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outubro 10, 2020

Para que e para quem serve o liberalismo? Penso que muitas pessoas aqui no Brasil devem associar o liberalismo com preocupações tipicamente de homens brancos heterossexuais de classe média, que giram em torno de impostos e economia, e alguns tópicos mais. Dessa forma, não seria nada “popular”.

Há uma razão neste estereótipo. Exemplo: compare quantas vezes liberais e a esquerda tradicional falam sobre, de um lado, roubo e corte de impostos, e, de outro lado, em estupro, cultura de estupro e prostituição infantil. A esquerda tradicional fala muito mais deste último do que o primeiro grupo, sendo que este último é um tema de extrema relevância para o bem-estar de muitas mulheres e crianças em situação de risco.

Mas o liberalismo, como filosofia política, é muito mais amplo do que preocupações de homens brancos heterossexuais da classe média. Eu acredito em um liberalismo inclusivo, que agrega preocupações que são pertinentes para muito mais pessoas. Alguns exemplos:

a) Em relação aos trabalhadores, temos o tópico da liberdade sindical. Por conta de uma normatização que vem desde o tempo da ditadura Vargas, os trabalhadores brasileiros não podem livremente se associar ao sindicato de sua escolha, estando restritos a se filiarem ao sindicato já existente ou não serem sindicalizados. Mas os trabalhadores brasileiros poderiam ter sua situação melhorada se a liberdade para formar associações e para negociar coletivamente fosse aumentada, bem como de formar sindicatos fora do modelo getulista. A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) promove a liberdade sindical.

b) Em relação às mulheres, liberais devem condenar o estupro, a cultura de estupro, a prostituição infantil e/ou a prostituição forçada de mulheres adultas por meio de redes de tráfico humano, a violência contra a mulher em geral, o assédio sexual. É importante pensar e questionar de que modo as instituições legais podem ser reformuladas de modo a combater mais eficientemente esses graves problemas que afetam mulheres e meninas e que limitam suas opções, sua liberdade real. Imagine quanto mais liberdade mulheres e meninas desfrutariam se tivéssemos pelo menos 24 horas de trégua onde não houvesse estupro. Uma perspectiva feminista é importante aqui: existe uma sistemática de violência descentralizada que cria e/ou reforça uma ordem espontânea maléfica do “patriarcado”, e liberais devem se opor à violência e à limitação coerciva da liberdade que vem de agentes privados, não apenas a violência organizada e explícita do Estado.

c) Em relação às questões LGBT, deve-se defender o direito ao casamento homossexual como uma questão de igualdade básica e de liberdade elementar e, em relação aos transexuais, deve-se reconhecer o direito à autodeterminação da identidade de gênero. Todos devem ser livres para determinar seu próprio gênero, sem precisar da autorização governamental. Essa liberdade pode não ser importante para o contexto da maioria das pessoas, mas é de suma importância para as pessoas trans. Além disso, iniciativas contrárias ao preconceito contra transexuais e homossexuais, inclusive no mercado de trabalho, devem ser apoiadas. Uma sociedade mais aberta é muito mais favorável ao exercício da liberdade por todas as pessoas. O Estado não é necessariamente o meio mais adequado para acabar com a discriminação, mas é liberal ser contrário a uma sociedade preconceituosa, e favorável à sociedade aberta e mais cosmopolita.

e) Em relação aos indígenas e quilombolas, suas terras devem ser demarcadas e/ou regularizadas. Isso é uma causa liberal básica: proteção à propriedade da terra por aqueles que sempre a utilizaram e/ou trabalharam nela. E veja que isso não significa “distorcer” o sentido que esses grupos conferem à propriedade da terra. A atribuição do direito de propriedade deve levar em conta a dimensão comunal própria do grupo, e inclusive sabe-se que a gestão dos comuns pode ser feita de modo descentralizado por meio de regras informais em pequenos grupos. De forma semelhante, guardando suas próprias peculiaridades, os ribeirinhos e extrativistas da Amazônia também devem ter seus direitos de propriedade e de uso da floresta resguardados, e a capacidade de se inserir em mercados que os beneficiem. Aliás, a regularização da propriedade é uma pauta que serve mesmo para proteger pessoas pobres que moram em muitas cidades brasileiras.

f) Em relação às pessoas de personalidade mais ativista, que querem fazer algo “pelo social”, é preciso lembrar que existem alternativas interessantes. Exemplos: 1 – empreendedorismo social; 2 – empreendedorismo social radical; 3 – iniciativas em prol do cooperativismo como modelo de organização do trabalho; 4 – ambientalismo baseado em incentivos; 5 – altruísmo eficaz. É significativo que, naquele polêmico caso da proibição das empresas juniores na UFSC, um auto-identificado socialista reconheceu a possibilidade de usar o empreendedorismo para promover avanço social (o que coloca-o próximo de uma corrente de livre mercado chamada left-libertarianism e talvez  mesmo um ativismo libertário associado, o agorismo ou contra-economia):

socialismo e empreendedorismo

g) Como o print menciona a questão do empreendedorismo como alternativa ao capitalismo (corporativista), sabemos que uma das maiores injustiças sociais de nosso país é o fato de que o grande capital é bastante protegido pelo governo, até mesmo subsidiado por este via financiamento pelo BNDES para a criação de multinacionais brasileiras, em uma bruta redistribuição para o topo, enquanto muitos pequenos empreendedores enfrentam dificuldades sérias para abrir seus negócios formalmente, arcar com os tributos e custos trabalhistas não negociáveis, entre outros pontos. Destaco aqui a situação dos trabalhadores ambulantes, que precisam de autorização das prefeituras, em geral facilmente revogável. É necessário mudar isso, criando um marco nacional para legalizar o trabalho ambulante e proteger o direito dessas pessoas de investirem e trabalharem livremente, sem o risco de terem seu investimento confiscado pela polícia.

Com esses exemplos, acho que já dá para entender a fibra de um liberalismo inclusivo. Mas é importante notar que isso não é tanto algo novo, como uma renovação: o liberalismo clássico, originalmente, é um movimento em prol da libertação humana. Como Roderick Long pontuou:

“Eu acredito que estamos vendo o começo de um ressurgimento, dentro do movimento libertário, do libertarismo igualitário, compassivo, ‘sensível’ (bleeding-heart), que caracterizou o movimento libertário durante a maior parte de sua história, desde os Levellers do século XVII até os anarquistas individualistas do século XIX. Quando nossos oponentes hoje em dia nos acusam de elitismo e falta de compaixão, eles estão em geral errados(…), mas há nisso um desconfortável fundo de verdade. Muitos libertários neste século foram, na minha opinião, insuficientemente sensíveis às perspectivas dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, das minorias. Mas eu vejo isso como uma aberração histórica (…) essas influências distorsivas estão, eu penso, começando a desaparecer, e o dia de um libertarismo ‘mais sensível, mais gentil’, mais consistente com suas raízes históricas, está começando a alvorecer.”

Ao contrário do que muitos pensam, o liberalismo clássico no século XIX foi oposição durante a maior parte do tempo, e poderia mesmo ser caracterizado como de esquerda, até porque alguns dos socialistas à época eram liberais e/ou defensores do livre mercado. O chamado “socialismo utópico” poderia, como acertadamente colocou o Diogo Costa, ser renomeado como “socialismo experimental”, que era (e é mesmo hoje) próximo à atitude liberal clássica em relação à liberdade de associação, troca e produção.

Qual era essa atitude liberal clássica? Uma atitude em prol da libertação real da humanidade. Perceba: liberais são céticos em relação à eficácia do governo e soluções coercivas em geral, de modo que eles não acreditavam que bastava estar escrito na lei “todo mundo é livre e igual perante a lei” para que isso fosse verdade. O que os liberais clássicos acreditavam é que, por meio da dinâmica de troca voluntária e livre associação operando ao longo do tempo, as pessoas seriam libertadas da pobreza e da exploração política.

Para pessoas como Gustave de Molinari, os maiores inimigos disso no longo prazo não eram os trabalhadores ou os mais pobres, mas sim, adivinhem: os industriais, os ricos, em especial os grandes e bem-conectados politicamente. Para este liberal clássico, as novas associações entre indústria e governo levaram à intensa redistribuição para as novas classes ‘médias’ burguesas na Europa, e era o papel reacionário desses interesses econômicos/políticos que era preciso vencer e que o levou a escrever sua “Carta aos Socialistas”. William Graham Sumner sempre reiterava: a democracia americana estava sendo capturada pela plutocracia, ameaça real em relação ao qual eram necessárias novas garantias constitucionais.

A teoria da luta de classes tem raízes liberais, como o próprio Marx reconheceu, e hoje em dia temos à disposição uma teoria científica que pode servir como uma teoria de luta de classes mais sofisticada, mas que, ainda assim, bate bem com o que aqueles liberais do século XIX já falavam. Essa teoria mais recente é a economia da escolha pública, que mostra como interesses especiais organizados podem servir-se da capacidade redistributiva do aparato estatal para beneficiar-se à custa de interesses gerais/difusos desorganizados, inclusive por meio da manipulação e das brechas da própria democracia.

Assim, a verdadeira alma do liberalismo clássico tem a ver com libertação humana. Como James Buchanan bem pontuou, essa alma se caracteriza por uma ausência de desejo de exercer poder sobre os outros, que se coaduna com o ideal de uma ordem de mercado ampliada em que cada pessoa terá opção de saída sem custos de cada mercado, de modo que todo poder discricionário, de alguém em relação àqueles com quem faz trocas, deixaria de existir e os indivíduos estarão completamente livres.

Pensar isto seriamente envolve ter uma ideia de onde chegar, e, assim, um paradigma de justiça social é relevante para identificar uma sociedade cujas instituições legais beneficiem a todos, como os libertários bleeding heart defendem. Para John Tomasi, justiça social é adotar instituições designadas a maximizar a parcela da riqueza controlada pelos trabalhadores de menor remuneração. Para Kevin Vallier, justiça social é adotar instituições que conduzam ao crescimento econômico, oportunidades crescentes e um mínimo de acesso a bens básicos abaixo do qual ninguém possa cair. Parte-se de um profundo humanitarismo, como pontuou David Schmidtz:

“De um modo geral, o humanitarismo é um ponto de vista segundo o qual devemos cuidar daqueles que sofrem, não apenas, nem sequer principalmente, para nos tornamos mais iguais, mas simplesmente porque o sofrimento é ruim. O humanitarismo se preocupa com o bem-estar das pessoas, enquanto o igualitarismo se interessa pelo bem-estar das pessoas relativamente ao das outras.” (p. 169)

E:

“Existe espaço, entretanto, dentro de uma teoria genuinamente liberal, para um igualitarismo com vistas ao melhoramento (e não ao nivelamento) das perspectivas gerais de vida – à remoção de barreiras a fim de que as pessoas tenham condições de melhorar sua própria situação, não porque as barreiras permitem o entricheiramento das desigualdades, mas simplesmente porque barreiras são barreiras.” (p. 176)

Logo, é essa a cara que eu quero ver para o liberalismo brasileiro: inclusivo, libertador e humanitário.

Postado originalmente aqui.

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2 comments on “Por um liberalismo inclusivo, libertador e humanitário”

  1. Parabéns pelo texto. Isso sim é o liberalismo e o caminho mais lógico para uma sociedade mais justa. Peço que revisem os links porque alguns não estão funcionando.

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