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outubro 30, 2020

Os anos 90 foram uma época de esperança para muitas partes do mundo e a América Latina não foi uma exceção. A região tinha acabado de deixar para trás décadas de ditaduras militares de direita através de transições pacíficas. Eleições livres e justas, alternância de poder, e desenvolvimento econômico pareciam a nova norma. Sob este optimismo, porém, estavam as cicatrizes da Guerra Fria, a maioria das quais ainda não sararam completamente. Um artigo recente de SirMichael Cianci apontou com razão uma das mais gritantes: a falta de justiça para vítimas das ditaduras militares e as simpatias incômodas que muitos conservadores do continente ainda têm por estes regimes brutais. A direita conservadora, contudo, não detém o monopólio sobre o iliberalismo. Isto ignora o fato de que as duas únicas ditaduras plenas no hemisfério são lideradas por autoritários de extrema-esquerda e de como eles têm procurado constantemente exportar a sua ideologia, prestando um mau serviço aos esforços de promoção da democracia liberal na região.

A América Latina tem uma história de instituições democráticas fracas e, em muitos casos, segregação social e racial. Estes elementos ajudaram a pavimentar o caminho tanto para o esquerdismo radical como para os fascistas reacionários dominarem a arena política na maior parte do continente durante quase três décadas até a queda da União Soviética no início dos anos 90. Neste contexto, a região sofreu sob conflitos armados em locais como Colômbia, Nicarágua e El Salvador, causando enormes danos a civis e a quaisquer esforços para construir estados competentes e liberais. Em muitos países, homens-fortes anticomunistas apoderaram-se do medo vermelho e acabaram por tomar o poder em vários países da região, governando com mão de ferro e total desrespeito pelos direitos humanos em países como Chile, Brasil, Argentina e Uruguai. Estes regimes contaram com o total apoio dos partidos conservadores, religiosos e outros partidos políticos de direita.

Infelizmente, os Estados Unidos apoiaram ativamente esses ditadores de direita em nome da contenção da influência da União Soviética na região. A partir do início dos anos 60, a União Soviética concedeu grandes somas em ajuda para Cuba, o regime comunista solitário da região. Havana, por sua vez, não construiu apenas um Estado policial temível em casa; também criou serviços armados e de inteligência que buscavam trazer a revolução por todos os meios necessários no continente e em toda a África, ao mesmo tempo em que apoiaram os objetivos geopolíticos da União Soviética no Oriente Médio. Os agentes cubanos e soviéticos acabaram não conseguindo estabelecer mais ditaduras de seu próprio gosto político no Hemisfério nas décadas de 1970 e 1980. Apesar do colapso da União Soviética e da subsequente enorme crise econômica que Cuba sofreu no início dos anos 90, o regime cubano e seu estilo de política externa sobreviveram.

A Esquerda Latino-Americana Não É Um Monolito

A eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998 marcou o início da chamada Maré Rosa, o início de um surgimento de partidos populistas de esquerda que venceram eleições em todo o continente. Embora isto seja elogiado como um ressurgimento da esquerda, é importante ter em mente que a centro-esquerda tinha estado no poder em muitos países antes da eleição de Chávez nesse ano. O Chile tinha sido governado por uma coligação de centro-esquerda durante oito anos. O Partido Justicialista esteve no poder no início dos anos 90 na Argentina, tal como o Partido Liberal de centro-esquerda na Colômbia. Muitos poderiam ter problemas com o fato de que estes governos eram "neoliberais" que favoreciam a liberalização econômica e o estreitamento dos laços com os EUA. Talvez sim, mas nenhum dos líderes envolvidos nesses governos – muitos deles ainda hoje politicamente ativos – pode ser descrito seriamente como de direita.

Hugo Chávez representou uma nova onda de esquerdismo populista que foi frequentemente iliberal desde o início. O próprio Chávez participou numa tentativa fracassada de golpe de estado na Venezuela em 1992. O seu caso amoroso com a ditadura cubana remonta a 1994, quando visitou a ilha pela primeira vez e teve somente elogios generosos a Castro e ao seu regime. No início, Chávez buscou relações preocupantemente estreitas com Havana, basicamente bancando o regime e permitindo que as forças de inteligência e segurança venezuelanas fossem treinadas pelos seus homólogos cubanos. Não surpreende que esta relação acabou sendo fatal para a democracia venezuelana. A Venezuela não se limitou a convidar a tirania para as suas fronteiras. O regime, montado num boom de mercadorias, forneceu um apoio financeiro significativo aos seus aliados, democráticos ou não, na Nicarágua, Brasil, Bolívia e outros, e foi até mesmo acusado de financiar ilegalmente populistas na Europa.

Lamentavelmente, quase todos os governos mais emblemáticos da Maré Rosa foram muito eloquentes pelo seu apoio a Castro e Chávez, mesmo depois de este último já ter começado a corroer as normas democráticas já em 2006. O governo boliviano sob Morales também procurou uma relação estreita e problemática com Cuba, e o próprio Morales tinha uma lealdade quase religiosa a Hugo Chávez. A centro-esquerda em lugares como Uruguai e Chile acabou se distanciando de Maduro, mas autoritários como os ex-presidentes Correa no Equador e Morales na Bolívia, bem como Ortega na Nicarágua e alguns partidos de extrema-esquerda em outros países, continuam, até hoje, a apoiar de assumidamente a ditadura em Caracas.

O iliberalismo que se propagou em grandes partes da esquerda na América Latina causou alguns danos graves e duradouros às normas democráticas nas últimas décadas. A Venezuela transformou-se numa ditadura de pleno direito e a grosseira má gestão econômica do regime levou a uma das piores crises humanitárias da história do continente. A Nicarágua está seguindo o exemplo rigorosamente. O regime cubano, longe de mostrar sinais de reforma, está apertando o seu controle sobre o poder. Os ataques de Correa à imprensa no Equador foram constantes e perversos. A Bolívia conseguiu retirar Morales do poder em outubro, mas a situação é ainda incrivelmente volátil, uma vez que o país está preso entre um governo inepto e autoritário, e o possível retorno de linhas-duras do MAS.

O colapso econômico da Venezuela e a natureza agora claramente brutal do regime podem impedir que alguns da esquerda façam do país um exemplo a seguir, e os líderes atualmente no poder que se beneficiaram do petróleo barato dos seus aliados caribenhos irão provavelmente sofrer. Isto não significa, contudo, que a ameaça tenha desaparecido. A severa crise econômica provocada pela pandemia e a recuperação abrupta que se avizinha são terreno fértil para todas as marcas de populismo, e a China e a Rússia têm procurado ativamente formas de expandir sua influência na região já a algum tempo. As suas âncoras óbvias são as cleptocracias decrépitas, mas ainda agressivas, em Havana e Caracas.

Foco em Valores Democráticos

Os liberais em toda parte, como Sir Michael Cianci corretamente aponta, também deveriam estar profundamente preocupados com a reação da direita ao iliberalismo da esquerda. No Brasil, a corrupção e a má administração econômica de Lula da Silva e de seu partido no Brasil, também aliado próximo de Chávez, tomou a forma de um protofascista sem partido em Bolsonaro. Nayim Bukele está ampliando os limites do poder executivo em El Salvador. O governo interino na Bolívia também demonstrou pouca consideração pelos direitos básicos e está usando exatamente alguns dos mesmos truques que o partido de Morales usou para tentar encobrir sua imagem e fazer campanha política.

Apesar disso, recuso-me a acreditar que ou a esquerda ou a direita são definidas por seus elementos iliberais. É crucial que os liberais, tanto da esquerda como da direita, reconheçam como fracassaram em nossas sociedades. Parte da direita precisa considerar seu apoio passado às ditaduras militares, e parte da esquerda, seu apoio às ditaduras socialistas do século XXI. Ambas precisam revisitar as reformas para trazer tanto estabilidade financeira quanto serviços públicos mais generosos. Ambas precisam fazer mais para melhorar a situação material e a representação política das populações indígenas. Tanto os liberais de esquerda quanto os de direita precisam defender a democracia liberal e defender melhor os eleitores do que os populistas iliberais.

As afirmações de Cianci de que a esquerda latino-americana é inofensiva e totalmente democrática simplesmente não são verdadeiras. A esquerda também só está na oposição há menos de três anos em lugares como Chile, Brasil, Bolívia e El Salvador. Também é falsa a ideia de que a cooptação da esquerda por atores antidemocráticos nunca foi uma ameaça real durante a Guerra Fria. A dominação americana durante a Guerra Fria parecia sem paralelo para os americanos porque eles viam seu governo apoiar ditadores de direita que esmagavam esquerdistas e liberais por toda parte, mas a ameaça das forças antidemocráticas apoiadas por Cuba e pela União Soviética era muito real, assim como a ameaça da influência venezuelana e cubana hoje. Declarações cor-de-rosa como estas sobre a esquerda – ou a direita, por sinal – são inúteis, pois impedem qualquer introspecção e alimentam a polarização, pois apenas um lado pode ser justo.

Os formuladores de políticas americanos não devem temer a esquerda ou a direita latino-americana. Eles devem se concentrar na promoção dos valores democráticos e na construção de laços mais estreitos com aqueles comprometidos com o respeito às normas democráticas. Eles devem trabalhar para fortalecer os laços comerciais com a região e organizações multilaterais como a OEA – tudo isso independentemente das cores políticas de seus parceiros no sul. Afinal de contas, a democracia não pode existir sem alternância de poder.

Autor: Alvaro Piaggio

Tradução: Gabriel Canaan

Revisão: Fernando Moreno

Publicado originalmente em 9 de setembro de 2020 no Exponents Mag.

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