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outubro 23, 2020

Nos últimos tempos, uma discussão tem agitados os meios libertários: afinal, libertarianismo diz respeito apenas ao uso da força, ao anti-estatismo, à não interferência com as escolhas individuais, ou existe algo mais nisso?

Em seu excelente artigo “Sim, o Liberalismo vai além do uso da força“, Raphael Moras de Vasconcellos resume para nós essa discussão:

“No seu artigo “The Future of Libertarianism”, de 1º de maio de 2014, Llewellyn Rockwell, conhecido discípulo anarco-capitalista de Murray Rothbard, busca criticar a recente discussão sobre se o libertarianismo restringe-se a estabelecer o papel adequado do uso da força na sociedade, ou se agrega outras reivindicações morais, como por exemplo a defesa da tolerância social. O proponente inicial dessa discussão foi o left-libertarian radical Charles Johnson no artigo “Libertarianism through thick and thin”, posteriormente apoiado pelos seus colegas Roderick Long, Gary Chartier e Sheldon Richman, que receberia ainda o apoio de Jeffrey Tucker em seu artigo “Against Libertarian Brutalism”.

A tese central de sua crítica é a de que o liberalismo se desvirtuou quando passou a estabelecer novos princípios além daquele de Não Agressão (PNA). O libertarianismo seria a continuação purificada do liberalismo clássico pois, segundo Rothbard, não traz nenhuma teoria moral no seu bojo.”

Tucker opõe-se à Rockwell, e defende que o libertarianismo humanitário é melhor que o brutalista:

“[Há] dois impulsos radicalmente diferentes [no libertarianismo]. O primeiro [humanitário] valoriza a paz social que emerge com a liberdade, enquanto o segundo [brutalista] valoriza a liberdade de rejeitar a cooperação em favor de preconceitos rasteiros. O primeiro quer reduzir o papel do poder e dos privilégios no mundo, enquanto o segundo deseja a liberdade de afirmar seu poder e privilégios dentro das fronteiras rígidas dos direitos de propriedade e da liberdade de desassociação.”

O blog Mercado Popular participou dessa discussão com a tradução para o português do artigo de Jeffrey Tucker, e a publicação da tradução de um interessante texto de Will Moyer, “Os Limites do Liberalismo“. No Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS), foi publicado a tradução do texto “O libertarianismo é mais que anti-estatismo“, de Cory Massimino.

Dito tudo isto, minha vez de fazer um comentário nessa discussão toda.

Minha posição é que este debate é apenas uma reelaboração da discussão sobre “liberdade negativa x liberdade positiva”.

Alguns libertários entendem que é suficiente que as liberdades negativas das pessoas sejam preservadas. Lembre que liberdade negativa é a ausência de interferência ou compulsão externa. Então, mesmo se suas opções sejam limitadíssimas, você é livre desde que não haja compulsão externa. O libertarianismo vence quando o poder do Estado de interferir em nossas vidas compulsoriamente é destruído.

Os outros libertários já entendem que não é suficiente que as liberdades negativas das pessoas sejam preservadas. Estes libertários valorizam a liberdade positiva, isto é, a capacidade real de uma pessoa tomar suas próprias escolhas e levar o tipo de vida que ela gostaria de ter. Então, a ampliação da capacidade de desfrutar realmente das liberdades negativas, e a inclusão de cada vez mais pessoas nesta capacidade, por meio de cooperação social voluntária entre agentes autônomos, seria o triunfo último do libertarianismo.

Vamos fazer uma análise prática dessa diferença, usando o caso das mulheres trans em nossa sociedade atual, onde ainda há muito preconceito e discriminação. (Caso você não esteja acostumado com a linguagem, “mulher trans” é a pessoa cujo sexo biológico é masculino, mas sua identidade de gênero é feminina.) Veja o seguinte trecho desta notícia:

As transexuais até hoje tentam convencer familiares de que gênero (masculino ou feminino) se define pelo que sentem – e não pelo que carregam entre as pernas. Na batalha diária pelo reconhecimento como mulheres, o embate mais difícil é com os patrões. Faltam dados oficiais sobre o grupo, mas militantes afirmam que 90% das pessoas que creem ser mulheres em corpos de homens se prostituam para sobreviver. Não vão à rua por escolha, mas por falta de opções.

O primeiro tipo de libertário diria que, desde que o preconceito não seja violento, nada há mais para o libertarianismo falar acerca disso. Afinal, ninguém é obrigado a contratar mulheres trans, e ninguém as está obrigando a se prostituir. A liberdade negativa de patrões e mulheres trans estão preservadas e isso é o máximo que o libertarianismo pode querer. Se a mulher trans conseguisse ocultar sua condição, e depois esta fosse descoberta pelo empregador, é até possível que esse tipo de libertário afirmasse que ela merece ser processada por fraude e quebra de contrato, devendo indenizar o empregador.

Mas, sério, você acha mesmo que essa postura é um amor real pela liberdade – e libertação – de cada vez mais pessoas para optarem por horizontes de escolha mais amplos e satisfatórios à auto-expressão e felicidade humanas? Isso é uma visão muito limitada do que a liberdade é e pode ser, e não compreende que a liberdade deveria ser importante para todas as pessoas, não só para um seleto grupo de “privilegiados culturais”.

O segundo tipo de libertário diria que o triunfo final do libertarianismo ocorrerá quando mesmo grupos minoritários como as mulheres trans possam desfrutar de plena liberdade positiva, com maior autonomia e inclusas na cooperação social voluntária, sem que sua liberdade real seja obstada por uma cultura discriminatória generalizada. (Obs: perceba que isso não implica que se esteja advogando nem o uso da coerção para acabar com a discriminação, nem que a liberdade positiva significa uma liberdade de tomar decisões socializando os custos, e nem mesmo a existência do Estado!)

Isso significa que a visão sobre a liberdade do primeiro tipo de libertário não apenas é limitada, como é mesmo deformada. Defino liberdade como “poder tomar suas próprias decisões sobre si mesmo sem precisar da autorização de outra pessoa e sem jogar os custos para outra(s) pessoa(s)”. Esse “jogar os custos para outra(s) pessoa(s)” visa mostrar que a liberdade não é uma “carta branca”  para socializar os custos, e nem para ratificar qualquer tipo de ação unilateral de uma pessoa sobre a outra.

O primeiro tipo de libertário parece crer que a liberdade possibilita, sem reservas, ação unilateral de uma pessoa sobre a outra, ao tornar o direito à propriedade privada ‘absoluta’ uma premissa que possibilita o uso da coerção sem precisar de justificativa. Foi o que falei em meu texto “Violação ao direito de propriedade não é a única forma de prejuízo econômico injusto“: o regime de propriedade privada, na medida em que propicia a exclusividade de certos recursos para certas pessoas sob ameaça do uso da força, precisa ser derivado de cooperação social voluntária, de uma espécie de consentimento à própria instituição, que é criada para prevenir disputas que colocariam em risco a possibilidade das pessoas interagirem livremente umas com as outras.

Pense comigo: compare a propriedade exclusiva sobre uma cadeira que eu não uso para nada há décadas com a propriedade exclusiva sobre uma terra que eu não uso para nada há décadas. Existe um motivo pelo qual esta última forma de propriedade parece bem mais questionável que a primeira, ainda que em ambos os casos recursos estejam ociosos não porque não há quem os use ou precise usá-los, mas porque há uma ameaça de uso da força contra quem pretenda usá-los sem autorização do proprietário.

O motivo é simples: reivindicar um direito de exclusividade sobre a terra, para deixá-la sem uso durante décadas, gera uma externalidade muito maior sobre as demais pessoas do que reivindicar um direito de exclusividade sobre a cadeira sem uso há décadas. Dificilmente uma cadeira sem uso específica fará qualquer falta para uma pessoa disposta a sentar-se em algum lugar; mas uma terra sem uso pode fazer falta para pessoas que gostariam de morar em algum lugar, etc.

Achar que você pode, num cenário hipotético onde ainda não existia propriedade privada da terra, repentinamente murar um pedaço de terra e proibir todo mundo de passar por ela (sendo que ontem mesmo eu tinha a liberdade de passar por ela se eu quisesse), é achar que você pode tirar unilateralmente a liberdade de outras pessoas de usar uma terra sem dono, sem precisar de nenhuma justificativa ou acordo nem que seja sobre os limites.

Por isso a importância de discutirmos mais, no libertarianismo em geral, as ideias de grupos ainda mal compreendidos, como os bleeding heart libertarians (especialmente liberais do Arizona: alguns defendem versões modificadas do rawlsianismo, outros o liberalismo da “razão pública”, e outros têm uma abordagem mais pluralista ou de outra natureza), os left-libertarians (libertários de esquerda) e os adeptos da economia política constitucional (como James Buchanan, que adotava a perspectiva dos indivíduos enquanto soberanos constitucionais em busca de acordo inclusive para decidir sobre a atribuição de direitos de propriedade). Todos estes grupos levam a sério o fato de que consentimento é requerido mesmo para a instituição da propriedade, e que esta serve à função da cooperação social voluntária e da internalização de externalidades, tanto quanto à garantia da autonomia individual e do desfrute do trabalho pessoal.

Outro ponto que penso que o primeiro tipo de libertário leva à deformação é sua reivindicação de que eles estão certos, porque a teoria libertária não é uma teoria moral que nos diga como devemos viver.

Isso é um desvio de foco, porque a discussão não é se a moralidade cristã ou a secularizada ou outra qualquer é favorecida ou não pelo libertarianismo, mas sim se a liberdade negativa já é suficiente como triunfo da concepção libertária.

O ponto não é se na sociedade livre, as pessoas poderão achar que gays e trans são pecaminosos ou não, até porque elas são livres para pensar isso; o ponto é se, na sociedade livre, gays e trans poderão gozar de liberdade substantiva para viverem suas vidas e de terem um amplo horizonte de opções e possibilidades para buscar auto-expressão e felicidade. Ter uma concepção moral de que homossexuais e trans são pecadores não deveria implicar que homossexuais e trans devem ter um panorama de opções limitadíssimos na sociedade.

O liberalismo precisa ser inclusivo, libertador e humanitário, e ainda contextualizado. Precisamos defender uma liberdade que seja funcional e real para as pessoas, não uma mera quimera defendida por fetiche ou dogma. Uma sociedade que respeita a liberdade deve ser construída sob o robusto alicerce de possibilitar liberdade para cada vez mais pessoas de forma cada vez mais ampla, inclusive para os mais pobres, os marginalizados, os excluídos, por meio de cooperação social voluntária pautada em autonomia individual e associações livres.

Quando este dia chegar, será o triunfo último do libertarianismo.

Postado originalmente aqui.

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