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outubro 19, 2020

A ideia de que Jeff Bezos pode acabar com a fome no mundo é um ponto de discussão comum em certos segmentos da esquerda online. Uma forma mais fraca do mesmo argumento - que os bilionários poderiam fazer um bem incalculável para a sociedade - se simplesmente se abstivessem da ganância - permeia a política de esquerda. Se isto fosse verdade, então defender uma política altamente redistributiva e até mesmo punitiva faria muito sentido.

O único problema é que isso não é verdade. Jeff Bezos não pode acabar com a fome no mundo.

Em grande parte, isto se deve ao fato de que a grande maioria de sua riqueza está vinculada a ações da Amazon, que ele não pode gastar facilmente. No entanto, mesmo que ele tivesse toda a sua fortuna em uma conta bancária, seria difícil fazer as mudanças radicais que os socialistas no Twitter exigem devido a questões sistêmicas em torno do desenvolvimento.

Vamos falar sobre ações

Todos nós sabemos que Jeff Bezos é rico. Mais do que rico. Rico a ponto de que a palavra começa a perder o sentido. Mas quanto dinheiro ele realmente tem? E, mais importante, quais são as fontes de sua riqueza?

O infográfico acima do Wall Street Journal está um pouco desatualizado (Bezos tem atualmente cerca de 166 bilhões de dólares), mas a proporção é correta. A maioria de sua riqueza - provavelmente mais de 95% - está em ações. Grande parte do restante está em ativos como imóveis e veículos.

Isto não quer dizer que Bezos seja secretamente um pobretão. Ele é um homem extremamente rico. No entanto, seu saldo bancário disponível está provavelmente nos milhões - não bilhões. Isso não é suficiente para fazer grandes mudanças nos padrões de vida em todo o mundo.

A resposta óbvia é que ele poderia vender suas ações para conseguir mais dinheiro no banco. Isto é verdade, mas incorre em dois problemas. Primeiro, suas ações são o que lhe permite ter um grande nível de controle na Amazon - a empresa que ele construiu. Se ele as vendesse, correria o risco de perder esse controle. Esse argumento não vai ganhar os corações dos socialistas hardcore, mas parece um pouco injusto exigir que ele abandone o controle do trabalho de sua vida.

Segundo, e mais relevante, a venda de suas ações não converteria seu valor total em poder de compra. Há um mercado limitado para as ações da Amazon e tentar vendê-las reduziria seu preço. Isso para não mencionar que se Bezos de repente começasse a descarregar ações, as pessoas poderiam assumir que há algo errado com a Amazon, provocando pânico no mercado e fazendo com que seu preço baixasse ainda mais. E mais, se Bezos perdesse o controle da Amazon, a confiança do consumidor na empresa provavelmente diminuiria, derrubando ainda mais o valor das ações.

Eu não mexo com ações. Certamente há nuances neste argumento. Sem dúvida é possível vender algumas ações - Bezos já faz isso, em grande parte para fins filantrópicos. No entanto, o resultado é que, embora Bezos tenha US$ 166 bilhões, ele não tem acesso fácil a isso em dinheiro disponível. E, infelizmente, você precisa gastar dinheiro para efetuar mudanças.

Acabar com a fome no mundo é caro

Ainda assim, vamos desconsiderar o problema acima. Através de alguma magia econômica, Bezos enche sua conta corrente com US$ 166 bilhões. Certamente agora, com essa vasta quantia de dinheiro, ele poderia acabar com a fome mundial... Ou, no mínimo, dar grandes passos nessa direção.

Não tão rápido.

Em 2018, países em todo o mundo gastaram US$ 165 bilhões em ajuda ao desenvolvimento no exterior - aproximadamente o mesmo que o patrimônio líquido de Bezos na época. Note que a fome mundial não desapareceu.

Isto é, é claro, uma comparação pouco justa. A ajuda ao desenvolvimento está distribuída por dezenas de setores. A fome no mundo é apenas uma delas. Eis como o respeitado International Food Policy Research Institute decompõe os diferentes custos envolvidos na redução da fome no mundo até 2030:

Modelo e instituiçãoPergunta e horizonteInvestimentos incluídosMeta de fome e principais pressupostosCusto anual (US$)
Atingindo Fome Zero (FAO, IFAD, WFP)Quais são os investimentos e transferências necessários para acabar com a pobreza e a fome em todos os países até 2030?Transferências para acabar com a pobreza, investimentos públicos em irrigação, recursos genéticos, mecanização, agro-processamento, infraestrutura, instituições, e pesquisa e desenvolvimento agrícola Meta de fome zero265 bi
IMPACT (IIFPRI)Quanto a fome mundial diminuiria dados investimentos para aumentar retornos agrícolas até 2030?Pesquisa e desenvolvimento agrícola, irrigação, expansão, uso eficiente de água, manutenção do solo, e infraestruturaMeta de 5% da fome, efeitos do aquecimento global inclusos52 bi
MIRAGRODEP (IFPRI-IISD)Qual é o custo mínimo para acabar com a fome em domicílios vulneráveis em todos os países até 2030?Redes de proteção social, suporte agrícola, e desenvolvimento ruralMeta de 5% da fome, com intervenções direcionadas no nível de domicílios11 bi
Framework de Investimento em Nutrição (Banco Mundial)Qual é o custo mínimo para alcançar as metas da Assembleia Mundial da Saúde para reduzir subnutrição até 2025?Intervenções nutricionais direcionadas (suplementação de micronutrientes e proteínas, promoção de higiene e hábitos de saúde, alimentos complementares, fortificação de alimentos básicos e políticas pró amamentação)Redução de 40% nas crianças com baixa estatura por subnutrição, redução de 50% na anemia em mulheres; aumento de 50% em taxas de amamentação exclusiva; 5% em subnutrição aguda7 bi

Isto indica que alcançar zero fome no mundo (na primeira linha) custaria pelo menos 2 trilhões de dólares. Reduzir a porcentagem da população mundial passando fome de 10,7% para 5% custaria US$ 520 bilhões, uma vez considerado o impacto da mudança climática. Estes custos estão muito além até mesmo do patrimônio líquido de Bezos.

Portanto, não, Jeff Bezos não pode acabar com a fome no mundo. Ele provavelmente poderia contribuir para o esforço, mas não pode pôr fim à fome.

É só uma metáfora

Algumas pessoas afirmam que ele poderia acabar com a fome no mundo. Outras - provavelmente a maioria - simplesmente dizem isso como uma metáfora evocativa. “Por que Bezos não acabou com a fome no mundo?” é um slogan melhor que “Por que os bilionários não dão mais para a caridade?”

No entanto, tomando o argumento como uma metáfora, ele ainda tem problemas. A saber, os desafios do desenvolvimento não se resumem a jogar dinheiro no problema. Os Estados Unidos gastaram mais de 133 bilhões de dólares em desenvolvimento nacional no Afeganistão. No entanto, o Afeganistão continua sendo um dos países mais pobres da Terra, com mais de um terço de sua população cronicamente insegura em termos alimentares.

Por quê?

Porque há uma série de problemas estruturais que complicam os programas de desenvolvimento. Não basta jogar o dinheiro de um helicóptero. Por exemplo, garantir segurança é fundamental para garantir que a assistência ao desenvolvimento não seja destruída ou cooptada. O maior poderio militar da história do mundo não conseguiu garantir esse nível de segurança no Afeganistão. É pouco provável que os doadores privados tenham sucesso onde o Pentágono falhou.

A corrupção, também, pode diminuir substancialmente o impacto da ajuda. O Programa Petróleo por Alimentos no Iraque foi um exemplo especialmente ruim. A ONU assumiu a venda do petróleo iraquiano e usou a receita para comprar ajuda humanitária para o povo iraquiano. Entretanto, quase metade das 4.500 empresas parceiras que eles usaram para entregar ajuda pagaram subornos para ganhar contratos lucrativos, criando uma vasta teia de corrupção. Este é um dos exemplos mais dramáticos, mas o desenvolvimento, em geral, tem desafios perenes com esta prática. A supervisão rigorosa das aquisições necessária para combater a corrupção muitas vezes atrasa os projetos, tornando-os muito menos capazes de se adaptar a mudanças na situação. Quanto mais dinheiro se aloca em um sistema, mais este problema cresce. Não é possível resolvê-lo passando um cheque.

E isto para não falar da extensa infraestrutura necessária para distribuir a ajuda de forma segura e justa. Muitos lugares que mais necessitam de assistência estão isolados, elevando drasticamente os custos dos projetos. Mais importante do que a geografia física, o terreno humano tem que ser mapeado. Não compreender as nuances da cultura local leva a desperdício na melhor das hipóteses, e ao desastre na pior. Uma anedota do almirante William McRaven no Afeganistão ilustra isso. Os soldados americanos perceberam que as mulheres de uma determinada aldeia tinham que caminhar quilômetros até um riacho para coletar água. Os americanos instalaram uma tubulação para se livrarem desta tarefa demorada. As mulheres a destruíram imediatamente, explicando às tropas desconcertadas que caminhar para conseguir água era o único momento do dia em que elas tinham para si mesmas. Mais grave do que isso, não prestar atenção devida a este aspecto do desenvolvimento pode exacerbar involuntariamente as desigualdades socioeconômicas.

Esta é apenas uma pequena amostra dos principais desafios enfrentados pelos profissionais do desenvolvimento. Não há espaço para olhar para a enxurrada de outros problemas enfrentados - basta dizer que o desenvolvimento é muito difícil. O financiamento é uma parte importante da equação, mas não é o único, ou mesmo o mais importante.

Uma Luta Coletiva

Há um debate útil a ser realizado sobre o volume e a natureza da filantropia dos bilionários. No entanto, eles não são super-homens. Eles são limitados por todos os mesmos desafios que atrasam os programas de desenvolvimento existentes - e, como observado, têm muito menos dinheiro disponível para enfrentar esses desafios do que a maioria das pessoas pensa.

Correndo o risco de parecer profundamente condescendente, é muito fácil criar um vilão e culpar os males do mundo sobre eles e sua inação. Por um lado, fazer isso justifica a coroação de um santo herói para levar a luta até o inimigo. Infelizmente, isso simplesmente não reflete a realidade. O progresso é um esforço coletivo e de longo prazo. Fizemos muitos progressos na pressão sobre os males sociais - mas muito mais deve ser feito. Como disse John F. Kennedy, o mundo está em guerra com os inimigos comuns do homem - tirania, pobreza, doença e a própria guerra. A questão é: qual é a melhor maneira de lutarmos juntos nesta guerra?

Autor: Matthew Ader

Tradução: João Marcos Bastos Vilar Garcia

Revisão: Fernando Moreno

Publicado originalmente no Exponents Mag.

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