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setembro 26, 2020

A postura de Hayek a cerca do declínio do liberalismo no ocidente a partir de 1870 é clara: Foi fruto do dogmatismo daqueles que arrogavam pra si a alcunha de liberais. A pouca disposição dos liberais em reconhecer que o governo tinha um papel positivo (isso mesmo) na manutenção de uma economia de mercado eficiente, quando confrontada com a realidade, fez desmoronar toda a doutrina perante os olhos dos intelectuais e do público leigo na época.

Dessa desmoralização do ideário liberal que ganham força até mesmo propostas de mundo antiliberais (fascismo, nazismo, comunismo), as quais dão origem à face mais obscura do século XX. Pintam por aí a imagem de Hayek como alguém que defendia o minarquismo absoluto em que cabe ao Estado apenas garantir propriedade. Isso é mentira. Na verdade, pra ele isso seria um “conjunto primitivo de regras fixas e imutáveis” que está fadado a fracassar. Hayek era claro em defender o permanente aperfeiçoamento das instituições de modo a permitir que a concorrência gere os melhores frutos possíveis em uma economia de mercado livre e eficiente.

Segue abaixo um trecho do Hayek falando exatamente isso.

“Os princípios básicos do liberalismo não contêm nenhum elemento que o faça um credo estacionário, nenhuma regra fixa e imutável. O princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações. Há, em particular, enorme diferença entre criar deliberadamente um sistema no qual a concorrência produza os maiores benefícios possíveis, e aceitar passivamente as instituições tais como elas são. Talvez nada tenha sido mais prejudicial à causa liberal do que a obstinada insistência de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, sobretudo o princípio do laissez-faire. Contudo, de certa maneira, essa insistência era necessária e inevitável. Diante dos inumeráveis interesses a demonstrar que certas medidas trariam benefícios óbvios e imediatos a alguns, ao passo que o mal por elas causado era muito mais indireto e difícil de perceber, apenas regras fixas e imutáveis teriam sido eficazes. E como se firmara uma forte convicção de que era imprescindível haver liberdade na área industrial, a tentação de apresentá-la como uma regra sem exceções foi grande demais para ser evitada.

No entanto, essa atitude assumida por muitos vulgarizadores da doutrina liberal tornava quase inevitável que, uma vez abalados alguns de seus pontos, logo toda ela desmoronasse. Tal posição enfraqueceu-se ainda mais devido ao progresso necessariamente lento de uma política que visava à gradativa melhoria do arcabouço institucional de uma sociedade livre. Esse progresso dependia da nossa maior compreensão das forças sociais e das condições mais favoráveis ao seu bom funcionamento. Como a tarefa era auxiliar e, onde fosse preciso, suplementar a ação de tais forças, o primeiro requisito era compreendê-las. A atitude do liberal para com a sociedade é semelhante à do jardineiro que cuida de uma planta e que, a fim de criar as condições mais favoráveis ao seu crescimento, deve conhecer tudo o que for possível a respeito da estrutura e das funções dessa planta.

Nenhum espírito sensato teria duvidado de que as regras primitivas nas quais foram expressos os princípios da política econômica do século XIX eram apenas o começo, de que ainda tínhamos muito a aprender e de que havia ainda imensas possibilidades de progresso no caminho que vínhamos seguindo. Mas esse progresso só seria alcançado à medida que conquistássemos um crescente domínio intelectual das forças que teríamos de empregar. Muitas eram as tarefas evidentes, como o aperfeiçoamento do sistema monetário e a prevenção ou o controle do monopólio, e eram ainda mais numerosas as tarefas menores, mas nem por isso menos importantes, em outros campos em que o governo sem dúvida possuía enormes poderes para o bem e para o mal; tudo levava a esperar que, com uma melhor compreensão dos problemas, algum dia teríamos condições de empregar com êxito esses poderes.

Mas se o avanço rumo ao que costumamos chamar ação “positiva” não podia deixar de ser lento, e se, para aperfeiçoar-se de imediato, o liberalismo tinha de valer-se em grande parte do aumento gradual da riqueza trazida pela liberdade, precisaria por outro lado combater constantemente as propostas políticas antiliberais que ameaçavam esse avanço. O liberalismo veio a ser considerado uma filosofia “negativa” porque não podia oferecer a cada indivíduo mais do que uma participação no progresso comum — progresso cada vez mais considerado natural e inevitável e não mais encarado como decorrente da política de liberdade. Pode-se mesmo dizer que o próprio sucesso do liberalismo tornou-se a causa do seu declínio. Devido ao êxito já alcançado, o homem se foi mostrando cada vez menos disposto a tolerar os males ainda existentes, que a essa altura lhe pareciam insuportáveis e desnecessários.

A impaciência crescente em face do lento progresso da política liberal, a justa irritação com aqueles que empregavam a fraseologia liberal em defesa de privilégios antissociais, e a ilimitada ambição aparentemente justificada pela melhoria material já conquistada fizeram com que, ao aproximar-se o final do século, a crença nos princípios básicos do liberalismo fosse aos poucos abandonada. Tudo o que fora conquistado passou a ser considerado um bem estável, indestrutível e definitivo. Os olhos do povo fixaram-se em novas reivindicações, cuja rápida satisfação parecia obstada pelo apego aos velhos princípios. Passou-se a acreditar cada vez mais que não se poderia esperar maior progresso dentro das velhas diretrizes e da estrutura geral que permitira os avanços anteriores, mas apenas mediante uma completa reestruturação da sociedade. Já não se tratava de ampliar ou melhorar o mecanismo existente, mas de descartá-lo e substituí-lo por outro. E à medida que as esperanças da nova geração se voltavam para algo inteiramente novo, a compreensão e o interesse pelo funcionamento da sociedade existente sofreram brusco declínio. Com esse declínio, declinou também a nossa consciência de tudo o que dependia da existência do sistema liberal.”

F.A. Hayek, O caminho da servidão, capítulo I.

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