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outubro 31, 2020

Como é do conhecimento de muitos, em seu “An Austrian Perspective on the History of Economic Thought”, o economista americano Murray Rothbard, tido como pai do austrolibertarianismo, fez uma análise completamente desonesta sobre Adam Smith, afirmando que o escocês “não apenas não contribuiu com nada de valor para o pensamento econômico, como também sua economia foi uma grave deterioração da economia de seus predecessores”. A pessoa que quiser seguir por essa linha terá de pensar o seguinte: será mesmo que demoraram mais de 200 anos para descobrirem que Adam Smith foi esse plagiário sem precedentes? Como não perceberam antes de Rothbard, este ser iluminado, que Adam Smith havia copiado essa obra sendo que todos os documentos utilizados por este estão disponíveis há séculos? A resposta é quase intuitiva. Rothbard não trouxe nenhuma novidade sobre Adam Smith e muito provavelmente está errado. Nas palavras do historiador econômico Robert Heilbroner, “A Riqueza das Nações não é uma obra original, mas é uma obra prima”. Em outras palavras, se Adam Smith não tiver trazido nada de novo, ter compilado inúmeras grandes ideias num livro só já é mérito suficiente. Ter boa parte das grandes ideias da ciência econômica conhecidas na época num único livro permitiu que o capitalismo e o livre-mercado prosperassem tanto no âmbito prático quanto no teórico e dominassem a maioria das análises na academia até hoje (voltaremos a esse assunto).

Não preciso defender Adam Smith aqui (sem dúvida, Smith não precisa de ninguém para se defender) até porque erros da análise de Rothbard já foram tratados. Meu objetivo aqui é especular o que levou esse gênio incompreendido a ser tão desonesto, pois pessoalmente acho que o erro foi deliberado, e não fruto de ignorância.

Para começar, uma curiosidade: Rothbard não era tão hostil a Smith durante a maior parte de sua carreira. An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, uma obra incompleta, data de 1995, ano de sua morte. Peguemos, contudo, sua obra mais importante, Man, Economy and State with Power and Market, de 1962, livro que tenho fisicamente e não acho desprovido de qualidades. O economista escocês é às vezes criticado, mas também é citado de forma positiva. Entre as citações do livro está, por exemplo, o texto do professor de Chicago William D. Grampp (falecido ano passado, aos 105 anos) “Adam Smith and the Economic Man”.

No prefácio de uma obra "clássica" do austrolibertarianismo, Defendendo o Indefensável, escrita pelo economista libertário Walter Block, Rothbard escreve as seguintes palavras acerca das situações "indefensáveis" analisadas no livro de Block:
“Ao tomar exemplos os mais extremos e mostrar como os princípios smithnianos funcionam até mesmo nesses casos (que Block defendem como eficientes economicamente e éticos), o livro faz bem mais, para demonstrar a funcionalidade e moralidade do livre mercado, do que uma dúzia de sóbrios volumes sobre ramos de atividades mais respeitáveis”. Em For a New Liberty, Smith é novamente citado de forma positiva por Rothbard .

Por que então essa mudança de opinião, que era, na pior das hipóteses, neutra? O filho do economista de Chicago Milton Friedman, David Friedman (que, ironicamente, é anarcocapitalista, ainda que um forte crítico do austrolibertarianismo) deu uma boa explicação: Rothbard se considerava um economista brilhante, mas a maioria dos seus colegas o considerava medíocre ou sequer sabiam quem ele era. Para tentar explicar o total descaso dos demais economistas sobre sua extensa obra, seja para si mesmo, seja para os membros de seu culto, Rothbard criou uma narrativa conspiratória (para não dizer paranoide): eles sabiam que estavam errados, só agiam de má fé porque o governo os havia cooptado. Lembra-se dos marxistas falando que economia mainstream é uma “ciência burguesa”? Mesma linha de raciocínio mutatis mutandis.

Todavia, essa narrativa apresentava um problema óbvio. Por que economistas como Hayek, Friedman e Smith, que eram grandes defensores do livre-mercado, tinham bom trânsito entre seus pares? A resposta de Rothbard é a velha falácia do escocês de verdade: eles não eram liberais de verdade, e só seriam aceitos pelo mainstream como contraponto por isso! Rothbard escreveu artigos mentirosos sobre cada um deles, tentando desqualificar suas obras e inventar a narrativa que só ele e mais meia dúzia, todos obscuros, defendiam verdadeiramente o livre-mercado. Ele precisava, em outras palavras, criticar Smith tanto para massagear seu ego quanto para sua narrativa ideológica bizarra fazer sucesso e manter seu público fiel. Seus clones mais conhecidos, Hoppe e o já citado Block, continuam o trabalho. Não é sem motivo que Rothbard acusa Smith de ter roubado de Cantillon e Turgot. Eles são muito menos conhecidos, e teriam sido ignorados no plano maquiavélico do Estado de blindar os “falsos” defensores do capitalismo como Smith.

Como todo autor renomado, Smith não é perfeito, e podemos fazer críticas à sua obra. Também é verdade que ele não era um defensor do laissez-faire estrito, como tentam pintar opositores do outro lado. No entanto, acusá-lo de ser um “precursor” do marxismo quando foi o seu livro que permitiu a defesa do livre-mercado por anos é patético. Mesmo se a economia marxiana e a teoria do valor-trabalho só existissem por causa de Smith, as críticas ao capitalismo iam muito além, feitas por autores como Veblen e os “socialistas utópicos”, como Owen e Saint-Simon. As lamentáveis condições das fábricas e dos trabalhadores no século XIX são, por exemplo, um argumento muito mais simples para pensarmos numa explicação para o advento do socialismo do que a leitura de Smith. O grande erro da crítica Rothbardiana é ser feita puramente por ideologia, tentando alterar a realidade porque ela não condiz com sua narrativa.

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