Um dos desafios que os neoliberais modernos enfrentam é lidar com as diversas definições de neoliberalismo que seus críticos usam. O neoliberalismo é a ideologia da ortodoxia de livre mercado da direita? É a ideologia dos liberais moderados, os que levaram líderes como Tony Blair e Bill Clinton ao poder? Ou é a causa sinistra dos males mais profundos da sociedade, como a queda na taxa de natalidade em todo o mundo desenvolvido, a epidemia de opióides nos Estados Unidos e a pandemia de coronavírus?
O problema é que, até recentemente, havia muito poucos que se autoidentificavam como neoliberais para dar uma definição positiva do neoliberalismo. Portanto, o neoliberalismo tornou-se uma ideologia definida apenas por seus críticos, distanciando seu significado da visão de seus pensadores originais há quase um século. Rastreando o neoliberalismo de volta às suas raízes, encontramos uma origem que difere totalmente da definição pejorativa de hoje.
Na década de 1930, o liberalismo estava sob ataque. O mundo estava lidando com as consequências da Primeira Guerra Mundial e os efeitos da Grande Depressão. Tanto o socialismo quanto o fascismo estavam ganhando terreno. Compreendendo que algo precisava ser feito, os intelectuais da época estavam separadamente chegando à conclusão de que algo devia estar errado com a ideologia dominante da época: o liberalismo clássico.
O liberalismo clássico, de modo geral, adotava a visão de que os direitos e as liberdades individuais eram prioritários acima de tudo, e que a sociedade, livre de intervenções, se organizaria naturalmente em uma economia de mercado, maximizando o bem-estar geral. Alexander Rüstow, um sociólogo alemão, escreveu na época que, sob o liberalismo clássico, os mercados livres eram considerados "como leis naturais e divinas, às quais eram conferidas a mesma dignidade e até a mesma universalidade que as da matemática". Mas, após a Grande Depressão, os intelectuais começaram a questionar a ideia de que a economia de mercado incorporava uma "ordem natural". Em vez disso, eles sugeriram que a economia de mercado clássica é um produto humano, especialmente o sistema legal e que, se isso fosse verdade, a economia de mercado não seria simplesmente a ordem natural da sociedade. Em vez disso, o livre mercado seria o produto de um sistema legal adotado arbitrariamente pela sociedade. Isso significa que o mercado livre não é natural.
Quando ficou claro que o público não estava satisfeito com o liberalismo clássico, particularmente sua abordagem laissez-faire para os assuntos econômicos, os intelectuais concluíram que, a menos que o liberalismo fosse reformado para aumentar a intervenção do Estado, ele entraria em colapso e daria lugar ao totalitarismo. Rüstow foi um líder desse movimento. Um ex-socialista desiludido após a ascensão da União Soviética, Rüstow queria traçar uma “Terceira Via” entre o laissez-faire e o socialismo.
A concepção de Rüstow de uma ideologia da terceira via é semelhante valores que os neoliberais modernos defendem. Em seu discurso, intitulado Economia Livre, Estado Forte, que seria considerado o documento fundador do neoliberalismo, Rüstow condenava a intervenção governamental excessiva no mercado, mas ao mesmo tempo propunha que o Estado estabelecesse e fizesse cumprir as regras da economia. Ele argumentava que a sociedade deveria buscar maximizar a liberdade, o que nem o liberalismo clássico nem o socialismo eram capazes de fazer. Suas recomendações refletem essa atitude. Ele acreditava que o estado deveria promover empregos bem remunerados. Mas o salário mínimo, ele disse, interferia no mercado muito fortemente. Em vez disso, ele propôs subsídios salariais financiados por meio da receita tributária, que poderia ter o mesmo efeito que o salário mínimo sem tanta distorção no mercado. Ele pediu o fim do protecionismo, da captura regulatória e dos subsídios corporativos. Em escritos posteriores, ele também propôs várias políticas que se distanciam muito da concepção pejorativa do neoliberalismo: a proibição da publicidade pois apenas as grandes empresas podiam pagá-la, um imposto sobre o tamanho das empresas para promover a competição, e nacionalização de todas as empresas de serviços públicos e fabricantes de armas.
O projeto neoliberal de Rüstow foi acompanhado pelo jornalista americano Walter Lippmann, que formalizou o crescente consenso para reformar o liberalismo em seu livro The Good Society. Nele, ele critica amplamente o coletivismo, particularmente o socialismo e o fascismo, mas também a economia laissez-faire e o New Deal. A liberdade efetiva na esfera econômica, disse, não era possível sem o envolvimento do governo. Ele propôs a criação de autoridades de saúde pública, a proibição de monopólios, aumento do imposto de renda, educação pública e muito mais.
O livro de Lippmann se tornou um sucesso e, em 1938, o Colóquio Walter Lippmann foi organizado em Paris para discutir suas ideias. Vinte e cinco intelectuais de todo o mundo estiveram presentes, incluindo Rüstow, Hayek, Ludwig von Mises e o próprio Lippmann. Mas a reunião não era apenas um clube do livro. Em vez disso, o tema do colóquio tornou-se a necessidade de apresentar uma visão positiva para substituir o liberalismo clássico.
No final, os participantes chegaram a um acordo sobre a necessidade de substituir o liberalismo clássico por uma nova forma de liberalismo. Mas nem todos estavam igualmente animados com o acordo. Os liberais de esquerda, Rüstow e Lippmann em particular, estavam mais entusiasmados com o projeto do que seus colegas liberais de direita Hayek e Mises. A influência de Rüstow no colóquio ficou evidente no nome que os participantes concordaram em chamar seu novo projeto: neoliberalismo.
O trabalho no projeto neoliberal durou pouco, devido ao início da Segunda Guerra Mundial, um ano após o colóquio. Foi só depois da guerra que o projeto neoliberal ressurgiu em Mont Pèlerin, a montanha suíça que emprestaria seu nome à sociedade que continua a disseminar as ideias neoliberais até hoje. Os membros se reuniram para discutir uma visão liberal do pós-guerra. Ao contrário do Colóquio Walter Lippmann, no entanto, houve muito menos unidade entre os participantes. A reunião se tornou um clube de debate para indivíduos de todo o espectro liberal discutirem a sua visão liberal, em vez de apenas um grupo intelectual neoliberal. Eles tiveram muito poucos pontos de concordância. O grupo se tornaria conhecido como Sociedade de Mont Pèlerin (SMP) apenas porque os participantes não puderam concordar em um indivíduo ou valor para dar o nome à organização.
Outras lutas internas surgiram depois que os neoliberais alemães - Rüstow incluído - ajudaram a dar início a economia social de mercado da Alemanha no pós-guerra e seu subsequente milagre econômico. Críticos como Mises achavam a economia social de mercado alemã tão ruim quanto o socialismo. Portanto, apesar do sucesso retumbante dos neoliberais alemães, sua influência gradualmente se desgastou dentro da SMP. O grupo moveu-se para a direita conforme a influência de Mises, Hayek e um novo membro chamado Milton Friedman crescia.
Assim, o centro de gravidade do neoliberalismo se distanciou da "terceira via", o desejo de traçar um caminho entre o laissez-faire e o socialismo. Mesmo assim, a sociedade ainda mantinha uma visão abrangente por ser um clube de debate. John Rawls, um popular filósofo moral da esquerda, foi membro por um breve período. Mas, à medida que o apoio à visão original do neoliberalismo diminuía, também diminuía o número de autoidentificados neoliberais. Nos anos 70, o neoliberalismo como projeto político caiu na obscuridade. Não reapareceria até os anos 80 e 90. A essa altura, os neoliberais de direita como Hayek e Mises deixaram de se identificar como neoliberais e diziam defender os mesmos valores liberais clássicos que antes procuravam substituir. Isso não impediu que os críticos descrevessem a onda de reformas de livre mercado nos anos 80 e 90 como neoliberalismo, mesmo que as reformas estivessem longe da visão original apresentada no Colóquio Walter Lippmann meio século antes.
Com as figuras associadas ao neoliberalismo passando a incorporar os mesmos princípios econômicos do laissez-faire os quais antes procuravam se opor, é fácil ver como e por que a complicada história do neoliberalismo levou o rótulo a se tornar um objeto de escárnio. Mas rastrear o movimento de volta às suas raízes revela que as origens do neoliberalismo diferem marcadamente de seu uso crítico hoje. O neoliberalismo começou com um desejo simples: traçar um caminho entre os mercados livres e irrestritos e o socialismo. Qualquer coisa entre esses dois extremos cai mais ou menos dentro da tenda do neoliberalismo. Os neoliberais de hoje são notavelmente semelhantes.
Em muitos aspectos, a nova onda de neoliberais que surgiu recentemente se parece mais com a dos fundadores originais do neoliberalismo do que com a dos pensadores das reformas de livre mercado no final do século 20. Os neoliberais modernos procuram casar o mercado com um papel para o governo, embora a participação relativa de cada um seja uma questão aberta. Os neoliberais modernos, intencionalmente ou não, estão se deparando com muitos dos mesmos desafios que incitaram os fundadores do neoliberalismo há quase um século. O autoritarismo está em alta. Tanto na esquerda quanto na direita, o populismo econômico está se tornando dominante. O baluarte do liberalismo está desmoronando sob o estresse das novas tecnologias de mídia*. Agora, como naquela época, é necessário um movimento para reformar o liberalismo em um novo projeto neoliberal, que faça frente a um novo conjunto de desafios. Felizmente, já existe um plano para concretizar esse projeto.
*nota do tradutor: veja também uma breve análise sobre o livro citado no link aqui, em português.
Autor: Colin Mortimer
Tradução: João Garcia
Revisão: Fernando Moreno
Publicado originalmente em: https://exponents.substack.com/p/how-modern-neoliberals-rediscovered
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