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dezembro 14, 2020

A associação entre comércio internacional e mão-de-obra infantil ultrapassou a retórica da esquerda antiglobalização e, de certa forma, acabou se infiltrando na própria cultura popular. Não devo ter sido o único a receber, no começo dos anos 2000, e-mails acerca de um suposto pedido de socorro, escrito por uma criança chinesa e costurado dentro de um sapato importado. Tenha isso ocorrido ou não (uma busca na internet retorna apenas um caso de 2018, em que o receptor, e não o autor do bilhete, era menor de idade), o trabalho infantil hoje não é nenhuma lenda urbana. Embora a porcentagem de crianças exploradas no mundo todo tenha caído, de 23% para 17% entre 2000 e 2012, esses números claramente ainda são muito altos para o século XXI. No entanto, os efeitos do livre-comércio nesse sentido talvez sejam um pouco mais ambíguos do que seus críticos gostariam de fazer crer.

A literatura teórica identifica três mecanismos específicos que podem impactar no uso de mão-de-obra infantil. O primeiro é através dos ganhos de renda resultantes do comércio, que já estão bem estabelecidos na literatura [Aqui] [Aqui] [Aqui] [Aqui] e não beneficiam apenas os mais ricos. Os pais que empregam os seus filhos em fábricas ou no campo são motivados "mais pela dureza da vida do que pela dureza do coração", para usar a formulação aplicada por Larry Milner às causas do infanticídio. Alcançando um certo nível de renda, as famílias tendem a retirar suas crianças do mercado de trabalho. Foi o que aconteceu no Vietnã quando o governo liberalizou o comércio e aumentou o volume de exportações de arroz, o que fez o preço do produto subir junto com o lucro dos camponeses [Fonte: Eric Edmonds and Nina Pavcnik, “International Trade and Child Labor: Cross- Country Evidence,” Journal of International Economics 68 (2006): 115–40].

Contudo, também há forças atuando no sentido contrário. Segundo o teorema de Stolper-Samuelson, o comércio aumenta a remuneração do fator no qual o país é relativamente abundante, e reduz a remuneração do fator no qual ele é relativamente escasso. Como economias subdesenvolvidas têm mais trabalhadores não-qualificados, são eles que costumam desfrutar de ganhos nos salários, em contraponto às perdas da mão-de-obra qualificada. Isso supostamente diminuiria o incentivo das famílias de enviar suas crianças para escola, e é o efeito que os críticos da globalização costumam enfatizar ao acusar o livre-comércio de promover a exploração infantil.

Por fim, os fluxos internacionais de produtos e capital interagem com o ambiente institucional doméstico. As leis trabalhistas de países pobres são pouco rigorosas, o que potencializa os fatores que aumentam e enfraquece os que diminuem a contratação de menores de idade na zona rural e urbana.

Qual é o resultado disso tudo? Não é fácil dizer. Análises empíricas são um pouco mais raras, devido à dificuldade em destrinchar o emaranhado de variáveis envolvidas. Quanto mais alta a renda de um país, mais raro o trabalho infantil, e mais volumosas são as exportações e importações. É preciso tomar cuidado para não atribuir às trocas comerciais o que seria apenas consequência da prosperidade.

Os economistas Eric Edmonds e Nina Pavcnik preencheram uma lacuna na bibliografia em 2004, com o estudo "International Trade and Child Labor: Cross-Country Evidence". Controlando a endogeneidade entre renda e comércio e usando como proxy para liberalização comercial a média de tarifas alfandegárias, eles descobriram que o coeficiente da elasticidade do trabalho infantil em relação à abertura é negativo. Uma redução de 10% nas barreiras protecionistas está associada, a princípio, a um declínio de 7% na exploração de crianças. Porém, quando a diferença de renda entre países se mantêm constante, desaparece qualquer relação, positiva ou negativa, entre livre-comércio e trabalho infantil. Os autores também não encontraram evidências empíricas de que o aumento das trocas com o resto do mundo desincentivam a escolarização primária ou secundária, ao contrário do que foi extrapolado a partir do teorema de Stolper-Samuelson. Isso se aplica tanto aos países como um todo quanto às nações em desenvolvimento.

Trocando em miúdos, o comércio internacional simplesmente não faz lá muita diferença para a incidência do trabalho infantil, já que os efeitos em sentidos opostos acabam se anulando. Talvez essa conclusão pareça um pouco anticlimática, mas ela certamente contradiz a denúncia de que a globalização dependeria de pivetes marroquinos em porões infectos. Menos de 3% das crianças exploradas entre 5 e 14 anos labutam fora de seus lares. A maioria trabalha para os próprios pais, em um contexto doméstico e informal. Como vimos, fechar-se à economia mundial não aumentará a chance de que elas troquem o arado pelo caderno [Esses dados estão disponíveis nas páginas 246 e 247 do livro Free trade under fire, do economista Douglas Irwin].

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