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outubro 26, 2020

Nota prévia: esclarecendo o véu da ignorância de John Rawls

O véu da ignorância é um conceito que ajuda a demonstrar algumas de nossas intuições morais mais básicas. Imagine que você está tentando decidir como distribuir recursos entre duas diferentes pessoas. Melhor ainda, você será uma dessas pessoas - mas não sabe, de antemão, qual dessas pessoas você será. Digamos que você ainda não nasceu e passará por um sorteio para determinar em que corpo você irá parar!

Nesta situação, o melhor é imaginar que você pode acabar na situação de qualquer uma dessas pessoas e, deste modo, deverá escolher as políticas que sejam boas para ambos, que produzirá o melhor benefício possível para ambos (em oposição a políticas que ferrariam uma pessoa em benefício da outra).

Spencer J. Maxcy descreve o conceito do véu da ignorância da seguinte maneira:

Imagine que você definiu para si a tarefa de desenvolver um contrato social totalmente novo para a sociedade atual. Como você pôde fazer isso de maneira justa? Embora você nunca possa realmente eliminar todos os seus preconceitos e preconceitos pessoais, seria necessário tomar medidas pelo menos para minimizá-los. Rawls sugere que você se imagine em uma posição original por trás de um véu de ignorância. Por trás desse véu, você não sabe nada de si mesmo e de suas habilidades naturais ou de sua posição na sociedade. Você não sabe nada sobre sexo, raça, nacionalidade ou gostos individuais. Por trás desse véu de ignorância, todos os indivíduos são simplesmente especificados como seres racionais, livres e moralmente iguais. Você sabe que, no "mundo real", no entanto, haverá uma grande variedade na distribuição natural de recursos e habilidades naturais e que haverá diferenças de sexo, raça e cultura que distinguirão grupos de pessoas, umas das outras.

Spencer J. Maxcy. Fonte.

A versão proposta em 1971 pelo filósofo americano John Rawls em sua filosofia política de "posição original" baseia-se no seguinte experimento mental: as pessoas que tomam decisões políticas imaginam que não sabem nada sobre os talentos, habilidades, gostos, classe social e posições em que terá dentro de uma ordem social. Quando essas partes estão selecionando os princípios para a distribuição de direitos, posições e recursos na sociedade em que viverão, esse "véu de ignorância" os impede de saber quem receberá uma determinada distribuição de direitos, posições e recursos naquela sociedade. Por exemplo, para uma sociedade proposta na qual 50% da população é mantida em escravidão, segue-se que, ao entrar na nova sociedade, há uma probabilidade de 50% de que o participante seja escravo. Se você não sabe em qual lado da sociedade cairá nesse "cara ou coroa", não lhe parece uma boa ideia escolher outro pacto social?

A ideia é que as partes sujeitas ao véu da ignorância farão escolhas baseadas em considerações morais, uma vez que não serão capazes de agir de acordo com seus interesses. A ideia do experimento mental é tornar obsoletas as considerações pessoais moralmente irrelevantes para a justiça ou injustiça dos princípios destinados a alocar os benefícios da cooperação social.

Como Rawls disse, "ninguém conhecerá seu lugar na sociedade, sua posição de classe ou status social; nem conhecerá sua fortuna na distribuição de ativos e habilidades naturais, sua inteligência e força, e coisas do género".

John Rawls e James Buchanan

O economista James Buchanan era um liberal clássico que sentia ter profunda afinidade com o trabalho de John Rawls em seus objetivos e método (BRENNAN; MUNGER, p. 6). Cabe lembrar que Buchanan adotou a ideia de “véu de incerteza” para definir a situação para escolha das regras constitucionais, já em 1965, antes que Rawls adotasse o “véu de ignorância” como posição original para decidir regras de justiça sobre a estrutura básica da sociedade, em 1971 (Callahan, 13/08/2009). Inclusive houve mesmo correspondência entre Buchanan e Rawls, por meio de cartas, de modo que Buchanan teve a oportunidade de realmente discutir com Rawls e trocar ideias. (Pode ser encontrada no livro “The Street Porter and the Philosopher: Conversations on Analytical Egalitarianism”, nas referências).

No paper “The Justice of Natural Liberty” (1976), Buchanan pretende comparar o “simples sistema de liberdade natural” de Adam Smith, corretamente compreendido como enfatizando mais um critério de justiça do que de eficiência, e a “justiça como equidade” de John Rawls.

Aqui nos interessa o item VI do paper, que discute a aplicação do princípio da igual liberdade de Rawls às instituições econômicas. Este princípio pode ser sumarizado da seguinte forma: cada pessoa tem um igual direito ao sistema total mais abrangente de liberdades básicas iguais compatível com um similar sistema de liberdade para todos.

Buchanan considera que Rawls se concentra em aplicar este princípio às instituições políticas (como o direito ao voto e a liberdade de expressão), mas negligencia as implicações comparáveis no âmbito das instituições econômicas (BUCHANAN, p. 9).

A aplicação consistente desse princípio, que segundo o próprio Rawls sugeriria um sistema de mercado, às instituições econômicas levaria à condenação de muitas das patentes restrições às escolhas individuais que são observadas no mundo real e as interferências específicas consideradas injustas pelo critério rawlsiano corresponderiam, aproximadamente, àquelas que Adam Smith classificaria da mesma maneira (BUCHANAN, p. 9).

Buchanan dá dois exemplos específicos: 1) as regulações uniformes de salário mínimo, impostas pelo Congresso norte-americano por intermédio do Fair Labor Standards Act: acordos mutuamente benéficos entre pessoas desempregadas (especialmente jovens) e potenciais empregadores são proibidos, com uma ausência de restrições comparáveis sobre outros na sociedade; 2) as regulações da Comissão Interestadual do Comércio que restringem a entrada na atividade de caminhoneiro: uma invasão sobre a liberdade daqueles que querem entrar livremente nessa atividade. Ele também considera que outros casos podem servir de exemplos: licenciamento restritivo de negócios e profissões; proibição ou sobretaxação da importação; subsídios à exportação; restrições nos contratos de trabalho relativas à necessidade de adesão ao sindicato, etc. (BUCHANAN, p. 9-10).

Mas e nas situações em que restrições às escolhas individuais seriam plausíveis com base em externalidades? A prioridade léxica da liberdade, para Rawls, impediria a limitação da liberdade com base no trade-off entre uma liberdade básica e outro valor social importante, mas apenas quando há conflito entre duas liberdades, um padrão mais rígido que o do próprio Adam Smith (BUCHANAN, p. 10).

Com isso, para dar um exemplo real, o fechamento de uma planta da Olin Corporation na década de 70, após a introdução de novos parâmetros de qualidade da água governamentalmente impostos, causou a restrição das liberdades das pessoas, uma vez que levou ao fim de acordos de trabalho mantidos durante muito tempo. A argumentação em favor disso, presumivelmente, era a de que a qualidade da água seria melhor para o país inteiro. Mas aqui a liberdade de algumas pessoas foram restringidas para o benefício de outras e sem nenhuma compensação, inexistindo conflito entre liberdades pessoais. Portanto, pelo critério de Rawls, a ação seria injusta (BUCHANAN, p. 10-11).

Dessa forma, Buchanan conclui que, trabalhando sozinho o princípio da igual liberdade, e mantendo a prioridade léxica da liberdade, a implicada estrutura institucional para a economia seria muita próxima daquela defendida por Adam Smith, de tal forma que apenas um sistema de liberdade natural, um regime de livres mercados efetivamente operantes, satisfaria o requerimento de Rawls para “igual liberdade” e, portanto, justiça (BUCHANAN, p. 11).

Um ponto interessante é que, em nota de rodapé, Buchanan comenta que o salário mínimo poderia ser considerado injusto também com base no segundo princípio de Rawls (sobre justiça social), uma vez que os grupos primariamente afetados e prejudicados por esse tipo de legislação são compostos pelas pessoas em maior desvantagem na sociedade, aqueles com relativamente baixa produtividade econômica (BUCHANAN, p. 10).

No blog “Bleeding Heart Libertarians”, o convidado Felix Bungay comenta que, em entrevista à PBS, Samuel Freeman disse que Rawls se opunha ao salário mínimo, no sentido de que seria preciso deixar que o mercado de trabalho pudesse cair tão baixo, deixando que os empregadores pagassem apenas dois, três doláres por hora se eles pudessem, e aí o governo viria e suplementaria isso (BUNGAY, 12/07/2013).

Bungay ainda comenta que esse suplemento defendido por Rawls seria o imposto de renda negativo, proposto por Milton Friedman. Em seu livro “Teoria da Justiça”, Rawls teria dito que as garantias governamentais para um mínimo social poderia ser feita mais sistematicamente por meio de mecanismos como uma complementação graduada da renda, que seria o imposto de renda negativo (BUNGAY, 12/07/2013).

Referências

BUCHANAN, James M. The Journal of Legal Studies. Vol. 5, Nº 1 (Jan., 1976), p. 1-16 –>   Aqui

BUNGAY, Felix. John Rawls: For School Choice, Against the Minimum Wage. 12/06/2013 –> Aqui

BRENNAN, Geoffrey; MUNGER, Michael. The Soul of James Buchanan? Duke PPE Working Paper 13.0429 –> Aqui

CALLAHAN, Gene. The Calculus of Consent and Rawls. 13/08/2009 –>  Aqui

LEVY, David M.; PEART,  Sandra J. Part 5 – The Buchanan-Rawls Correspondence. In: The Street Porter and the Philosopher: Conversations on Analytical Egalitarianism –>  Aqui

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