Recentemente o colega Caio Motta publicou um artigo neste site analisando alguns aspectos da obra de John Rawls, especificamente a oposição deste autor para com os princípios utilitaristas. Rawls entende que a posição utilitarista requer sacríficos individuais em prol do bem-estar social que não seriam compatíveis com o liberalismo. Diz ele:
"[Se a sociedade] for organizada conforme princípios utilitários, ter-se-á uma situação em que, para produzir uma maior quantidade de utilidade na sociedade, será permitida a eliminação ou restrição das liberdades individuais da minoria em favor da maximização da utilidade média da sociedade".
Particularmente gosto muito de Rawls e sua concepção de justiça liberal. Acredito que seus princípios, se aplicados, se traduziriam em um tipo de "liberalismo social" que traria alguns dos melhores resultados práticos para uma sociedade mais justa e prospera que eu consigo imaginar.
Por exemplo, tomemos sua ideia da “posição original”: ao estabelecermos o contrato social, entendido como os princípios que devem orientar a distribuição de direitos e recursos em sociedade a que teremos direito, devemos fazê-lo sob o “véu da ignorância”, ou seja, desconhecendo qual posição efetivamente viremos a ocupar nesta sociedade. Outra maneira de pensar isso é: você ainda não nasceu. Você pode acabar nascendo homem ou mulher, rico ou pobre, negro ou branco, você não sabe de antemão onde a cegonha irá lhe depositar. Qual seria o arranjo de coisas que você preferiria nessa situação?
Essa consideração parece às vezes até óbvia, afinal, toda consideração moral deveria ser feita sem tomar o partido de seu próprio interesse. Mas ela implica também uma interessante conciliação na eterna tensão entre os valores da igualdade e liberdade: qual seria a medida ideal de liberdade e de igualdade neste contrato? Seria, basicamente, aquela a que todos os membros da sociedade poderiam concordar em viver, fossem eles aleatoriamente sorteados para ocupar posições nessa sociedade.
Sabemos que em geral—ainda que com exceções—há um trade-off entre igualdade e geração de riqueza. Sendo assim, uma igualdade absoluta que gerasse menor prosperidade total à sociedade seria rejeitada por todos, dado que todos estariam em situação pior do que numa situação em que alguma desigualdade é tolerada. Por outro lado, ninguém concordaria com um contrato social que concedesse liberdade e prosperidade absolutas para alguns poucos indivíduos sortudos a grande custo e sacrífico dos demais, dado que a probabilidade de você cair no grupo desfavorecido seria bem maior.
Tentei ser didático no exemplo acima. Contudo, observe que não se trata apenas de probabilidade maior de pertencer a um grupo desfavorecido. Imagine uma situação hipotética onde 5% da população fosse escravizada para servir aos outros 95% da população. Mesmo que a probabilidade de cair no grupo desfavorecido seja pequena, você ainda teria algum risco de cair em tal grupo, se sua posição for distribuída na forma de uma loteria. Tal risco (1 em 20) parece ser suficientemente alto para rejeitar esse arranjo de coisas (eu certamente rejeitaria!).
Em termos práticos, as ideias de Rawls representariam assim uma condenação das ideias socialistas e comunistas que implicariam a defesa da igualdade não importa o que aconteça, mesmo quando isso significa menor prosperidade para todos (diga-se de passagem, sabemos que essa é apenas uma idealização, dado que o comunismo real na verdade implicou uma menor prosperidade pela ineficiência na alocação de recursos e não alcançou nada próximo da tão almejada igualdade, em diversos casos aprofundando a desigualdade).
Mas as ideias de Rawls também representam a condenação de algumas coisas que aprendemos a conviver com certa tranquilidade hipócrita em nossas democracias liberais: por exemplo, a desigualdade que gera pouca ou nenhuma prosperidade aos membros da sociedade, como no exemplo clássico de Veblen do consumo conspícuo ou ostentatório de bens de luxo pela elite, ainda mais condenável quando temos algumas lacunas básicas na qualidade de vida de todos. Podemos também aplicar o argumento do “véu da ignorância” a questão de desigualdade entre países e a liberdade de imigração: vivemos em um mundo onde a loteria da vida pode lhe fazer nascer 200 metros ao norte ou ao sul da fronteira entre EUA e México e assim determinar todo um mundo de oportunidades diferentes que você terá acesso. Sob o véu da ignorância estaríamos muito mais inclinados a defender uma abordagem menos restrita à imigração ou de muito maior ajuda humanitária aos países mais pobres.
Diante disso, me parece que os utilitaristas estão alinhados com o pensamento de Rawls no que diz respeito ao ponto de chegada: ambos parecem defender ideias que implicam o maior bem-estar para o maior número de indivíduos. O que Rawls parece se opor, contudo, é a ideia de sacrifícios individuais em prol do bem-estar coletivo ou, numa linguagem mais utilitarista, do bem-estar médio.
Penso que quando Rawls rejeita o utilitarismo, ele poderia ter duas coisas em mente: a primeira é o risco de justificativa de um modelo autoritário de sociedade. Essa preocupação parece bem razoável quando olhamos os exemplos autoritários do nazifascismo ou do comunismo real. Há um risco real quando Estados autoritários tentam justificar suas arbitrariedades e perseguições políticas em prol de um (suposto) bem maior da coletividade. Contudo, o utilitarismo propriamente entendido como princípio filosófico não pode ser confundido com seu uso distorcido e cínico por regimes autoritários. Frequentemente vejo pessoas com entendimento superficial das ideias utilitaristas associando-as a tais ideias ou talvez a um mais genérico “fins justificam os meios” maquiavélico. Para os que fazem essa confusão vale lembrar que o utilitarismo é uma teoria ética, portanto, não apoia que os fins justificam os meios se os fins dizem respeito a aquisição ou manutenção de poder, tal como se entende da leitura de O Príncipe de Maquiavel. Contudo, podemos entender que os fins justificam os meios se os fins são um objetivo ético mais nobre (mentir para salvar uma vida, por exemplo).
Rawls parece querer também rejeitar algo próximo ao exemplo que dei acima dos "5% escravizados". Ou seja, uma teoria que justificasse a opressão da minoria pela maioria, um dos problemas clássicos da filosofia política e, mais especificamente, da democracia. De fato, um sistema de coisas que implicasse a escravidão de uma minoria (ou tratamento repugnante, discriminatório) em prol de uma maioria é uma ideia absurdamente injusta e que de fato deve ser rejeitada. Ocorre que os utilitaristas (ao menos sua ampla maioria) também rejeitariam tal arranjo social - diga-se de passagem, esta preocupação com a opressão da minoria pela maioria esteve sempre presente em Bentham, James e John Mill, os pais do utilitarismo.
O que nós, utilitaristas, argumentamos, é que temos aqui novamente o utilitarismo não bem compreendido e, se alguém defender tal arranjo social, fará idêntico uso distorcido e cínico das ideias utilitaristas. Isso porque parece claro que tal situação de coisas gera muito, mas muito maior “desutilidade” (mal-estar) para os “escravizados” que “utilidade” (bem-estar) para os privilegiados.
Tentemos traduzir isso em um exercício hipotético de números:

Claro que a desutilidade gerada no exemplo é muito maior que a utilidade gerada. Contudo, essa linha de argumentação utilitarista tem alguns problemas óbvios. O primeiro é essa atribuição de números aqui e ali. Afinal, como é possível quantificar o que é utilidade e desutilidade, bem-estar e mal-estar? Como medir, como agregar, como tratar isso tudo com alguma objetividade se a medida de dor e prazer é exclusiva de cada indivíduo? De fato, o problema teórico para os utilitaristas é incontornável.
Não pretendo resolver aqui as dificuldades teóricas do utilitarismo. Mas, quando saímos do problema filosófico para o plano prático, vemos que tais considerações podem ser facilmente contornáveis. Há diversas métricas que podem atuar como proxy, boas o suficiente para orientarem a ciência e nossas políticas públicas. São conhecidas por economistas, demógrafos e demais cientistas sociais: métricas como o IDH, a expectativa de vida, a maior ou menor incidência de doenças, acidentes ou desnutrição, entre tantas outras. Como Hans Rosling ensina em seu livro Factfullness, até mesmo a métrica de "violões e guitarras por habitante" existe e essa é uma boa medida aproximada de coisas como prosperidade material e tempo de lazer sendo desfrutado pelas pessoas.
Inclusive, um breve adendo: caberia talvez um olhar ainda mais utilitarista quando pensamos em métricas sociais. Neste vídeo, com o título “What are the best ways to improve world happiness?”, o utilitarista Michael Plant faz algumas provocações interessantes: boa parte dos gastos com ajuda humanitária vão para coisas como saúde ou educação das crianças, o que é ótimo e deve ser feito. Contudo, qual é a ajuda humanitária para, simplesmente, evitar a dor? Se uma pessoa no primeiro mundo ou mesmo aqui no Brasil estiver em seu leito de morte dificilmente lhe faltará morfina ou outros sedativos para lhe retirarem a dor. Contudo, todos os anos, mais de 40 milhões de pessoas nos países mais pobres passam por situações como essa, ou de recuperação de acidentes e pós-cirúrgicas, sem qualquer tipo de medicação contra a dor. Será que não cabe começarmos a olhar mais de perto algumas dessas métricas que mensuram diretamente a dor? Algumas métricas mais diretamente utilitaristas?
Voltando aos problemas do argumento utilitarista, certamente há um outro ponto: não podemos chegar a uma situação em que a minoria sendo escravizada seria tão pequena (talvez um único indivíduo!) que tal situação estaria assim justificada? Para refutar isso basta observar que, quanto menor um lado da balança, menor também será o outro lado, o da utilidade produzida. A utilidade de um punhado de pessoas escravizadas a benefício de uma maioria continuaria a produzir muita desutilidade para os primeiros e uma baixa utilidade para os últimos, não se justificando em qualquer hipótese. Seria passar do Cenário A para o Cenário B na tabela abaixo:

A liberdade de minorias e mesmo dos indivíduos está assim preservada no utilitarismo, quando bem entendido. Causar um dano para um indivíduo em nome do bem-estar social, para estar justificado, teria que ser muito superior àquilo que esse indivíduo perde.
Chegamos ao nosso último ponto que é então o de argumentar em prol do sacrífico individual, quando devidamente justificado, ou seja, quando devidamente compensado pelo bem-estar social gerado.
Ao contrário da escravidão de uma minoria em benefício de uma maioria do exemplo acima, podemos pensar em diversas situações em que o sacrífico não é um “abuso intolerável” das liberdades individuais, mas sim parte normal da manutenção da sociedade. É o sacrifício que demandamos, por exemplo, de um bombeiro, que arrisca sua vida ao entrar em um prédio em chamas a fim de salvar outras vidas. Ainda que as chances dele morrer no episódio sejam baixas, elas não são nulas e, se somadas ao longo de toda uma carreira, são significativas. Enquanto sociedade, buscamos maneiras de tornar esse risco cada vez menor, seja pesquisando melhores roupas de proteção ao fogo ou implantando códigos legais que tornem nossos prédios mais seguros contra incêndios. Ainda assim, continuamos a demandar destes profissionais esse sacrifício, real ou potencial, e não consideramos tais profissionais como escravos mas como heróis. Diga-se de passagem, não creio que Rawls também consideraria descabido o que a sociedade demanda de bombeiros.
Mas não é só de profissionais que colocam suas vidas em risco ou que salvam a vida dos demais que demandamos esse tipo de “sacrifício” utilitarista. Cálculos utilitaristas estão presentes em todos os lugares e momentos de nossa sociedade. Quando políticos pensam orçamentos públicos ou burocratas têm que decidir suas compras, por exemplo. Ou quando o orçamento da saúde determina priorizar uma vacinação de sarampo, salvando assim uma vida a cada 10 mil reais gastos, ao invés de adquirir um novo medicamento contra o câncer, pois este salvará apenas uma vida a cada 100 mil reais gastos.
Para complicar, por vezes deixaremos de salvar vidas para gastar com outra coisa e estaremos de acordo com isso: eventualmente optamos por reformar um parque, que não salva nenhuma vida diretamente mas nos dá prazer, do que direcionar mais recursos à saúde. Se não gastamos algo próximo a 90% do orçamento público com o Ministério da Saúde ou na prevenção de acidentes é porque, implicitamente, estamos de acordo em fazer sacríficos de algumas vidas em prol de outros benefícios para a sociedade.
Por todas essas razões que entendo que o utilitarismo não é a negação das liberdades individuais, nem serve de justificativa para a opressão de minorias. O utilitarismo bem compreendido não é incompatível nem com o liberalismo, nem com concepções mais gerais de moralidade e nem mesmo com a teoria da justiça Rawlsiana.

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