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outubro 24, 2020

James Buchanan, em seu livro “The Limits of Liberty: Between Anarchy and Leviathan”, fala da necessidade de uma genuína revolução constitucional, sob uma visão contratualista da ordem legal, e considera que um necessário passo para isso é uma redefinição consensual dos direitos e reivindicações (BUCHANAN, p. 58).

Para corrigir as ambiguidades na definição dos direitos individuais, e, assim, limitar o escopo de intervenção do governo, seria necessário passar pela questão central de reconciliar as reivindicações expressas pelos indivíduos quanto à propriedade privada de seu capital humano e não-humano, com a distribuição igualitária de “direitos de propriedade pública” (public property rights) através do sufrágio, uma vez que, devido às diferenças na riqueza, é preciso conseguir um consenso sobre as restrições às transferências fiscais entre os grupos (BUCHANAN, p. 58)

Buchanan dá um exemplo muito simplificado, contendo duas pessoas. Um homem rico, A, possui uma ativo que rende anualmente $100.000,00, que é taxado em 50%, de modo que sua renda líquida é de $50.000,00. Um homem pobre, B, não tem nenhum ativo e ganha $5.000,00 anualmente por meio dos trabalhos que faz. O “governo” (tratado como exógeno) coleta impostos exclusivamente do homem rico, no total de $50.000,00, que usa em uma variedade de projetos, com vários graus de eficiência. Os benefícios advindos da ação governamental promovem, para o homem rico, um benefício de $10.000 e, para o homem pobre, $20.000. Esse contrato social pode ser renegociado com ganhos para ambas as partes, supondo que o rico proponha transferir ao pobre 1/3 da sua renda bruta, no total de $33.333,00 em troca deste último concordar em reduzir o tamanho do orçamento do governo para zero. Nesse arranjo, o homem rico retém uma renda líquida de $66.667,00, mais alta do que aquela mantida antes ($60.000,00) e o homem pobre consegue uma renda de $38.333,00 (ganhos próprios mais benefício governamental), mais alta do que aquela que tinha no arranjo anterior ($25.000), de modo que ambos saem ganhando (BUCHANAN, p. 158-159).

Apesar de simplificado, esse exemplo demonstra que é possível diminuir o tamanho do Estado, e, ainda assim, aumentar a ajuda aos pobres, desde que você substitua programas governamentais por transferências fiscais diretas para as pessoas mais pobres.

Um programa governamental tem custos além daqueles implicados no benefício aos destinatários e, portanto, o repasse desses valores ao governo para ajudar determinados destinatários não será repassado integralmente para estes. Já uma transferência fiscal direta, seja por meio de dinheiro ou de vouchers (vales), principalmente da primeira, garante a transferência aproximadamente integral do valor aos destinatários.

Dessa forma, é possível que você diminua o montante que será transferido ao governo e, ainda assim, aumente o montante que será transferido aos destinatários de ajuda social (os mais pobres, por exemplo), desde que você transforme os programas governamentais em transferências diretas de renda, tal como uma Renda Básica Universal ou alguma forma de renda mínima.

Jessica Flanigan, uma libertária defensora da Renda Básica Universal (FLANIGAN, 2012), inclusive menciona que o site Givewell avalia a qualidade das instituições de caridade ao redor do mundo e que, em seu ranking de melhores instituições, a 2ª colocada é a “GiveDirectly” (“Dar Diretamente”), que oferece transferência direta de renda para pessoas pobres no Quênia e cujo destinatário médio vive com 0,65 dólares por dia. Seus destinatários usam o dinheiro para melhorar suas casas, pagar mensalidades de escola (FLANIGAN, 2013).

Flanigan considera que a “GiveDirectly” é uma instituição de caridade ideal para padrões libertários “bleeding heart”, uma vez que: (FLANIGAN, 2013)

a) Transferências diretas de renda não são paternalidades, pois deixam aos mais pobres a decisão do que seria melhor fazer com o dinheiro.

b) Transferências diretas de renda são uma intervenção eficaz para reduzir a profundidade e a severidade da pobreza.

c) Transferências diretas de renda incentivam o investimento, pois os destinatários podem guardar o dinheiro, ou buscar oportunidades de negócios e de treinamento, ajudando no crescimento da economia local e criando mais oportunidades econômicas.

d) GiveDirectly é orientado por dados, fazendo avaliações do impacto de diferentes estratégias de distribuição para melhorar suas operações.

e) GiveDirectly visa alterar o padrão usado para avaliar a caridade privada. Ela cita Jacqueline Fuller, que escreveu que GiveDirectly traz um novo conceito: “e se as transferências de dinheiro forem usadas como uma referência padrão em face do qual medir toda ajuda ao desenvolvimento? E se as instituições de caridade tiverem de provar que podem fazer mais pelos pobres por meio de um dólar do que os próprios pobres poderiam fazer por si mesmos?”

Flanigan então pondera que isso pode ser usado para fazer um revisionismo na filosofia política, em relação aos programas de combate à pobreza: em vez de questionar se uma organização de ajuda minimiza seus custos operacionais, ou se é comparativamente efetiva em relação às demais organizações, nós deveríamos julgá-la em face da referência da transferência de renda (FLANIGAN, 2013).

Logo, esse modelo não apenas apresenta um padrão para avaliação de instituições de caridade, mas também do próprio Estado: ao invés de se questionar se mais programas estatais são necessários para beneficiar os mais pobres, nós deveríamos perguntar se algum programa estatal específico faz com que os mais pobres estejam melhor do que eles estariam caso apenas recebessem logo um cheque (FLANIGAN, 2013).

Perceba que isso não significa que um programa governamental nunca estará justificado, mas sim que, se ele não conseguir oferecer mais benefício do que uma transferência direta, ele não deveria ser adotado, o que é uma condição bem forte, diga-se de passagem. 

Cabe destacar ainda que, em seu excelente livro “Public Choice III”,  Dennis C. Mueller destaca que, como destinatários de ajudas valorizam transferências “in natura” menos do que o valor nominal delas, um programa de redistribuição que se baseasse unicamente em conseguir mais altos níveis de utilidade (conceito econômico para designar a satisfação das próprias preferências) para seus destinatários consistiria em transferência direta de dinheiro. Isso também significa que, se a ajuda oferecida aos mais pobres é realizada na forma de itens específicos de consumo, a preocupação daqueles que oferecem a ajuda está em um mais alto nível de habitação, alimentação e atenção médica dos pobres, por exemplo, e não no aumento da utilidade deles conforme as preferências deles mesmos (MUELLER, p. 58).

Mas, ainda que a preferência seja por garantir esses mais altos níveis de consumo de determinados itens, e não da utilidade em geral, pelo parâmetro que estabelecemos acima, deveríamos optar por um sistema de vouchers (vales) de preferência aos programas governamentais.

Por fim, veja que essa questão de diminuir o poder da (e o gasto com a) burocracia, para garantir que o repasse ao governo de valores para ajudar os mais pobres seja repassado quase integralmente para estes, é importante inclusive para países que não apresentam situações flagrantemente disfuncionais no âmbito social.

A Suécia, por exemplo, adotou um sistema de vouchers para permitir que os suecos possam optar entre as escolas privadas e a escola pública, de modo que o governo financia a educação de uma criança ou adolescente sueco, mas quem escolhe a escola serão os pais (IDERGARD, 2010).

Perceba que, nesse caso, o gasto público não é suscetível ao “rent seeking”: quem determina o gasto público não são grupos de interesse que querem obter aquele dinheiro (por exemplo, escolas que querem ser financiadas, e que por isso entram em conluio com o governo e/ou a burocracia para serem financiadas), mas sim o próprio cidadão enquanto beneficiário do gasto (as pessoas escolhem as escolas para as quais elas querem que o governo financie sua educação, de modo que as escolas têm de competir, não para conseguir a verba por decisão administrativa do governo, mas para conseguir a preferência e a opção livre dos cidadãos que decidem, ao optar por uma escola específica, direcionar a verba para aquela escola).

Dessa forma, é sim possível diminuir o tamanho do Estado, incluindo diminuir o montante de dinheiro destinado à ajuda aos mais pobres, e, ainda assim, aumentar e melhorar a ajuda social aos mais pobres e capacitá-los a fazer suas próprias escolhas econômicas.

Publicado inicialmente aqui.

Referências:

BUCHANAN, James. The Limits of Liberty: Between Anarchy and Leviathan. 1975. In: The Collected Works of James M. Buchanan, vol. 7, Indianapolis: Liberty Fund, 1999-2002

MUELLER, Dennis C. Public Choice III. Cambridge University Press, 2003

FLANIGAN, Jessica. Effective Altruism for BHL’s. 28/05/2013

FLANIGAN, Jessica. BHL’s & UBI’s. 30/04/2012

EDERGARD, Thomas. Entrevista feita por Dan Lips. 08/03/2010

“Neoliberalismo x liberalismo neoclássico” (21/04/2013)

“Estado-gerente x Estado-seguradora (em Jason Brennan): ‘Secure people dare’ (Socialdemokraterna sueco)” (22/02/2013) 

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