. Eles justificam o humanismo militar 'em nome da proteção da liberdade, dos direitos humanos e da democracia, mesmo quando buscados unilateralmente por uma potência imperialista autoproclamada' como os EUA.

De forma mais ampla, é difícil não concluir com Chandler que ‘as raízes do humanitarismo baseado nos direitos humanos de hoje estão no crescente consenso de apoio ao envolvimento ocidental nos assuntos internos do mundo em desenvolvimento desde os anos 1970’. O argumento principal é que ‘instituições internacionais, tribunais internacionais e nacionais, ONGs ou comitês de ética são melhores representantes das necessidades do povo do que governos eleitos'. Governos e representantes eleitos são vistos como suspeitos precisamente porque são responsabilizados por um eleitorado específico e, portanto, são percebidos como tendo um interesse ‘particular’, em oposição a ação com base em princípios éticos. Na política interna às nações os efeitos não são menos traiçoeiros.  Um desses efeitos é o estreitamento do debate político por meio da legitimação do papel de tomada de decisões pelo judiciário, por forças-tarefa não eleitas e por comitês de ética. Os efeitos políticos podem ser debilitantes. 'Longe de desafiar o isolamento individual e a passividade de nossas sociedades atomizadas, a regulamentação dos direitos humanos só pode institucionalizar essas divisões.' Pior ainda, ‘a visão degradada do mundo social fornecida pelo discurso ético dos direitos humanos serve, como qualquer teoria da elite, para sustentar a autoconfiança da classe governante”.

Não tenho certeza se eu teria pensado nos direitos humanos como um sintoma do neoliberalismo antes de ler isso. Mas, como neoliberal, fico feliz em aceitar a culpa!

Parte 4

Mais uma coisa boa sobre David Harvey: ele faz previsões específicas. E como já se passaram 16 anos desde que ele escreveu “Neoliberalismo - História e Implicações”, podemos verificar como ele se saiu. Para evitar um debate desnecessário sobre o que eu contei como sendo previsões, vou examinar apenas a metade de seu último capítulo, “A perspectiva da liberdade”, que trata exatamente do futuro. Você pode acompanhar aqui e garantir que o representei honestamente.

Harvey diz que os gastos dos EUA estão crescendo fora de controle. As guerras do governo Bush e os cortes de impostos para os ricos criam uma situação insustentável. Os países estrangeiros estão atualmente financiando essa situação comprando dívida dos EUA, mas os juros logo sairão do controle. Os americanos ficarão cada vez mais irritados à medida que os credores estrangeiros assumam cada vez mais poder sobre o país. Os Estados Unidos terão cada vez menos capacidade de pagar suas dívidas e “é impensável, mas não impossível, que os EUA se tornem a Argentina de 2001 da noite para o dia”. Por exemplo:

“Quase um terço dos ativos de ações em Wall Street e quase metade dos títulos do Tesouro dos EUA são propriedade de estrangeiros, e os dividendos e juros fluindo para os proprietários estrangeiros são agora aproximadamente equivalentes (se não superiores) ao tributo que as corporações americanas e operações financeiras estão extraindo do exterior (Figura 7.1). Esse saldo se tornará mais fortemente negativo quanto mais os EUA tomarem emprestado, e agora estão tomando empréstimos do exterior a uma taxa próxima de US$ 2 bilhões por dia. Além disso, se as taxas de juros nos Estados Unidos subirem (como em algum momento devem subir), então o que aconteceu ao México depois do aumento da taxa de juros nos EUA em 1979 pode começar a parecer um problema real. Em breve, o montante que os EUA irão gastar com sua dívida externa será muito maior do que conseguem trazer para dentro. Essa extração de riqueza dos EUA não será bem-vinda internamente. Os aumentos perpétuos no consumismo financiado por dívidas, que têm sido a base da paz social nos Estados Unidos desde 1945, teriam que parar.”

Os desequilíbrios parecem não incomodar o governo Bush, a julgar por declarações arrogantes de que o déficit em conta corrente, se for um problema, pode ser facilmente resolvido por pessoas que compram produtos feitos nos Estados Unidos (como se esses produtos estivessem prontamente disponíveis e baratos o suficiente e como se os bens fabricados nos Estados Unidos não tivessem um alto componente de insumos estrangeiros). Se isso realmente acontecesse, o Wal-Mart seria colocado fora do mercado. O déficit orçamentário, diz Bush, pode ser facilmente resolvido sem aumentar os impostos, restringindo os programas governamentais (como se ainda houvesse grandes programas discricionários para desmantelar). A observação do vice-presidente Cheney de que ‘Reagan nos ensinou que os déficits orçamentários não importam’ é alarmante, porque o que Reagan também ensinou é que aumentar os déficits é uma forma de forçar a contenção dos gastos públicos e que atacar o padrão de vida da massa da população ao mesmo tempo que se favorece os mais ricos pode ser melhor realizado em meio à turbulência financeira e a crise. Se, além disso, fizermos a pergunta: 'Quem realmente se beneficiou das inúmeras crises financeiras que se espalharam de um país para outro em onda após onda de deflações catastróficas, inflações, fuga de capitais e ajustes estruturais desde o final dos anos 1970?', o fraco compromisso do atual governo dos Estados Unidos em se defender de uma crise fiscal, apesar de todos os sinais de alerta, torna-se mais facilmente compreensível. Na esteira de um colapso financeiro, a elite dominante pode esperar emergir ainda mais fortalecida do que antes.”

Pelo que eu sei, nada parecido com isso aconteceu. Continuamos gastando dinheiro, as taxas de juros continuaram baixas, os estrangeiros não mantiveram muito de nossas dívidas, ninguém protestou contra o montante de nossa dívida em mãos estrangeiras, e hoje os economistas (inclusive os mais esquerdistas) dizem ao governo que deveria se preocupar menos sobre dívidas, não mais.

Harvey tem lá seu mérito por prever uma crise financeira, o que de fato aconteceu em 2008, três anos depois de sua publicação. Mas ele parece ter errado todos os detalhes e não está claro quanto mérito é de fato dele na sua previsão. Sempre haverá uma próxima recessão, portanto, prever uma "recessão chegando!" sem uma escala de tempo, sempre acaba soando preciso após certo tempo. Não entendo o suficiente sobre os diferentes tipos de recessões para saber se dizer “crise fiscal” e “quebra financeira” conferiu uma qualidade presciente às afirmações de Harvey.

Durante e após a crise, Harvey previu que as únicas opções dos EUA seriam a hiperinflação, ou a deflação prolongada ao estilo do Japão, e chega a entrar em detalhes sobre qual poderemos escolher (nenhuma das duas aconteceu em 2008). Ele não crê que nenhuma dessas opções iria dar muito certo, e acha que o neoliberalismo precisará de um novo truque para sobreviver.

Esse truque seria o neoconservadorismo. Em vários lugares ao longo do livro, mas mais enfaticamente no Capítulo 7, Harvey prevê que o neoconservadorismo dos anos Bush é o início da próxima fase do neoliberalismo. Por exemplo:

“Embora tenha sido efetivamente disfarçado, passamos por toda uma geração de estratégias sofisticadas por parte das elites governantes para restaurar, aprimorar ou, como na China e na Rússia, construir um poder de classe avassalador. A nova virada para o neoconservadorismo é ilustrativa de até que ponto as elites econômicas irão e das estratégias autoritárias que estão preparadas para implantar a fim de sustentar seu poder.”

E:

“O neoconservadorismo, como argumentei no Capítulo 3, sustenta o impulso neoliberal para a construção de liberdades de mercado assimétricas, mas torna as tendências antidemocráticas do neoliberalismo explícitas por meio de uma transformação em meios autoritários, hierárquicos e até militaristas de manter a lei e a ordem. Em O Novo Imperialismo, explorei a tese de Hannah Arendt de que a militarização no exterior e em casa inevitavelmente andam de mãos dadas, e concluí que o aventureirismo internacional dos neoconservadores, há muito planejado e legitimado após os ataques de 11 de setembro, tinha tanto a ver com a afirmação doméstica de controle sobre um corpo político turbulento e muito dividido nos Estados Unidos, quanto com uma estratégia geopolítica de manter a hegemonia global por meio do controle dos recursos petrolíferos.”

Pelo que posso dizer, o neoconservadorismo atingiu seu ápice durante o governo Bush e, desde então, todos se afastaram dele. Não foi a próxima fase inevitável do capitalismo. Os EUA estão agora menos emaranhados militarmente do que na maior parte do século 20, isso incluindo o período do liberalismo integrado entre o pós-guerra e a década de 70. E o capitalismo se saiu muito bem.

Mas:

“Os movimentos operários tradicionais não estão de forma alguma mortos, mesmo nos países capitalistas avançados, onde foram muito enfraquecidos pelo ataque neoliberal ao seu poder. Na Coréia do Sul e na África do Sul, movimentos operários vigorosos surgiram durante a década de 1980 e em grande parte da América Latina os partidos da classe trabalhadora estão florescendo, se já não estão no poder. Na Indonésia, um movimento trabalhista incipiente, potencialmente relevante está lutando para ser ouvido. O potencial de agitação trabalhista na China é imenso, embora imprevisível. E também não está claro se a massa da classe trabalhadora nos Estados Unidos, que durante esta última geração muitas vezes votou voluntariamente contra seus próprios interesses materiais por razões de nacionalismo cultural, religião e valores morais, ficará para sempre presa a essa política pelas maquinações de republicanos e democratas. Dada a volatilidade, não há razão para descartar o ressurgimento da política popular social-democrata ou mesmo populista antineoliberal dentro dos Estados Unidos nos próximos anos.”

Errado sobre a China - mas certo sobre os EUA! Harvey passa a prever que essa movimentação antiliberal pode não acontecer dentro dos partidos políticos tradicionais, mas em movimentos mais amorfos como os zapatistas no México. Não tenho certeza de como julgar isso - meu palpite é que trabalhos como o Revolt Of The Public, que demonstram um novo equilíbrio de forças entre a população e as elites políticas e econômicas mostram que Harvey está certo. Mas estou muito preso a visões “convencionais” sobre a modernidade para notar essa relação.

No geral, parece que Harvey estava errado sobre todas as suas crenças específicas, mas estava certo que, cada vez mais, mais pessoas concordariam com ele. Esta é provavelmente uma metáfora para a vida. Leia "Uma breve história do neoliberalismo" para tirar suas próprias conclusões, ou não leia também, afinal, não é como se você passasse a entender o neoliberalismo melhor com essa leitura.

Escrito por Scott Alexander autor do antigo blog Slate Star Codex, atualmente Astral Codex. Artigo original disponível aqui.

Traduzido por: Fernando Moreno, Jonas Amaro, Caio Freire e João Marcos.

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3 comments on “Resenha do livro "Neoliberalismo: História e Implicações"”

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