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outubro 27, 2020

A obra de John Rawls, um teórico do liberalismo de esquerda (ou “liberalismo igualitário”), é muito conhecida pelos dois princípios proclamados por ele: o da liberdade e o da justiça social (sendo que este último contém o da igualdade de oportunidades e o da diferença).

Existem tentativas interessantes de realizar uma modificação desses princípios, ou de integrar novos dados empíricos para a escolha de um regime político justo com base neles, para a defesa do libertarianismo.

Para Brian Kogelmann, basicamente você poderia fazer duas coisas: incluir liberdades econômicas robustas dentro das liberdades do primeiro princípio ou você mostra economicamente que o segundo princípio é realizado mais efetivamente pelo capitalismo de livre mercado. (“A (Revised) Theory of Justice”, 6/6/2013).

Em seu recente livro “Free Market Fairness”, John Tomasi faz uma elaboração bem articulada de como uma teoria revisada da justiça, em bases rawlsianas, poderia defender o libertarianismo/liberalismo clássico, ou, o que ele chama de “democracia de mercado”. Entre os bleeding heart libertarians, Tomasi é certamente o mais rawlsiano de todos, e é possível encontrar no blog Bleeding Heart Libertarian várias postagens relativas ao simpósio sobre esse livro, com discussão de várias outras pessoas, inclusive criticando suas propostas (vide referências).

Mas a revisão mais interessante dos dois princípios que eu já vi foi feita pelo Kevin Vallier. Mesmo se você estiver incerto se a teoria da justiça deve ser elaborada em moldes rawlsianos, ainda assim os dois princípios de justiça tal como elaborados por ele são muito plausíveis enquanto parâmetros para avaliar uma sociedade como justa. Ele fez isso no texto “Neo-Rawlsian Libertarianism: Two Principles of Justice for Bleeding Hearts”, em 12/04/2012.

Para Vallier, os dois princípios modificados teriam a seguinte redação:

Princípio da Liberdade: Cada pessoa tem uma igual reivindicação para um esquema adequado de direitos e liberdades básicos iguais, sendo tal arranjo compatível com o mesmo arranjo para todos os demais; essas liberdades incluem liberdades econômicas, civis, políticas e religiosas abrangentes.

Princípio da Justiça Social (ou Distributiva): As distribuições econômicas e sociais devem satisfazer três condições: 1) maximização da soma total de bens básicos/primários, sujeita aos limites do princípio anterior; 2) as ocupações econômicas e os estratos sociais daí decorrentes devem estar abertos/franqueados para todos, em condições de justa oportunidade; 3) provisão de um suficiente “pacote”/”cesta” de bens para membros da sociedade que acidentalmente ficam em desvantagem, com menos do que o suficiente pra si.

É importante destacar que, nesse Princípio de Justiça Social, não se fala em “iguais oportunidades”, mas sim em “condições de justa oportunidade”, isso porque Vallier entende que as oportunidades devem estar disponíveis de forma que maximizem o valor líquido dos bens primários e que se forneça um mínimo de oportunidades inclusive aos menos favorecidos.

Aqui recorro ao David Schmidtz, para esclarecer o que Vallier tenta dizer: “Existe espaço, entretanto, dentro de uma teoria genuinamente liberal, para um igualitarismo com vistas ao melhoramento (e não ao nivelamento) das perspectivas gerais de vida – à remoção das barreiras a fim de que as pessoas tenham condições de melhorar sua própria situação” (SCHMIDTZ, p. 176) e “as oportunidades iguais da tradição liberal punham ênfase no melhoramento das oportunidades e não em sua equalização” (SCHMIDTZ, p. 181).

Sobre o crescimento econômico como forma de justiça social, cito uma reflexão proposta pelo Schmidtz: “Sabemos que diferenças minúsculas nas taxas de crescimento econômico, compostas no decorrer de apenas um século, vão-se adicionando até se transformarem em diferenças de prosperidade gigantescas. Assim, (…) se julgamos importante pensar nas gerações futuras, o que devemos pensar das maneiras de redistribuir riqueza que diminuem o crescimento econômico?” (SCHMIDTZ, p. 209). Neste ponto também recomendo um texto do Jason Brennan que explica como o aumento da desigualdade pode ser acompanhado pela melhora substancial do padrão de vida dos mais pobres, o que eu interpretei como a existência de um custo de oportunidade na opção entre produção e redistribuição (vide referências).

Já o terceiro (e último item) da justiça social é uma condição suficientariana, sendo que o suficientarianismo já foi exposto em texto passado (ver referências), a partir de um paper do Harry Frankfurt. Mas o próprio Vallier apressa-se em dizer que, para libertários, essa condição de suficiência não serve para compensar aqueles que tenham se desfeito dela, por vontade própria, via tomada de riscos deliberados ou certas escolhas de vida feitas, de modo que a condição aplica-se àqueles que caíram acidentalmente abaixo do limiar mínimo de renda/acesso aos bens básicos.

Essa condição de suficiência pode ser cumprida, por exemplo, por meio de regimes de seguridade social bancados por meio de impostos, ou um sistema de vouchers educacionais. Os bleeding heart libertarians costumam enfatizar a Universal Basic Income (UBI), ou, em português, a “Renda Básica Universal”, que deve ser garantida a todos independente de sua condição socioeconômica. O próprio Vallier a defendeu, inclusive, no texto “The Later Rawls’s Critique of Libertarianism”, considerou que mesmo uma ordem anarquista policêntrica poderia alcançar um consenso sobreposto para adotar alguma forma de “Renda Básica”. Já a Jéssica Flanigan, no texto “BHL’s & UBI’s”, forneceu diversificadas razões libertárias para a defesa da “Renda Básica Universal”.

Curiosamente, o Brasil já adotou a “Renda Básica Universal”, denominando-a de “renda básica de cidadania”, a ser concedida nos seguintes termos: “É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário” (art. 1º, caput, da lei nº 10.835/2005). Contudo, até hoje não foi implementado.

Vallier oferece também um resumo para o princípio da justiça social: “as distribuições socioeconômicas devem maximizar o excedente cooperativo e prover para todos justas oportunidades e um limiar de bens básicos abaixo do qual ninguém possa, sem vontade própria, cair”.

Eu até resumiria de modo mais sintético: justiça social = crescimento econômico + melhoramento das oportunidades para todos, inclusive os mais pobres + mínimo de renda garantida para todos, abaixo da qual ninguém possa cair acidentalmente.

Certamente, por liberdades tão amplas (1º princípio) e por uma justiça social que leva em conta o que realmente importa (2º princípio) vale a pena lutar!

Postado originalmente aqui.

Referências:

VALLIER, Kevin. Neo-Rawlsian Libertarianism: Two Principles of Justice for Bleeding Hearts. 12/04/2012 

VALLIER, Kevin. The Later Rawls’s Critique of Libertarianism. 3/8/2012

FLANIGAN, Jessica. BHL’s & UBI’s. 30/4/2012

Postagens do Simpósio sobre o livro “Free Market Fairness”

TOMASI, John. Free Market Fairness. Princeton University Press, 2012.

KOGELMANN, Brian. A (Revised) Theory of Justice. 6/6/2013

BRENNAN, Jason. Fairnessland and Economic Growth. 15/3/2011

SCHMIDTZ, David. Os Elementos da Justiça. Tradução: William Lagos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

FRANKFURT, Harry. Equality as a Moral Ideal. In: Ethics,  vol. 98, nº. 1 (Oct., 1987), pp. 21-43

Lei nº 10.835/2005

Daqui do blog: “Custos de oportunidade arcados pelos pobres na opção entre redistribuição e produção” em 25/05/2013

“Que todos possam ter o suficiente para si, mesmo que alguns tenham mais do que outros!” em 27/07/2013

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