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setembro 29, 2020

Existem correlações de crenças em assuntos tão distintos que evidenciam que, muitas vezes, a justificativa formal da crença é meramente uma racionalização ad hoc para esconder o verdadeiro motivo que leva a pessoa a acreditar nela. A seguir, dou três exemplos do que quero dizer e faço algumas conjecturas para explicar os motivos dessas correlações.

1. A correlação entre libertarianismo e escola austríaca

O libertarianismo é uma filosofia política minimalista que apenas descreve as condições nas quais o uso da violência é eticamente justificável. Nessa filosofia minimalista, mas também simplista, seria justificável apenas para se defender de violência prévia contra a sua propriedade.

Já a escola austríaca é uma escola de economia que diz, basicamente, que a economia funciona melhor com pouca ou nenhuma interferência do estado e que é difícil, ou até mesmo impossível, criar previsões econômicas baseadas em comportamento passado quantificável dos indivíduos.

Ora, então o libertarianismo não tem absolutamente nada a ver, em termos teóricos, com a escola austríaca, já que o primeiro é uma filosofia política e a segunda é uma escola de pensamento econômico. Ou seja, é muito bem possível, a princípio, existir um libertário keynesiano ou um austríaco rawlsiano. Mas não, pelo menos 95% dos libertários são austríacos e eu diria que mais de 70% dos austríacos são libertários. Isso dá indícios de que ou o libertário só é austríaco porque o austrianismo é meramente uma ferramenta a serviço do libertarianismo ou vice-versa, ou existe um fator escondido que explica a adesão do libertário-austríaco a ambos.

Precisa-se hipotetizar sobre a origem dessa correlação, já que ela é tão patente. Para mim é relativamente fácil fazer isso, pois já fui um austríaco-libertário e estou bem familiarizado com os mecanismos psicológicos e com o desenvolvimento histórico intelectual por trás dessa crença dupla.

A figura responsável por associar o libertarianismo à escola austríaca se chama Murray Rothbard. Rothbard tinha uma aversão extrema, quiçá doentia, ao Estado. Para sua filosofia política convencer os demais, não bastava a mera ética deontológica-abstrata do libertarianismo: ele precisava de uma justificativa utilitarista-materialista que respaldasse tal filosofia. Ele encontrou essa justificativa nos escritos de Ludwig von Mises, na forma de um método de abordar as ciências sociais que Mises cunhou de praxeologia. Para Mises, a aplicação dessa metodologia à economia levava à conclusão de que somente um Estado mínimo maximizaria o bem-estar social. Mediante um pouco de malabarismo retórico, Rothbard adaptou essa teoria de Mises e concluiu que apenas a ausência total do estado maximiza o bem-estar social (fez isso em sua obra "Man, Economy, and State"). A praxeologia caiu como uma luva para Rothbard. Ora, não seria uma dádiva dos céus que a única filosofia política correta do ponto de vista ético é também aquela que, se aplicada, leva à maximização do ganho material da sociedade? Certamente seria, caso essa associação não fosse uma forçação de barra bem mixuruca feita pela mente doentia de Rothbard.

A partir daí surgiu a relação umbilical entre libertarianismo e austrianismo. A escola austríaca é meramente uma ferramenta ad hoc ao libertarianismo.

Existem duas vias para cair na rede libertário-austríaca: (i) a via econômica; (ii) a via social/cultural. Pela via econômica, o indivíduo completamente leigo em economia começa a se interessar pelo assunto. Não tendo noção da forma correta de ser um auto-didata, que é através do estudo dos livros-textos consagrados na área, ele acaba "estudando" pelo site Mises Brasil ou pelo canal Ideias Radicais. Acaba, então, sendo doutrinado na escola austríaca.

Uma boa notícia é que essa via está cada vez mais estreita, isto é, cada vez menos jovens estão adentrando nas fileiras austríaco-libertárias por essa via, uma vez que hoje existem vários sites e materiais bacanas que ensinam economia mainstream circulando na internet (como por exemplo o site Economia Mainstream), diferente de meados de 2012-13, em que o Mises Brasil tinha quase que o monopólio do ensino de economia pela internet para leigos.

Essa via é a via “limpinha”, digamos assim. O indivíduo acaba caindo na rede austríaca-libertária por um motivo em essência virtuoso: a sede pelo aprendizado. Por isso a maioria dos indivíduos que entram por essa via saem rapidamente dela ao perceber que foram enganados, quando se deparam com a economia mainstream/ortodoxa. Mas existe uma segunda via, a via suja, feia, que é a via social/cultural. Existe cada vez mais uma parcela expressiva de jovens que entra em contato com o libertarianismo-austrianismo através de chans e fóruns onde reinam o machismo, o racismo e a homofobia. Esses indivíduos são atraídos pelo libertarianismo-austrianismo principalmente por causa de duas figuras: Hans-Hermann Hoppe e Stefan Molyneux. Hoppe é conhecido por dar justificativas teóricas aparentemente bem fundamentadas para a segregação e Molyneux é um divulgador de pseudociência com uma retórica extremamente afiada. Ambos são abertamente machistas, racistas e homofóbicos, além de serem libertários. Então o jovenzinho preconceituoso de chan, revoltado com o politicamente correto da sociedade, fica encantado com essas duas figuras, e acaba abraçando o libertarianismo e, por transitividade, o austrianismo.

Não é coincidência Hoppe e Molyneux serem ambos preconceituosos & libertários: a maioria dos intelectuais libertários o são. Há uma conexão psicológica entre o preconceito e o libertarianismo. A filosofia libertária é canção de ninar aos ouvidos do indivíduo que já é preconceituoso de antemão (seja por predisposição psicológica, seja por convívio social ou criação). O libertarianismo diz que, desde que você utilize de sua propriedade para tanto, ser racista não tem problema nenhum do ponto de vista ético, apesar de poder ser condenável do ponto de vista moral (libertários gostam de fazer uma distinção entre ética e moral). Ser machista, homofóbico e ter preconceito religioso, tampouco.

Imagine então que bom que não deve ser para o indivíduo que é racista se deparar com uma justificativa intelectual para a aceitação ética da expressão do seu racismo? Deve ser algo libertador.

Esse tipo de comentário é rotineiro no maior grupo de libertarianismo do Brasil.

Assim se forma o libertário-austríaco médio da internet. Ou ele era um interessado em estudar economia, mas não obstante ingênuo, e acabou sendo tragado pelo site Instituto Mises. Dali, travou contato com as ideias libertárias. Ou ele era um politicamente incorretinho do youtube e dos chans, e acabou conhecendo supostos intelectuais libertários que davam, na mentalidade dele, as justificativas teóricas para a expressão dos seus preconceitos. Dali, travou contato com a escola austríaca.

O resto é explicado pela vontade insaciável do primata humano de pertencer a um grupo. O austríaco que não tinha dentro de si o preconceito acaba se tornando um preconceituoso, pois um pré-requisito para fazer parte do clã austríaco-libertário na internet é odiar minorias. O libertário que não tinha o menor interesse em economia até então se torna um defensor fervoroso da escola austríaca, pois o crachá austríaco-libertário só é obtido com a adesão completa às ideias da tribo. Assim nasce um seguidor de Paulo Kogos.

2. A correlação entre conservadorismo e cristianismo

O conservadorismo é uma ideologia (sim, caro conservador que nega isso, é uma ideologia), talvez até uma filosofia política, que prega o ceticismo político e a cautela quanto a mudanças bruscas no arranjo social. Já o cristianismo é uma religião.

Por que a interseção entre essas crenças é tão grande nos conservadores-cristãos, sendo que ambas estão em campos tão distintos do saber humano (uma no campo da filosofia política e outra no da religião)?

Jonathan Haidt, um renomado psicólogo social, joga um pouco de luz a essa questão. Juntamente com seu colega Craig Joseph, Haidt, estudando um amplo espectro de disciplinas (desde antropologia até psicologia evolutiva), definiu quais são as cinco fundações básicas da moralidade presentes em todos os seres humanos. Essas fundações morais são: afetividade (harm)*, justiça/reciprocidade (fairness), lealdade (ingroup), autoridade/respeito (authority) e pureza/santidade (purity).

* Nota: na verdade, "harm" significa algo como "dano/ofensa", não "afetividade", que é basicamente seu oposto. Eu coloquei "afetividade" para denotar essa fundação da moralidade pois, acredito, pelo menos em português, é mais fácil de entender com essa palavra ao que tal fundação diz respeito: diz respeito à busca pela minimização do dano causado a alguém (minimização do "harm"). Então, a equivalência disso seria a busca pela maximização da afetividade gerada a alguém.

Em uma série de pesquisas em vários países, Haidt concluiu que progressistas valorizam muito a afetividade e a justiça/reciprocidade, mas não valorizam como fundações morais a lealdade, a autoridade/respeito e a pureza/santidade. Já conservadores valorizam as cinco fundações morais na mesma proporção, apesar de valorizarem a afetividade e a justiça/reciprocidade em um grau um pouco menor do que os progressistas. A imagem abaixo mostra isso.

Pesquisa de Haidt para os EUA com cerca de 23 mil indivíduos.

O elevado grau de aceitação da autoridade, lealdade e pureza entre os conservadores pode ajudar a explicar porque o cristianismo é muito presente no meio conservador. A valorização da autoridade como fundação moral favorece a submissão do fiel ao líder espiritual, que no caso dos cristãos é o padre. A valorização da lealdade pelo conservador impede que ele ouse se aventurar por caminhos doutrinários diferentes daquele em que ele foi iniciado. Por sua vez, a pureza como objeto de admiração pelos conservadores representa a sublimação semiológica do sagrado em detrimento do carnal, onipresente na religião cristã.

Outros estudos psicológicos mostram que conservadores são menos tolerantes a ambiguidade, exibem maior necessidade pessoal por ordem e hierarquia, buscam evitar as incertezas, são menos abertos a novas experiências, têm mais medo da morte, da ameaça e da perda, e veem o mundo como um lugar perigoso (para um compêndio desses estudos, veja esse artigo).

Bom, a partir do mapeamento desses traços psicológicos comuns aos conservadores dá para se ter uma noção do porquê a maioria deles são também cristãos. Conservadores no Brasil, em geral, nascem em uma família cristã. Como eles são naturalmente menos abertos a novas experiências e menos tolerantes a ambiguidade, eles tendem a não questionar os dogmas religiosos que lhes foram incutidos em sua criação. Como eles possuem um anseio por ordem e hierarquia, a congregação religiosa satisfaz este anseio, pois nela se encontra um conjunto rígido de preceitos morais que devem ser seguidos, um conjunto concatenado de explicações a respeito do funcionamento do universo e um conjunto claro de castas espirituais. Ou seja, na religião cristã institucionalizada se encontra aquilo que os conservadores tanto almejam – ordem e hierarquia.

Talvez isso explique a relação amplamente observada entre cristianismo e conservadorismo. Certas características psicológicas fazem certos indivíduos aderirem tanto ao cristianismo quanto ao conservadorismo. Passemos para o próximo exemplo.

3. A correlação entre progressismo e defesa da intervenção do Estado na economia

Aqui também a interseção formal entre os dois campos é nula. Progressismo é uma ideologia (ou, poderíamos até dizer, um estado de espírito), que prega a aceitação da mudança social, com ênfase naquelas mudanças que exaltam a liberdade de expressão da vontade humana; já a defesa da intervenção estatal é um posicionamento que, aliado a uma certa visão de mundo, pressupõe conhecimento técnico do assunto. Não obstante, a maioria dos progressistas defendem o intervencionismo estatal e a maioria daqueles que defendem o intervencionismo estatal são progressistas. A princípio essa correlação é um enigma. Vamos tentar decifrá-lo.

Uma pista já foi dada na discussão anterior: foi visto que os progressistas, em geral, valorizam muito a justiça e a afetividade. Agora junte isso à doutrinação (na falta de palavra melhor) feita pelos professores das escolas, sobretudo nas matérias de história e geografia, que incutem na cabeça dos adolescentes que o capitalismo é malvadão e o socialismo é bonzinho, sem fazer qualquer discussão mais aprofundada do tema.

Ora, se o capitalismo é explorador e vil, eu, como progressista que sou, vou ser contra o capitalismo, pois defendo a justiça e a afetividade e o capitalismo representa o oposto disso. Vou defender o máximo da intervenção do Estado na economia para proteger os explorados. Vou ser, efetivamente, um socialista.

Exemplo de doutrinação escolar.

Os professores que fazem a doutrinação não discutem questões mais aprofundadas. Não mostram que foi graças à abertura ao comércio internacional e à adoção de práticas capitalistas de produção promovida pelos países pobres que bilhões de pessoas conseguiram sair da mais abjeta pobreza. Também não mostram que são justamente os países mais capitalistas aqueles onde há maior liberdade de expressão, sexual e de associação; onde a imprensa é livre; onde há mais democracia; onde há mais liberdade religiosa e assim por diante. Também não mostram, os professores, as mazelas do socialismo. Não mostram que o socialismo, ao longo da história, só pôde ser implantado através da opressão e da absoluta perseguição aos dissidentes. Também não mostram que as sociedades que centralizaram os meios de produção na mão de um único órgão central sofreram com os flagelos da fome e da miséria.

Alguns, em períodos posteriores da vida, quando estudam economia e história por fontes menos enviesadas, acabam deixando de ser socialistas – não obstante permanecem sendo progressistas, pois o progressismo é um traço psicológico. Esse foi o meu caso.

Conclusão

Esses foram apenas alguns dos exemplos de associações entre crenças que não possuem uma conexão formal, mas sim social/psicológica. Podemos citar ainda outras associações, como a que existe entre liberalismo e utilitarismo.

O que devemos fazer é perceber que estamos submersos em grupos tribais que nos obrigam a abraçar um conjunto restrito e irrevogável de crenças se quisermos fazer parte desses grupos. Precisamos estar conscientes de que nossas crenças não são independentes entre si, mas sim formam uma teia onde muitos elos só existem porque outros elos já existiam e alimentaram a formação dos elos subsequentes.

Por fim, deixo um exercício ao leitor corajoso que chegou até aqui: quais crenças você possui que, apesar de não possuírem relação formal e necessária, possuem uma relação meramente por questões sociais e/ou psicológicas?

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2 comments on “Correlação entre crenças: Origens e exemplos”

  1. Apesar de eu acha que o pessoal da george mason university(Peter boetkke é Peter leeson,chistopher coyne,Lawrence white é Virgil storr ) é outros como Nicolai foss,jeffery mcmullen,richard langlois,Maria minniti é bruce caldwell que sao autores que conversa com o mainstream com autores como james buchanan,Gary berker,Douglas north é outros autores mainstream modernos,além de eles próprios estarem influenciando o mainstream academico atual nas mais diversas areas.
    Tenho que concordar que muitos ancaps é austríacos da internet
    São muitos rasos muitos só viram videos dos ideias radicais ou o mises brasil é leram quase nenhum artigo academico seja artigo academico ortodoxo ou heterodoxo
    É também vou concordar que muitas pessoas são preconceituosas no meio libertario por causas de influência hopeanas

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