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outubro 16, 2020

Talvez nenhum termo seja tão amado por populistas de todos os tipos quanto o termo “neoliberal”. Esse palavrão político é utilizado por eles para acusar seus inimigos de uma série de supostos crimes contra “o povo”. Venda da soberania nacional para as grandes corporações estrangeiras, infiltração da ideologia globalista e destruição dos valores nacionais, precarização das condições de trabalho por causa da terceirização, etc. Todos já ouviram isso antes.

É uma crença bastante comum em países de Terceiro Mundo, como o Brasil, que o “credo neoliberal” é uma das razões de nosso baixo desenvolvimento e de nossa pobreza. Foram as reformas neoliberais empregadas nos anos 1990, o chamado “Consenso de Washington”, que causaram desemprego em massa, privatização dos ativos nacionais a preço de banana, desindustrialização e outras maldades mais.

Mas será isso mesmo?

No presente artigo irei revisitar a literatura sobre os efeitos das reformas do Consenso de Washington e mostrar os reais efeitos das reformas adotadas. Será mesmo que as doutrinas “neoliberais” falharam e o neoliberalismo está morto ou será tudo apenas retórica?

I - ORIGENS:

O chamado “Consenso de Washington” surge a partir do Program for Sustained Growth formulado pelo secretário do tesouro americano James A. Baker III para ser adotado pelos países do Terceiro Mundo após o calote da dívida externa mexicana (Chari et al, 2020).

O grande problema dos países subdesenvolvidos nas décadas de 1970 e 1980 era os grandes déficits fiscais financiados com dívida externa. Esses países, realizando grandes projetos de infraestrutura e tendo economias altamente estatizadas, criaram montantes de dívida pública que muitas vezes cresciam mais rápido do que o crescimento de seus respectivos PIBs. Uma vez que a dívida crescia em um ritmo maior do que a capacidade das economias nacionais para pagar, esses países financiavam seus déficits tomando amplos empréstimos externos; sobretudo de bancos americanos.

Contudo, isso acabou quando o Federal Reserve elevou a taxa básica de juros em 20% em 1979 e cortou a capacidade dos bancos americanos de financiar a dívidas desses países. Como resultado, muitos países, como o México em 1982, declararam moratória da dívida ou monetizaram suas dívidas (por meio da senhoriagem/ imposto inflacionário da emissão de moeda), o que causou problemas de corte do fluxo de capital externo e hiperinflação em vários países.

Em 1985, em uma conferência conjunta do Banco Mundial e do FMI em Seoul, Baker defendeu que esses países adotassem uma série de reformas — controle inflacionário, liberalização comercial, abertura para investimentos estrangeiros e privatizações — para gerarem crescimento econômico e, com isso, gerarem crescimento de renda para cumprir com suas obrigações financeiras.

Na sequência do Program for Sustained Growth, essa lista de sugestões de reformas foi adotada pelo FMI e pelo Banco Mundial como condições para fornecimento de ajuda para países que enfrentavam problemas de pagamento de dívida. Essas políticas foram posteriormente fundamentadas por uma série de policy makers americanos, notadamente ligados ao Peterson Institute da Universidade John Hopkins, e incluídas em programas de ajuste macroeconômico de diversos países.

Vários países passaram então a adotar essas políticas, muitas vezes a contragosto, para conseguirem ajuda do FMI ou então para ter acesso novamente a fluxos de capital estrangeiro. O fim da década de 1980 e a década de 1990 foram marcados por uma série de privatizações, planos de austeridade, planos monetários e aberturas comerciais em diversos países.

Seguindo essa onda, uma vasta literatura acadêmica foi se formando para avaliar o impacto dessas reformas. Pesquisas como as de Dollar (1992), Sachs e Warner (1997) e Frankel e Romer (1999) analisaram o efeito das reformas do Consenso de Washington, particularmente a liberalização comercial, e chegaram à conclusão que elas haviam causado uma diferença positiva de crescimento dos países analisados no período de 1972 até 1990. Essas pesquisas geralmente se baseavam na medida de quanto as políticas liberalizantes tinham efeito no volume de comércio, uma vez que assumiam que um aumento do volume de comércio em um país com menos barreiras comerciais era um indicativo de crescimento da renda interna.

Todavia, a pesquisa que teve maior impacto na defesa das reformas do Consenso no período entre 1997–2000s foi a feita por Dollar e Kraay (2004). É bom notar que, apesar de ter sido publicada oficialmente em 2004, essa pesquisa já circulava desde 1999 pelos meios acadêmicos americanos como um working paper do Banco Mundial. Isso será bastante importante mais a frente.

Segundo Dollar e Kraay, os países reformistas, que entraram no processo de globalização, tiveram uma evolução de suas taxas de crescimento de 2.9% em 1970 para 3.5% em 1980 e para 5% em 1990, enquanto que os países “não-globalizados” tiveram um declínio de 3.3% para 0.8% entre 1970 e 1980 e depois uma lenta recuperação para 1.4% em 1990.

Além disso, os autores mostraram, usando seus critérios metodológicos, que as taxas de crescimento do PIB per capita da parcela mais pobre dos países que liberalizaram suas economias aumentaram. Ela foi de 3.8% na China e de 3% em média no conjunto dos outros países.

Correlação entre Liberalização e Crescimento da Renda Per Capita dos mais pobres. Fonte: Dollar e Kraay (2002).

II - DECLÍNIO:

Com esses resultados e uma crescente literatura apoiando as reformas, parecia que o Consenso de Washington e as medidas “neoliberais” tinham ganhado o debate e se firmavam como hegemônicos nas recomendações de políticas públicas para países subdesenvolvidos. Contudo, logo uma nova literatura surgiu para contestar o Consenso.

Segundo Easterly (2005), as pesquisas feitas sobre o impacto das reformas do Consenso de Washington apresentavam uma série de problemas: dificuldades ou mesmo impossibilidade de estabelecimento de causalidade entre variáveis, os dados eram escassos e poluídos para a maioria dos países, as medidas comerciais são sujeitas muitas vezes a erros de medida e subjetivismo em sua avaliação, falta de causalidade teórica entre comércio e crescimento econômico, etc. Porém, para Easterly, o principal problema era a impossibilidade dos pesquisadores ou dos policy makers terem conhecimento acerca de todas as variáveis que poderiam causar o crescimento. As pesquisas tinham o viés de isolar uma suposta causa, o aumento do comércio após a liberalização, e concluir disso que essa era a causa do crescimento econômico observado.

Todavia, a crítica mais forte foi feita por Rodríguez e Rodrik (2000). Até aquele momento, a literatura sobre os impactos das reformas focava bastante na questão: “os países com menos barreiras ao comércio internacional crescem mais rápido, considerando controladas outras características?”. Ou seja, se países com menos barreiras comerciais crescem mais em média quando medido pelo volume de comércio exterior. Contudo, para Rodríguez e Rodrik, a pergunta correta é: “o comércio internacional eleva o crescimento da renda per capita?”.

Os modelos anteriores assumiam uma relação entre o aumento do volume de comércio e aumento do crescimento econômico. Que redução de tarifas afeta o volume de comércio é algo óbvio, porém o mesmo não é verdadeiro para nenhuma relação entre comércio e crescimento da renda. Um aumento do volume de comércio é dependente de outras variáveis que não as barreiras ao comércio. Um aumento do volume comercial de uma nação pode não ser influenciado por um aumento da renda interna, mas por causa de um aumento da demanda externa, barreiras comerciais não-tarifárias podem afetar o comércio tanto quanto as tarifas e uma redução de tarifas pode ser feita para beneficiar apenas algumas pessoas dentro da economia nacional; de forma que os efeitos de uma liberalização não se traduzem em aumento da renda per capita.

As pesquisas devem focar sua análise não nos resultados das políticas, mas nas políticas em si. Realizando isso, Rodríguez e Rodrik notaram que o crescimento aclamado anteriormente não é mais observado.

Tarifas e Crescimento Econômico nos Países Reformistas do Consenso. Fonte: Rodríguez e Rodrik (2000). Ao contrário da crença anterior de que menores tarifas gerariam mais crescimento, a pesquisa mostrou que taxa tarifárias baixas de 15–20% estão associadas a menos crescimento do que quando o país aplica taxas mais altas de 50–60%.

Revisando o working paper da pesquisa de Dollar e Kraay, Rodrik (2000) ainda apontou que essa pesquisa apresentava vários critérios de seleção arbitrários que enviesavam seus resultados. Esses viéses são:

— Os autores combinavam uma medida de política econômica (tarifa média) com o resultado da mesma (variação do volume de comércio/PIB). Isso é inapropriado, uma vez que os arquitetos de políticas comerciais não possuem controle sobre o volume de comércio;

— A pesquisa usa diferentes anos-base para o cálculo das mudanças em tarifas e volume comercial;

— Eles excluíram um país globalizado, a Colômbia, da pesquisa por motivos arbitrários;

— Eles incluíram 6 países na lista de globalizados com a justificativa de que eles aviam entrado no GATT/OMC e por isso estavam em processo de liberalização. Contudo, 42 outros países também entraram no GATT/OMC no mesmo período e não foram incluídos e os 6 países incluídos não atendiam os critérios definidos por Dollar e Kraay para serem globalizados; isto é, uma redução de 22% em média em suas tarifas.

Além disso, existia o problema de que Dollar e Kraay incluíram a China e a Índia na lista de países. Em ambos os países, as reformas comerciais de redução de tarifas superior a 22% só ocorreram cerca de uma década após esses países já terem iniciado seu crescimento econômico acelerado. No caso da Índia o erro é ainda mais grave, pois a redução das tarifas foram acompanhadas por uma redução de crescimento.

Redução de Tarifas e Crescimento na Índia. Fonte: Rodrik (2000).


Após essas críticas, o Consenso caiu em descrédito e foi em grande parte abandonado como prescrição de política econômica. Em seu lugar surgiu o novo consenso institucionalista, onde o crescimento econômico seria gerado em longo prazo por reformas institucionais; como melhora do estado de direito e das estruturas políticas (Rodrik et al 2004).

III - RENASCIMENTO:

Todavia, as críticas de Easterly, Rodríguez, Rodrik e outros foram sendo tomadas por outros pesquisadores e novas pesquisas foram feitas para avaliar o impacto das reformas liberalizantes.

Estevadeordal e Taylor (2013) tomaram as críticas metodológicas de Easterly e Rodrik e criaram um novo modelo avaliativo. O método utilizado pelos autores focava a atenção nos inputs sobre os quais incidiam as tarifas (isto é, bens de capital e intermediários). Seguindo os modelos de crescimento econômico (sobretudo o Solow-Swan), os autores teorizaram que a mera redução de tarifas gerais não teria um impacto necessário sobre o crescimento. Contudo, aquelas tarifas que criavam barreiras à entrada de bens de capital teriam um impacto sobre o crescimento, pois reduziriam a disponibilidade de capital dentro de uma economia a um nível abaixo do que seria seu ótimo.

Além disso, eles atualizaram a base de dados com informações recentes sobre os países analisados e ampliaram o período de análise do impacto das políticas. Dessa forma, eles atualizaram a pergunta de Rodríguez e Rodrik para: “o crescimento ocorreu mais rápido nos países que liberalizaram a entrada de bens de capital ou nos que não?”.

Os autores notaram que a liberalização do comércio exterior de bens de capital e intermediários tinha um efeito significativo no crescimento, ao passo que a redução de tarifas de bens de consumo não tinha nenhum. Os países que liberalizaram seu comércio para os primeiros bens em taxa superior a 20% tiveram 1% a mais de crescimento anualmente na renda per capita. Isso pode parecer pouco quando comparado aos efeitos de longo prazo de reformas institucionais. Porém, como colocam os autores, isso gerou uma divergência e, além disso, por acaso haveria outra política praticada nos últimos 15–20 anos que tenha produzido um aumento de 15–20% na renda per capita dos países pobres tão rapidamente?

Divergência do crescimento da renda por trabalhador entre países Liberalizantes e Não-Liberalizantes. Fonte: Estevadeordal e Taylor (2013).

Recentemente Easterly reviu sua posição inicial crítica ao consenso. Segundo ele, no momento que as críticas ao Consenso foram formuladas, os dados ainda eram muito escassos tanto para avaliações positivas quanto negativas. O espaço de tempo entre as avaliações e a implementação das reformas era muito curto.

Além disso, as críticas ao Consenso geralmente envolviam apenas uma dimensão das reformas: a abertura comercial. As recomendações de reforma, contudo, envolviam, além da liberalização comercial, controle inflacionário, desregulamentação, privatizações e ajustes fiscais e nada disso foi avaliado.

Observando os dados dos países subdesenvolvidos da África e América Latina que realizaram as reformas “neoliberais”, Easterly (2019) nota que a maioria deles apresentaram aumento na taxa de crescimento econômico e, sobretudo, uma estabilização de uma série de indicadores econômicos essenciais para o crescimento; como inflação (realizada por meio do controle inflacionário e ajuste fiscais) e premium de uso do mercado negro (a medida de quanto é melhor utilizar a economia informal do que a formal. Geralmente esse premium é reduzido por meio da desregulamentação e privatização).

As estimativas de “décadas perdidas” em consequência das reformas do Consenso, por causa de baixo crescimento econômico, previstas por Rodríguez, Rodrik e o próprio Easterly não se realizaram.

Crescimento, Estabilização Macroeconômica e Reformas na África Sub-Saariana. Fonte: Easterly (2019).

Crescimento, Estabilização Macroeconômica e Reformas na América Latina. Fonte: Easterly(2019).

Chari et al (2020) analisaram os efeitos das políticas de estabilização e liberalização propostas pelo Consenso utilizando uma regressão transversal entre os países que aplicaram as recomendações de reforma e as mantiveram ao longo do tempo. O pressuposto do modelo é que apenas aqueles países que mantiveram as reformas por tempo suficiente para que essas se traduzissem em incrementos de produtividade é que teoricamente alcançariam crescimento segundo o modelo de Solow.

Analisando 38 casos de estabilização inflacionária, os autores notam que o crescimento anual do PIB real após 10 anos da estabilização foi de 3.23% contra os 1.9% do período anterior. Para casos hiperinflacionários (inflação superior a 40%), como o Brasil e a Argentina, a média de crescimento foi de 3.89% contra 1.69%.

No caso da liberalização comercial, analisando 64 casos de abertura, os autores colocam que o crescimento nos países reformistas foi de 4.38% contra 1.72% do período anterior. Desses 64 países, 52 tiveram crescimento pós-liberalização comercial que superou a média de crescimento típica pré-liberalização.

Nos 18 casos de abertura do mercado de capitais, os autores notam que as taxas básicas de juros (a rentabilidade dos títulos públicos dada por taxas de referência como a SELIC) caíram de uma média de 12.7% para 7.1%. Além de oferecer um maior acesso à poupança externa para compensar suas baixas taxas internas, a abertura do mercado de capitais também reduziu a dependência dos países analisados em empréstimos externos para financiar seus déficits fiscais.

Os autores não encontraram nenhuma relação entre as privatizações e o aumento do crescimento. Contudo, eles notam que as privatizações nas economias do Leste Europeu aumentaram significativamente a participação do setor privado em relação ao setor público em comparação com as mesmas ocorridas na América Latina.

Em geral, os países emergentes que realizaram as reformas tiveram uma elevação de taxa de crescimento de 3.3% em média no período pré-reforma para 5.3% pós-reforma; uma taxa bem superior à dos países ricos. É bom notar que essa taxa de crescimento de 5.3% é alta descontando o crescimento chinês. No mesmo período a China apresentou uma taxa de crescimento de 10.1% entre 1980 e 1994 e passou para uma de 9.8% entre 1995 e 2018; logo, ela apresentou uma desaceleração de crescimento e não uma aceleração como observada em outros países.

Crescimento das Economias Emergentes Liberalizantes, tirando a China, (linha azul) e dos Países Desenvolvidos (pontilhado vermelho). Fonte: Chari et al (2020).


REFERÊNCIAS:

— Anusha Chari, Peter Blair Henry, Hector Reyes. “The Baker Hypothesis,” NBER Working Papers 27708, National Bureau of Economic Research, 2020;

— DOLLAR, David. Outward-oriented developing economies really do grow more rapidly: evidence from 95 LDCs, 1976–1985. Economic development and cultural change, v. 40, n. 3, p. 523–544, 1992;

— SACHS, Jeffrey D.; WARNER, Andrew M. Fundamental sources of long-run growth. The American economic review, v. 87, n. 2, p. 184–188, 1997;

— FRANKEL, Jeffrey A.; ROMER, David H. Does Trade cause Growth?. American economic review, v. 89, n. 3, p. 379–399, 1999;

— DOLLAR, David; KRAAY, Aart. Trade, Growth, and Poverty. The Economic Journal, v. 114, n. 493, p. F22-F49, 2004;

— EASTERLY, William. What did Structural Adjustment Adjust?: The association of policies and growth with repeated IMF and World Bank adjustment loans. Journal of development economics, v. 76, n. 1, p. 1–22, 2005;

— RODRIGUEZ, Francisco; RODRIK, Dani. Trade Policy and Economic Growth: a skeptic’s guide to the cross-national evidence. NBER macroeconomics annual, v. 15, p. 261–325, 2000;

— RODRIK, Dani. Comments on ‘Trade, Growth, and Poverty’by D. Dollar and A. Kraay. Harvard University, Cambridge, MA, 2000;

— RODRIK, Dani; SUBRAMANIAN, Arvind; TREBBI, Francesco. Institutions Rule: the primacy of institutions over geography and integration in economic development. Journal of economic growth, v. 9, n. 2, p. 131–165, 2004;

— ESTEVADEORDAL, Antoni; TAYLOR, Alan M. Is the Washington consensus Dead? Growth, openness, and the great liberalization, 1970s–2000s. Review of Economics and Statistics, v. 95, n. 5, p. 1669–1690, 2013;

--  EASTERLY, William. In Search of Reforms for Growth: New Stylized Facts on Policy and Growth Outcomes. National Bureau of Economic Research, Inc, 2019.

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Sávio Coelho é graduando em economia e escritor nas páginas Evolucionários e Visão Econômica e no site Terraço Econômico. Suas áreas de interesse são Desenvolvimento Econômico e Law & Economics, é um entusiasta de Charter Cities e estuda temas relacionados com a Ásia Oriental.

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